Dor e Glória | Crítica

Hugo Schnorrenberger
No Chão da Sala de Edição
5 min readAug 8, 2019

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Desde que eu comecei a estudar roteiro a minha percepção de filmes mudou, e eu não digo no sentido de que agora eu vejo um código secreto, ela mudou num sentido empático. Por exemplo, quando eu estou vendo um filme eu me pego imaginando como deve ter sido para o roteirista ter solucionado essa cena em específico. Como ele deve ter se sentido quando fechou aquela sequência. Eu penso na alegria. Eu penso na tristeza. Com Dor e Glória não é diferente. A cada cena eu me imaginava nos sapatos de Almodóvar e tentava emular sua felicidade. Esse tipo de “percepção” nova de cinema está me fazendo gostar de filmes diferentes, pois eu consigo ter um carinho diferente. De sentir algo que exala o amor da arte, e isso Dor e Glória tem de sobra. Truffaut disse no prefácio de seu livro Os Filmes de Minha Vida que “hoje em dia eu não me interesso mais pelo filme bom ou ruim, como fazia antigamente, eu apenas me interesso por filmes que representem a alegria de se fazer filmes, ou a agonia”. E eu parafraseio aqui, a Dor ou Glória.

No filme de Almodóvar (competidor da seleção oficial em Cannes de 2019) nós acompanhamos Salvador Mallo (Antônio Bandeiras) , um diretor forçado à aposentadoria por suas inúmeras doenças e dores. Depois de mais de 30 anos da estréia de Sabor — filme escrito e dirigido por Mallo — a cinemateca restaura a película e gostaria que Salvador, junto com o protagonista de Sabor Alberto Crespo (Aier Etxeandia), com quem ele não fala desde a feitura do filme, fizessem um Q&A após uma sessão especial. Tudo isso acontece e se desenrola enquanto passado e presente se misturam e o fazem refletir sobre a própria situação.

É nessa reflexão, que o passado e presente de Salvador se misturam tendo duas linhas narrativas, uma na infância de Salvador e outra no presente. O filme abre com Salvador em uma piscina, submerso. Depois de nos introduzir às suas cicatrizes de cirurgias a montagem nos leva à sua infância. Sequência que abre numa cena rural da mãe de Salvador (Penélope Cruz) lavando roupas na beira do rio com as outras donas de casa enquanto ele observa e brinca na água. Daí nós somos trazidos novamente para o presente em um reencontro com uma antiga amiga num restaurante, ao final dessa cena nós temos um homem que senta no piano e começa a tocar. O piano nos leva para uma cena onde um padre toca piano na infância de Mallo.

A memória, confusa e entrelaçada como é, não nos deixa viver num presente, o presente deixa de fazer sentido quando está preso ao passado. O filme captura muito bem isso justapondo cenas de passado e presente com ligações, visuais e sonoras, o faux-raccord. Com cada faux-raccord somos lançados em uma nova situação, cada nova situação é uma nova lembrança que aparece e toma o palco por pouco tempo, e antes que nos acostumemos com ela somos jogados de novo no presente. Essa escolha de linguagem nos oferece um vislumbre do que é estar nos sapatos — ou melhor, no sapatênis — de Mallo. O passado, para o personagem, é confortável e bonito. Os conflitos já foram, já se resolveram ou não, mas já foram e é isso que importa para ele. Por mais agradável que seja tentar fugir para outros tempos, tempos em que as coisas eram mais simples. Em que você poderia se apaixonar por um aluno/pedreiro e não teria nenhuma consequência como tem agora. O amor não teria a consequência que tem agora. E o presente não cessa em nos trazer de volta e nos forçar a enfrentar os problemas, e quando o presente começa a ganhar a luta pelo microfone da vida do protagonista ele busca outras maneiras de fugir, nesse caso a Heroína.

O filme é muito doce, tanto em assunto quanto em linguagem, é dos tipos de filmes que eu classifico como Cartas de Amor ao Cinema. E esse tipo de filme vem de uma honestidade e um respeito muito grandes. Respeito pela forma, pelos personagens, e por fim, à arte em si. Sem ele não é possível atingir esse cuidado ao tratar as pessoas do mundo da ficção. E esse tipo de carta requer uma certa reverência às referências, que no caso, como pode ser notado pela sinopse, é Fellini e seu Oito e Meio. Almodóvar não só trás o seu Mastroianni com Antônio Bandeiras, ele trás a identidade visual e os eastereggs em DVDs em cima de mesas, posteres nas paredes e a própria interpretação de Bandeiras em momentos. Em conclusão, Dor e Glória me lembra que o filme de amanhã é um ato de amor, ele me lembra que os filmes que me fazem entrar em devaneios de roteiro, assim que acabam, automaticamente me fazem pensar na próxima etapa, a etapa de “como deve ter sido gravar esse roteiro”, bom é seguro dizer que nunca antes esses sentimentos foram capturado tão bem por um cineasta.

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