Frida e as Reflexões para Tempos de Turbulência

Perturbadora, revoltante e dolorosamente pessoal. A história da mulher que transformou seus momentos mais vulneráveis de vida em arte.

Lari Carlotti
Nisia
13 min readMar 26, 2020

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Frida e as Reflexões para Tempos de Turbulência — Narrada por Raquel Carlotti.

Frida é considerada uma das mais renomadas artistas do século XX, e símbolo de resistência e luta até os dias atuais. Ao longo da vida, ela sofreu de algumas doenças graves e crônicas que a afetaram de diferentes formas. A história e os detalhes do seu sofrimento muitas vezes apenas romantizam a dor da artista de uma maneira que contribui para os mitos que criam sobre ela, ao invés de decupar o impacto físico perturbador real que inspirou seu trabalho, e como isso se manifestou em praticamente todas as obras que ela fez.

Ao trabalhar com os eventos que ocorreram na vida de Frida com a ajuda de imagens de arquivos e obras de arte, podemos começar a entender as relações delicadas que a artista teve com seu corpo durante a vida, e as maneiras pelas quais sua carreira artística foi desenhada por diversas aflições que ela sofria.

Créditos da Imagem: Coleção do Museo Frida Kahlo, Frida Kahlo criança.

Alguns pesquisadores acreditam que Frida Kahlo nasceu com espinha bífida, uma condição que afeta o desenvolvimento da coluna vertebral. A doença foi a primeira de muitas que complicaram ainda mais os problemas de saúde que ela teve mais tarde na vida.

Aos 6 anos, ela foi diagnosticada com poliomielite. Isso fez com que a sua perna direita ficasse mais fina que a esquerda, e a diminuição da circulação nessa perna causava uma dor crônica por muitos anos. A doença também a forçou a ficar isolada de seus colegas de escola, pois teve que adiar o início das aulas por meses.

Enquanto a experiência contribuiu para que ficasse cada vez mais introvertida, ela aproximou Frida do pai, Guillermo Kahlo. Durante esse período acamada, ele a ensinou literatura, ciências e filosofia. Quando ela já estava se recuperando, ele a encorajou a praticar esportes, como luta livre e boxe, para recuperar a força, embora esses esportes fossem considerados inadequados para as meninas da época. Guillermo também a ensinou fotografia (era fotógrafo), e ela passou a ajudá-lo em seu trabalho, tirando, retocando e colorindo fotografias com o pai.

Créditos da Imagem: Guillermo Kahlo (à esquerda), Frida Kahlo (centro) e Cristina Kahlo, a irmã (à direita).

Os efeitos da poliomielite fizeram com que Frida passasse a vida adulta usando saias longas para cobrir a perna pois detestava sua própria aparência. Em novembro de 1938, ela fez sua primeira exposição na cidade de Nova York. Ao olhar para a multidão de saias que ela pintou, disse: “Preciso ter saias longas agora que minha perna doente está tão feia”.

Aos 18 anos de idade, Frida e seu namorado estavam voltando da escola quando o ônibus em que estavam colidiu contra um bonde. Algumas pessoas morreram na batida, e a artista sofreu ferimentos quase fatais por conta de uma barra de ferro que atravessou seu osso da bacia. Ela também fraturou várias costelas, suas pernas e a clavícula.

O acidente fez com que ela passasse um mês internada no hospital e mais dois meses se recuperando em casa. Embora ela tentasse voltar à vida normal, continuava sentindo dores nas costas e, depois de algumas radiografias, foi revelado que o acidente também havia descolado três de suas vértebras. O tratamento incluía o uso de um colete de gesso, além de repouso absoluto na cama como parte do processo de recuperação.

Créditos da Imagem: Coleção e Arquivo da Fundación Televisa, Frida Kahlo pintando seu colete ortopédico.

Antes do acidente, Kahlo sonhava em ser médica. Quando esses planos tiveram de ser abandonados, seus pais a incentivaram a pintar enquanto descansava na cama, e foi ali que uma nova paixão despertou.

Créditos da Imagem: Coleção e Arquivo da Fundación Televisa, Frida Kahlo em seu quarto no Hospital Inglês trabalhando na pintura inacabada “Retrato de la Familia de Frida”, que ela retomou várias vezes durante a vida.

A pintura se tornou um canal pelo qual ela explorou questões da sua identidade e existência com profundidade. Refletindo sobre essa época, Frida chegou a dizer que o acidente e o período de recuperação de isolamento a fizeram querer pintar as coisas “exatamente como as vi com meus próprios olhos e nada mais”. Muitas das pinturas que fez durante esse período foram inspiradas em artistas europeus, em particular mestres renascentistas como Sandro Botticelli e Bronzino, além de movimentos vanguardistas como o cubismo e o surrealismo.

Nos anos que sucederam o acidente, ela continuou sofrendo dores fortes na coluna, e passou por mais de 30 cirurgias. O acidente e as cirurgias impactaram sua capacidade de ter filhos e, por consequência, ela sofreu abortos nos anos seguintes. A artista era ambivalente com relação a ter filhos e já havia feito um aborto voluntariamente no início de seu casamento, mas havia engravidado novamente e optou por continuar a gravidez. No mês seguinte ela sofreu um aborto e precisou ficar hospitalizada por duas semanas.

Uma de suas obras mais controversas, Henry Ford Hospital — 1932, foi um retrato inspirado por essa experiência traumática, e ilustra Frida sangrando em uma cama enorme com a barriga ainda inchada e seis elementos diferentes, incluindo um feto masculino e um gesso ortopédico, presos à sua mão por fitas vermelhas, como se fossem cordões umbilicais. Essa pintura é uma das tantas obras que expõe a luta de Frida com sua fertilidade, e comunica seu conflito de querer ser mãe, seu desejo de ter uma família com Diego Rivera e as limitações do seu corpo.

Créditos da Imagem: Coleção do Museo Dolores Olmedo, “Henry Ford Hospital” de Frida Kahlo.

Uma das cirurgias que Frida precisou fazer por conta do acidente foi em sua coluna vertebral. A cirurgia a deixou acamada, e a forçou a usar um colete metálico para ajudar a aliviar a dor intensa e constante que ela sentia.

Créditos da Imagem: Coleção do Museo Dolores Olmedo, “A Coluna Partida” de Frida Kahlo.

“A Coluna Partida” (La Columna Rota, em espanhol), de 1944, foi pintada logo após a cirurgia, onde vemos a artista em meio a uma paisagem seca e rachada. Seu corpo está rodeado por ligas de metal e sua coluna, fragmentada, aguentando a pressão “por um fio”. Embora ela esteja chorando, este não é um retrato de dor, e sim de força, com seu olhar desafiador perfurando quem o analisa. Essa atitude determinada permitiu que Frida continuasse produzindo obras mesmo nos momentos mais angustiantes.

Para lidar com as dores diárias que sentia, a artista passou a se automedicar e beber grandes quantidades de álcool. Seu sofrimento era tão intenso que não apenas se manifestava fisicamente, mas também emocionalmente. O ato de pintar se tornou um escape de toda essa dor, uma maneira de se separar dos estresses emocionais da vida e criar representações a partir das suas experiências traumáticas.

Os impactos das doenças de Frida permitiram que ela explorasse suas ideias sobre feminismo e feminilidade, e desenvolvesse sua filosofia pessoal a partir de uma perspectiva diferente de seus colegas e familiares. É importante não reconhecermos Frida pela sua dor, e sim celebrarmos o modo como ela usou suas aflições para entender a vida e construir uma carreira como artista, se expondo e se permitindo ser vulnerável para todo o mundo, e indo de encontro com a missão que sempre existiu dentro de si.

Créditos da Imagem: Philadelphia Museum of Art, Frida Kahlo por Julien Levy (1906–1981).

Frida Kahlo hoje alcança o status de cult por sua vida e arte extraordinárias. O interesse por suas obras aumentou drasticamente nos últimos 30 anos, e suas pinturas surrealistas, perturbadoras e sombrias fascinam pessoas em todos os cantos do mundo. Ela continuou pintando autorretratos intensos e muitas vezes macabros (muitos a retratavam vestindo trajes tradicionais mexicanos e destacavam sua proeminente monocelha e bigode) pelo resto da vida.

Em 1953, as doenças forçaram Frida a assistir sua primeira exposição individual em uma ambulância e, no mesmo ano, quase 40 anos após o acidente de ônibus que mudou o rumo da sua vida, sua perna direita foi amputada. Consciente de que o fim da sua vida estava próximo, ela passou a retratar anjos e esqueletos em seu diário pessoal. Frida morreu, aos 47 anos, em 13 de julho de 1954, de uma embolia pulmonar.

Créditos da Imagem: Diário pessoal de Frida Kahlo.

A Commoditização de “Frida”

Hoje, vemos muitas representações da artistas, em produtos, serviços e discursos dos mais variados tipos. Em proporção, quantas pessoas de fato conhecem a história por trás da marca Frida Kahlo? Frida sempre se posicionou como uma pessoa anticapitalista, e trazia suas raízes mexicanas simples e sua visão política comunista refletidas em suas obras. Isso levanta uma questão: um símbolo de resistência como ela, cuja pintura de autorretrato de 1932 na fronteira entre o México e os Estados Unidos contrasta flores e artefatos indígenas mexicanos com as chaminés de fumaça de uma fábrica da Ford, ficaria satisfeita com a mercantilização de sua imagem?

Créditos da Imagem: Diário pessoal de Frida Kahlo.

É uma pergunta difícil de responder, até porque Kahlo se coloca no meio dessa pintura, a meio caminho entre preservação cultural e capitalismo. Todas as marcas de sucesso dependem da condensação de uma ideia em sua essência e a Frida Kahlo Corporation, que licencia sua imagem — e doa uma parte do dinheiro para instituições de caridade comprometidas em melhorar a vida de mulheres e crianças — é clara em seu site sobre o que acredita que a essência é: “A marca representa um modelo feminino, uma mulher forte”.

Créditos da Imagem: Exposição “Frida Kahlo: Making Her Self Up”, um display com as roupas originais da artista Frida Kahlo.
Créditos da Imagem: Coleção Minju Kim para o programa americano Next in Fashion, Coleção “Frida Kahlo”, 2020.

E assim, o rosto de Kahlo se tornou uma abreviação para o feminismo moderno. Digitar o nome dela no Mercado Livre exibe mais de 4.000 produtos não licenciados. Uma tiara é “a tiara de fantasia mexicana Frida Kahlo”. Uma capa de telefone é vendida como uma “capa de telefone feminista”. Às vezes, a mensagem pode ser confundida.

Existe o outro lado da moeda, que é a conexão e profunda admiração que muitas mulheres têm pela Frida e pelo que ela representa. Em 1989, as artistas ativistas feministas Guerilla Girls criaram o pôster “As mulheres precisam ficar nuas para entrar no Museu Met.? Menos de 5% dos artistas das seções de arte moderna são mulheres, mas 85% dos nus são femininos”.

Créditos da Imagem: https://www.tate.org.uk/art/

Em Tempos de Turbulência, Sejamos Fridas

É indubitável que a artista teve uma rede de apoio profunda, primeiro de seus pais e depois de seus relacionamentos e das amizades que desenvolveu ao longo da vida. As dificuldades dos padrões eurocêntricos, ocidentais, masculinos e brancos de beleza se perpetuam desde muito antes de Frida sequer existir, e provavelmente se manterão por muitos anos depois deste artigo ter sido publicado. Nós, mulheres, precisamos viver em rede para sobreviver. Precisamos nos apoiar 2x, 3x, 4x mais do que os homens para podermos ter uma chance real de sucesso, seja no mercado de trabalho, seja por conta dos padrões de beleza que querem nos impor todos os dias.

Do mundo da arte ao mundo da tecnologia, cada qual com suas histórias de vida e batalhas vencidas, recebemos diariamente relatos profundos de mulheres na Rede Nísia sobre grandes e pequenas vitórias enfrentando o sexismo e os desafios da profissão. É importantíssimo traçarmos esses paralelos, conhecermos ícones femininos de luta como a Frida profundamente, e não apenas por meio de mensagens vazias e superficiais de empoderamento. Precisamos aprender a viver em rede de verdade, ajudarmos outras mulheres a realizarem seus sonhos, e mais, a lidarem com os desafios do dia-a-dia.

Já se têm dados de que o coronavírus afeta homens e mulheres de formas diferentes. Em um contexto de pandemia, onde apenas uma parcela muito privilegiada da população pode trabalhar de casa mas ainda assim, muitas crianças e cônjuges estão de quarentena, a responsabilidade de cuidar sobra quase que sempre para as mulheres.

Uma pandemia amplia todas as desigualdades existentes (mesmo que alguns insistam que não é hora de falar sobre outra coisa senão a crise imediata). Trabalhar em casa em um emprego de escritório é mais fácil; o auto-isolamento custa menos em uma casa espaçosa do que em um apartamento apertado. Mas um dos efeitos mais marcantes do coronavírus será enviar muitos casais de volta aos anos 50. Em todo o mundo, a independência das mulheres será uma vítima silenciosa da pandemia.

No nível individual, as escolhas de muitos casais nos próximos meses farão perfeito sentido econômico. Do que os pacientes pandêmicos precisam? Cuidado. Do que as pessoas idosas precisam? Cuidado. Do que as crianças mantidas em casa longe da escola precisam? Cuidado. Todo esse cuidado — esse trabalho de cuidar não remunerado — recairá mais sobre as mulheres, devido à estrutura existente da força de trabalho.

Nas relações heterossexuais, as mulheres são mais propensas a receber menos, o que significa que seus empregos são considerados de menor prioridade quando surgem rupturas. E essa interrupção em particular pode durar meses, em vez de semanas. O salário vitalício de algumas mulheres nunca se recuperará. Com as escolas fechadas, muitos pais, sem dúvida, irão dividir o fardo, mas isso não será universal.

Por mais severo que se possa parecer agora, novas epidemias são inevitáveis e a tentação de argumentar que o gênero é uma questão paralela, uma distração da crise real, deve ser combatida. O que fazemos agora afetará a vida de milhões de mulheres e meninas em surtos no futuro.

A crise do coronavírus será global e duradoura, econômica e social. No entanto, também nos oferece uma oportunidade. Este poderia ser o primeiro surto em que as diferenças de gênero e sexo são registradas e levadas em consideração por pesquisadores e formuladores de políticas públicas. Essa pandemia deve servir para nos lembrar da verdadeira escala dessa distorção de gêneros.

Se uma visão estoicista de todo esse processo que estamos passando não é suficiente para que mantenhamos igualdade entre as pessoas, precisamos nos unir com outras mulheres e nos cercar de exemplos de resistência e liderança feminina que nos ajudem a navegar por esses tempos turbulentos e incertos.

Alguns conselhos para redes de mulheres que podemos aprender com Frida

1. Melhore sua Visão Interseccional

As redes de mulheres entendem que são tão seguras — ou capacitadas — quanto as mulheres mais vulneráveis entre elas. Uma visão interseccional nos ajuda a entender como o coronavírus afeta desproporcionalmente grupos específicos de pessoas que, por causa de suas identidades, enfrentam formas diferentes de carga emocional. Agora, mais do que nunca, devemos centrar nossos esforços em torno da necessidade de igualdade, empoderamento, inclusão e justiça para todas.

2. Torne o Invisível, Visível

No fundo, grande parte do papel das redes de mulheres é tornar visíveis relações e dinâmicas de poder. Isso significa olhar atentamente para os sistemas econômicos, sociais e políticos que estão produzindo e reproduzindo as desigualdades que o coronavírus está provocando em grande escala. Precisamos iluminar as estruturas opressivas que criaram uma situação em que a cobertura básica de saúde para a sobrevivência é um sonho para aproximadamente 50% do mundo; e onde a presença de uma pandemia significa que há um risco aumentado de violência doméstica, violência no local de trabalho no setor da saúde e abuso de trabalhadoras domésticas vulneráveis.

3. Celebre Alternativas Possíveis

Pense em como você pode criar algumas alternativas em suas atividades diárias na sua vida e na empresa/ escola/ rede em que trabalha. Construa essas alternativas na maneira como você se organiza, como se conecta com outras mulheres, como realiza reuniões… as possibilidades de fazer as coisas de maneira diferente são infinitas. Também reformule algumas ideias, como por exemplo a ideia de ‘distanciamento social’. Se transformarmos isso em ‘solidariedade com espaço’ — isso se torna algo que nos conecta, e não nos separa.

4. Nutra uma Cultura de Empatia e Cuidado

Muitas de nós serão consumidas pelo trabalho no momento — algumas também estarão lidando com responsabilidades pesadas de cuidados dos filhos e tentando cuidar remotamente de nossos pais ou outros grupos vulneráveis. Nesse processo, corremos o risco de perder de vista as partes de nós mesmas que nos permitem perseverar, manter o ritmo, trazer criatividade para o nosso trabalho e florescer. Como cuidamos de nossos corpos, mentes e corações, então, é um trabalho político. Redes de mulheres podem defender o cuidado mútuo — priorizando empatia e compaixão; Podemos levar mais tempo para checar nossas amigas e colegas, e deixar de ter medo nos tornarmos vulneráveis para os outros. Só assim teremos uma chance de deixar lições valiosas para as gerações futuras de meninas e mulheres que ainda passarão pelo mundo pelas próximas décadas, e talvez, pelas próximas pandemias.

Esse é o verdadeiro legado de Frida Kahlo.

Se você se interessou pela história de vida da Frida e quer conhecer mais, aqui vão algumas dicas:

1. Documentário ‘Vida e Obra de Frida Kahlo’, exibido pela TV Cultura

2. A Maior Curadoria Gratuita de Obras e Textos sobre Frida Kahlo, “As Faces de Frida”

Link: https://artsandculture.google.com/project/frida-kahlo

3. Tour Virtual do Museo Frida Kahlo

O Museo Frida Kahlo, também conhecido como The Blue House, era a casa de Frida e um refúgio criativo no qual muitas de suas obras mais famosas nasceram.

Créditos: Museo Frida Kahlo.

Link: https://www.museofridakahlo.org.mx/en/the-blue-house/

Obrigada! 👏👏👏

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