estou pensando em acabar com tudo (Charlie Kauffman, 2020)

estou pensando em acabar com tudo | Crítica

Pretensioso, sim. Mas é o menor dos problemas.

Az—
No Chão da Sala de Edição
6 min readSep 11, 2020

--

Não é nem a pretenção que me incomoda, porque quando você clica num filme com um nome desse você tem que estar mais ou menos preparado pra duas horas de um bocado dela. Não, o que me incomoda é que pra além da pretenção de duas horas de referências cruas desenhadas pra agradar film bros e de surrealismo bem executado, Kauffman esconde a mesma energia tadinho-de-mim que Von Trier falha em esconder em A Casa Que Jack Construiu.

Aviso: spoilers (e interpretações) a seguir!

A bem da verdade, eu não sei porque eu ainda tento assistir Kauffman.

Há alguns anos atrás me indicaram Sinédoque, Nova York como uma grande obra de arte do cinema surrealista, e apesar da performance previsivelmente boa de Philip Seymour Hoffman, tudo que eu senti foi bastante preguiça. Não me conectei, na época, com os temas supostamente universais de Kauffman, ou com a finalização fria com que ele apresentava alguns dos assuntos mais calorosos e confortáveis que conheço. E não engoli o não pensa, só sente que veio mais de uma vez como uma versão mal velada de você não entendeu.

Mas talvez eu não tivesse entendido, mesmo, eu pensei. Algo ainda tinha me atraído ali, afinal, mesmo que este algo estivesse soterrado embaixo de camadas e mais grossas camadas de auto-indulgência criativa — eu só ia ver uma versão mais interessante disso que tinha me interessado anos depois, no Suspiria de Guadagnino. E porque me disseram que Kauffman tentava não se afogar nessa mesma auto-indulgência dessa vez, eu resolvi que ia tentar de novo.

Pelo menos metade do filme se passa dentro do carro.

O que me atraiu mesmo foi a presença de um personagem feminino no papel principal de um filme surreal, que sempre me pareceu faltar. A primeira metade do filme, previsivelmente encharcada de verborragia auto-referencial, nem me incomodou tanto. O filme engaja mesmo tendo boa parte de sua duração dentro de um carro, por que apesar de visualmente não interessante os voice-overs e as interpretações carregam a audiência muito bem. É curioso. A esquisitice vem aos poucos, e bem suavemente. O efeito de fluxo de consciência dos pensamentos da personagem principal é extremamente bem executado, e junto com o design de som e a mixagem do som direto, a faixa sonora preenche o ambiente de uma forma deliciosa, que funciona bem na janela de exibição do VOD — principalmente se você estiver de fone de ouvido.

A chegada na casa dos pais entrega, então, o melhor do filme, assim como começa a apresentar seus problemas. Quando chegamos à fazenda acompanhamos ainda nossa personagem principal, mas o foco narrativo muda aos poucos de seus pensamentos e vontades para uma exploração da pletora de traumas mais ou menos triviais de Jake, seu namorado.

Um dos meus professores uma vez acusou Trama Fantasma de ser psicanálise de bar — com razão — , e eu dava uma boa grana pra saber o que ele pensaria desse aqui. A casa é um grande lugar mental, as figuras do pai e da mãe são caricaturais, mas interessantes, e, como sempre, Toni Collette faz bem o papel da mãe esquisita à qual os diretores de casting parecem tê-la relegado. A menção do porão vem com um delicioso comentário na trilha musical, e toda a sequência nessa locação atinge seu ápice ao discorrer visualmente sobre a relatividade emocional do tempo, o que é provavelmente a jóia mais brilhante de todo o filme.

É uma pena que todo esse brilho técnico e filosófico seja apagado por crescentes e mais desanimadoras descobertas sobre aquela que pensamos ser a personagem principal, afetando a fruição da narrativa. Ela agora nem nome mais tem, e começa a se mostrar cada vez mais sem identidade para muito além disso. O filme propositalmente faz um amálgama de várias identidades femininas na Jovem Mulher, em dados momentos apresentando-a como uma versão idealizada todo o gênero feminino; uma espécie de parceira romântica ideal.

Depois da “explicação” que o filme dá de si mesmo através de uma (bela) coreografia de balé dentro do prédio do ensino médio, a história finalmente se faz compreensível (para uma audiência acostumada ao incompreensível): tudo é um grande delírio suicida de Jake. E aquela que era nossa personagem principal, que parecia verdadeiramente interessante quando o filme começou, desaparece como figura ativa da narrativa pra voltar como uma figura feminina genérica de aprovação, literalmente aplaudindo da platéia. Ela vem como a proverbial razão de tudo: meu sucesso, minha vida, eu devo tudo à você. As questões ligadas à essa figura idealizada de romance não podem ser ignoradas, dessa forma, porque a narrativa do filme gira em torno dela.

Não importa muita qual seja sua leitura subjetiva do mundo bizarro de Kauffman, aqui — há de se haver um consenso de que essa decisão é questionável. E um mea culpa apologético que mencione esta como sendo a visão de Jake não basta — a admissão explícita do personagem sobre essa idealização, não basta. Porque nada é feito a respeito dela. Depois da revelação de Jake como protagonista não há desenvolvimento de seu tratamento de si mesmo que passe do tadinho de mim.

Retratar um personagem sexista não é novidade nenhuma, mas centralizar um filme em uma personagem principal complexa apenas para sumir com toda essa complexidade 2/3 do filme adentro é provavelmente a maior e mais elaborada demonstração de machismo internalizado que eu vi em um bom tempo. E eu falhei em achar críticas e textos apresentando ou discutindo esses fatores.

Por que como falar abertamente sobre isso se o filme é, surrealista, tão obviamente feito para ser sentido não pensado? Como falar sobre isso se as piadinhas e as referências claramente demonstram consciência dos problemas que o filme apresenta?

A verdade é que pensar e sentir são dois lados de uma mesma moeda, e que o formato auto-irônico não é o suficiente, aqui, para ser auto-crítico.

Apesar de formalmente menos indulgente que o normal, Kauffman ainda abusa da honestidade artística, vomitando na audiência opiniões e pensamentos a respeito da vida, do universo, e tudo mais, pedindo encarecidamente para que nós o aceitemos como ele é; pedindo, com seus momentos auto-conscientes, desculpas efusivas e esfarrapadas a respeito daquilo que não faz questão de tentar mudar.

É emblemático, para mim, que, ao encenar um discurso de Pauline Kael sobre Uma Mulher Sob a Influência, Kauffman parece se esquecer de um outro, talvez mais apropriado, texto de Kael — Fantasias da Audiência Art-House:

“É uma pena que aquilo que as pessoas acreditam serem as coisas mais importantes a respeito de si, os segredos mais íntimos — o real você ou eu — que vomitamos quando alguém parece simpático, muito provavelmente seja somente um monte de tolices que nós geralmente temos noção o suficiente de esquecer. O real eu ou você que escondemos das pessoas porque elas não o aceitariam é escória — e porque diabos alguém o ia querer?” [tradução livre.]

Kael é um pouco dura demais com a parte de nós que escondemos, mas eu vejo mais do que somente um fundo de verdade nessa crítica ao jorrar de verdades íntimas.

Agradeço a pura honestidade de filmes como estou pensando em acabar com tudo, mas o tipo de honestidade que ele apresenta aqui é apenas um meio-pensamento. É uma honestidade apologética, a do filme, que procura no fim de tudo uma redenção preguiçosa. Vê o fim como uma desculpa para não se fazer nada a respeito das próprias falhas.

“Desculpe. É assim que eu sou.”

Assim como para The Green Book não foi o suficiente dizer desculpe, sou racista, aqui também não deveria ser o suficiente dizer desculpe, sou machista. É um discurso que me parece desatualizado, no momento atual. O reconhecimento e as desculpas não são mais o suficiente. “Acabar com tudo” não é mais uma válida saída de emergência. A conjuntura atual hoje pede a auto-transformação em vida; uma coragem que vai além da coragem de se admitir falho: a coragem de se fazer mutável, e disposto a mudanças; a de, de fato, mudar.

A arte é o lugar mais apropriado para esse tipo de coragem. E por isso não consigo entender porque estou pensando em acabar com tudo não vai até onde deveria ir — a não ser por uma escolha consciente de não fazê-lo.

É triste, mais ainda, que essa discussão seja ignorada; soterrada pelo surrealismo obtuso de Kauffman, que abre alas para que a desculpa da interpretação seja utilizada para mascarar uma ignorância voluntária do discurso.

--

--