Carta de Intenção Cinematográfica no Cinema Brasileiro | Opinião

Menos cabeça, e muito mais coração.

Laís Torres
No Chão da Sala de Edição
4 min readMar 20, 2020

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O fazer cinema nesse Brasil quase apocalíptico se tornou mais do que urgente. Entre fascistas e defensores da Terra-plana, entre milicianos e religiosos radicais — tudo o que o cineasta pode fazer com seu trabalho é denunciar este cenário e, na medida do possível, celebrar a diversidade no mundo fictício em que seja possível escapar das mentiras absurdas que rondam as esferas sociais neste país. No entanto, exigir de todo filme ficcional que é produzido neste cenário uma resposta política é, no mínimo, desleal.

Isso se dá muito porque a herança que o cinema brasileiro até hoje carrega é pautada na vinculação entre posicionamento político e utilização de alegoria no corpo fílmico. Até poderia fazer sentido nos anos 60, a fuga de um cinema mais clássico e inteligível para algo mais complexo, mas a experiência cinemanovista de distanciamento do público que ele dizia ser o alvo (essa ideia de povo abstrata) deveria ter sido suficiente para que o cinema brasileiro se libertasse da necessidade do uso da alegoria e de um posicionamento claro e pragmático. Me parece que o que mais uma pessoa precisa quando senta para ver um filme é sentir algo que não seja puro ódio — seja pelo filme, que se torna de muito difícil compreensão, ou pelas trágicas e complexas questões da sociedade brasileira com a qual ela é obrigado a conviver todos os dias.

É necessário se libertar das amarras da necessidade-de-uma-nova-linguagem. Me parece mais importante que nos (re)apropriemos da linguagem clássica e reinventarmos suas narrativas. E, neste ponto, a questão de representatividade se torna mais latente. Não há nada mais delicado do que produzir comédias românticas sobre pessoas racializadas, sobre casais fora da heterossexualidade, em realidades distintas do padrão Hollywood, sem retornar às velhas narrativas de dor e sofrimento associadas a essas pessoas. É necessário que o cinema brasileiro supere o favela movie como única representação da população periférica dos grandes centros urbanos. A ação política de incluir novas histórias — por mais que clichês, por mais que “rasas”, mas com outros corpos, e outras vivências: isto sim me parece mais importante, pois devolve ao cinema brasileiro a capacidade de se conectar com o público pelo coração.

Menos cabeça e mais coração, cineastas, que é certo que ninguém gosta de cinema só porque ele tem uma capacidade politizante. É possível fazer um filme que seja politizado, que questione a ordem imposta e os valores reacionários assim como falar sobre como é importante a organização popular contra a opressão de classe — isto tudo sem cair nas alegorias datadas glauberianas. É possível falar sobre machismo sem fazer um filme em que há uma cena explícita de violência contra a mulher. É possível fazer um filme sobre a vivência de pessoas trans que não envolva violência e rejeição. É possível fazer um filme que aborda a problemática do racismo sem perpetuar estereótipos de pessoas racializadas. É possível.

Mas só vai ser real quando cada um contar histórias de um ponto de vista não a estudar o outro ou usá-lo como material a ser investigado — quando o cineasta descer do seu pedestal e deixar de achar que tudo se resolve com cinema e arte transgressora. Me parece muito mais transgressor assistir a um filme sobre um casal de mulheres que ao final ficam juntas. Me parece mais transgressor assistir a um filme adolescente sobre aceitação da sexualidade em não haja violência. Me parece mais transgressor ainda assistir a um filme com um elenco inteiro de pessoas negras e em que não haja qualquer tipo de morte ou violência. Esses filmes colocam as populações marginalizadas no mesmo patamar de normalidade de narrativas brancas e heterossexuais ao não tratá-las como coadjuvantes engraçadas, ou exóticas. São pessoas.

E, para mim, é importante que estes novos filmes do cinema brasileiro sejam corajosos o suficiente para falar sobre as partes boas da vida e criarem imagens positivas da vivência de certos grupos até hoje só retratados como vítimas, como fragmentos de anos de opressão e violência. Afinal, todo ser humano tem direito à felicidade. E falar sobre isso não é menos politizado, e tampouco é alienado. O cinema ao longo das décadas já provou que é sim possível falar de política em todo e qualquer gênero. Há chanchadas politizadas, há melodramas politizados, mas nem por isso se deixa de rir ou de chorar. Nem por isso cai-se na alegoria e nas imagens e falas incompreensíveis a não ser para os estudados em cinema e semiótica.

Se eu tivesse de ter uma proposta para o cinema, seria o de fazer o cinema com o coração, mas sem tirar os pés da realidade. Um cinema de gente, pra gente.

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