Moulin Rouge! (Baz Luhrmann, 2001)

Histórias Impossíveis | Perspectiva

Algumas considerações sobre o melodrama contemporâneo.

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No Chão da Sala de Edição
10 min readMay 4, 2020

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Partindo de uma história tão impossível que parece não pertencer à mesma realidade a qual vivemos, uma tentativa de compreensão do que uma estilística melodramática exagerada nos diz a respeito dos nossos dias atuais.

Spoilers: Moulin Rouge! (Baz Lurhmann, 2001)

1. DO MELODRAMA

O filme melodramático sobrevive. Está presente na literatura, no cinema, no teatro; permeia todas as formas de arte. Como gênero fílmico o melodrama atravessou a história — desde os princípios do cinema mudo, nas mãos de D.W. Griffith, pelas cores vívidas de Douglas Sirk, até chegar ao olhar contemporâneo de nomes como Pedro Almodóvar e Baz Luhrmann. Diferentemente de formas mais efêmeras que tomam as telas de cinema de tempos em tempos, a permanência do melodrama é notável e parte integral de suas características como forma artística.

Sua popularidade assume papel de destaque nessa permeabilidade e permanência: o melodrama é historicamente vendável. Antes de qualquer sopro da existência do cinema a história melodramática já era consumida como forma teatral e conto de folhetim. Mais barata, de mais fácil acesso e compreensão, era amplamente absorvida por estratos menos privilegiados da sociedade à despeito de uma aristocracia que a rechaçava.

Essa maleabilidade — a adequação às morais e às peculiaridade de cada momento histórico — e esse alcance fazem do melodrama não tão somente gênero, mas formato. Como argumenta Peter Brooks, o melodrama é uma forma de ler o mundo. E como leitura, é sempre atual. Reconhecível por si só, mas único em conteúdo, em forma, em especificidade.

E o que faz de um melodrama um melodrama, então?

Assim como o film noir o melodrama é o grande conjunto de características que compõe sua identidade, mas que não precisa estar presente como totalidade na mesma obra, e raramente está. Existe quase que como uma lista não declarada de sugestões, abertas, de certa forma, para escolha, o que torna possível entender as histórias como mais ou menos melodramáticas dependendo do quanto aderem às características do gênero.

Ivete Huppes, assim como Brooks, em um esforço de identificação e organização da identidade do melodramático propõe que o melodrama é marcado pela simplificação radical. A estrutura das histórias assume características bipolares, maniqueístas, no melodrama. Contrastes se tornam preto-e-branco, as zonas cinzas desaparecem. Morais são resumidas a máximas e os personagens que as carregam são geralmente bidimensionais: bons ou maus, motivados por uma bondade ou maldade que é adequada às formas vigentes do momento cultural no qual está inserido o trabalho. A facilidade da compreensão é imperativa, aqui. Dominam os monólogos, as confidencias; um texto expositivo e sem abertura para interpretações. Personagens tipificados servem propósitos específicos em tramas construídas em volta de romances impossíveis, injustiças sociais ou conflitos familiares. As resoluções tendem à formula, e muitas vezes à ironia dramática — a solução feliz de um romance é muitas vezes contrastada a uma tragédia social, ou vice-versa.

A argumentação dos autores é a de que as simplificações do melodrama servem a um motivo social. Seus maniqueísmos e formas abreviadas facilitam a compreensão de um mundo complexo. Reconciliam o irreconciliável e acalmam a consciência popular, principalmente, apaziguando anseios e promovendo uma leitura de mundo que dispensa uma alta intelectualização de conceitos.

Seria então o melodrama acrítico? A crítica cinematográfica tendeu, historicamente, a pensar que sim. No apogeu de sua forma fílmica Hollywoodiana, nos anos 50, os filmes de Douglas Sirk, Vincente Minnelli, Nicholas Ray, e outros grandes nomes do melodrama eram muitas vezes sumariamente ignorados, quando a crítica não lhes era dura e desfavorável. A popularidade do melodrama cinematográfico como filme feminino, ainda, dirigido à uma audiência de mulheres de meia idade e classe média, não ajudava a estabelecer o melodrama como gênero “sério”.

Poucos eram os críticos e realizadores que viam, e veem, hoje, no melodrama seu valor, e o preconceito com a forma é histórico, por sua relação com a narrativa popular de fácil consumo. Mas as previsões de Sarris, crítico Hollywoodiano que de certa forma profetizou uma nova era na leitura do melodrama, em defesa de Douglas Sirk nos encaminham a uma outra visão da narrativa melodramática.

2. A CONTRIBUIÇÃO DA FORMA

O cinema de Douglas Sirk é único no que diz respeito ao melodrama. Nos estranhos tempos de 1950, em meio a uma não-estabilidade politico-social, a narrativa americana era povoada por imagens do sonho americano que encorajavam uma simplificação da vida e dos princípios. A romantização do ethos americano de sucesso, do amor romântico, da família nuclear — os valores clássicos eram imbuídos nas narrativas fílmicas. Considerando a audiência-alvo do melodrama daquela era, é esperado que se encontrem as mesmas imagens ainda mais exaltadas em tais filmes.

Mas algo nos parece estranho, quando assistimos aos filmes de Douglas Sirk, especialmente os feitos logo antes de sua aposentadoria, no final dos anos 50. Aquela vida não nos parece real. Aquele mundo não nos parece natural. A plasticidade da imagem, das ações, e até mesmo das atuações causam um estranhamento seletivo. Não são o suficiente para nos tirar completamente da narrativa, mas definitivamente são o suficiente para nos causar a forte impressão de artificialidade.

A impressão é parcialmente explicada, talvez, pelo fato de Douglas Sirk não ter sido americano. Alemão expatriado, o realizador nunca pareceu ter se convencido de que o “jeito americano” era o melhor jeito. Trabalhando dentro da industria cultural, talvez a maior e mais bem sucedida das indústrias americanas, Sirk se utilizava do próprio meio para tentar injetar complexidade em suas engrenagens. Nunca a partir da história em si: as narrativas que Sirk dirigia sempre aderiam aos valores vigentes, e eram roteiros essencialmente melodramáticos no que diz respeito a suas características básicas. Mas a forma do filme, aqui, trazia possíveis interpretações e novas leituras do material.

Os filmes de Sirk eram estilizados ao máximo, a começar pela cor: o technicolor, já marcado pela artificialidade da matiz e alto contraste de suas cores causados pelo processo de três tiras, era acentuado pelas escolhas de figurino e pelo design dos sets. A iluminação desses sets, por sua vez, transformava-os em uma caixa embelezada: bonitos, mas sem vida. Rock Hudson, conhecido por sua atuação menos que estelar, adicionava, por si só, uma medida de artificialidade a qualquer fala dita.

O resultado dessa artificialidade particular dos filmes de Sirk nos anos 50 é uma espécie de uncanny valley: “uma dessas coisas não está correta, uma dessas coisas não pertence aqui”. Ou, no caso, todas elas. Não parece haver, no quadro de Sirk, um único suspiro de verdade. Elevando a plástica hollywoodiana pseudo-realista ao máximo, Sirk retorna à Brecht. O estranhamento é criado a partir de uma quebra suave da suspensão de descrença, tornando o filme perceptível como discurso.

O mundo paralelo criado pela estilização intensa transporta a história melodramática para uma realidade onde aquilo é possível, mas acentua o quão irreconciliável aqueles valores são com a realidade fora da tela. É diferente do real somente o suficiente para que essas diferenças chamem atenção para a fantasia, e a dissonância entre a fantasia e a realidade cria um reconhecimento do absurdo da fantasia.

O efeito, entretanto, não é absoluto. Nem toda audiência percebe o estranhamento, e nem todo estranhamento causado pelos meios sirkianos é reconhecido como crítica de um modelo de realidade. A quebra é apenas parcial, aqui, e nem sempre o suficiente.

Mas já não estamos mais em 1950, e, como vimos anteriormente, o melodrama se adapta.

3. MOULIN ROUGE!: CRIANÇAS DA REVOLUÇÃO

Muito de novo surgiu no cinema após a aposentadoria de Sirk. A Nouvelle Vague terminou de libertar a linguagem clássica que já davam indícios de querer novas formas; os Cinemas Novos de todo o globo assumiram o cinema como ferramenta de luta social e de denúncia política, e com a nova geração Hollywoodiana dos anos 70 a própria imagem do mundo se tornou menos plástica, menos higiênica e mais realista: o Apocalipse Now de Coppola favoreceu o calor e a brutalidade da guerra; o Taxi Driver de Scorsese procurou pela realidade nas ruas e nas luzes artificiais que tingiam a noite de verde. É uma visão mais cínica do mundo, onde a ingenuidade não ter mais espaço.

Muito do melodrama, então, assume essa lugar. Ele passa a tomar novamente o papel de apaziguador de ânimos, simplificador de um mundo que se tornava cada vez mais complexo, cheio de entre-tons. E é interessante observar que mesmo o melodrama mais domado agora tinha seu grau de nuance — com a própria moral simplificada se tornando cada vez mais intrincada o melodrama pareceu ganhar, também, corpo, como exemplifica a filmografia de Pedro Almodóvar — , mas que não foi até o início da filmografia de Baz Luhrmann, no início dos anos 1990, que o melodrama novamente se apossou da linguagem cinematográfica hollywoodiana para se transformar em uma estranha reflexão da diferença entre os desejos e a realidade da vida contemporânea — e em uma reflexão aberta sobre si mesmo.

Australiano, Luhrmann também veio de longe para fazer cinema nos Estados Unidos, e assim como Sirk seus filmes tendem à forte estilização; uma que é desta vez ultra radical em comparação ao tecnicolor e aos sets de Sirk, que agora nos parecem quase domesticados.

O trabalho de Luhrmann começa em 1992, com Strictly Ballroom, ainda na Austrália e já um melodrama em vários aspectos. Seu próximo filme, Romeo + Juliet, uma adaptação de uma das mais melodramáticas histórias já contadas, já atende às características de melodrama estilizado, mas é com Moulin Rouge! que finalmente vemos a forma do filme ser tão importante quanto a história — de forma a fazer parte dela de forma integral.

Moulin Rouge! anuncia o próprio discurso, e evidencia o discurso fílmico, em seu primeiro plano: os logotipos das produtoras e estúdios envolvidos na produção do filme aparecem como que cortinas de um teatro, um a um, enquanto um maestro animadamente rege à orquestra que toca a overture dos temas musicais que se seguirão a partir dali. Ao final das introduções a câmera passa através do palco, e adentramos uma Paris do final do século XIX por esse quadro: somos inseridos, da forma mais estilística, e mesmo assim clara, possível, literalmente dentro de uma história. E de uma segunda história, quando Christian, o personagem principal, começa a nos contar sobre seus últimos anos.

Daí para frente, os sets, as iluminação, as cores, os figurinos elaborados e anacrônicos, a maquiagem nos atores — tudo garante um ar de ilusão. Recursos de montagem, aceleração ou diminuição da velocidade dos planos, inserção de gráficos, freeze frames e o voice-over também são importantes para a criação do efeito.

Mas talvez a maior e mais notável estilização de Moulin Rouge! seja seu o aspecto musical. O que poderia vir como uma maior indicação da plasticidade de um universo do que um elenco que de tempos em tempos irrompe em canções? Não como em Cabaret, que transforma o absurdo do musical em número diegéticos, ou Chicago, onde os números musicais são muitas vezes fantasias, em Moulin Rouge os personagens as vezes só… saem cantando. A diegese é confusa, na melhor das hipóteses. O que é real ou irreal passa a rapidamente ser uma escolha do espectador; principalmente quando adicionado o fato de que as músicas escolhidas são anacrônicas em relação ao período retratado: Nirvana, David Bowie, Elton John, Madonna — todos confortavelmente aconchegados no seio da Paris de 1900.

Nenhuma das escolhas estilísticas do filme é, entretanto, arbitrária. Num esforço sirkiano de transformar a ilusão em uma contradição da realidade, o discurso da história melodramática do filme se torna, de certa forma, meta-melodramático. Em um melodrama sobre Christian, que nos conta sobre como seu romance com Satine, uma cortesã do Moulin Rouge, acabou em tragédia, vemos uma crítica ao próprio melodrama.

São separados, por vias também estilísticas, na história, os dois momentos da narrativa — o passado de Christian e Satine, e o presente, onde Christin escreve a própria história em seu quarto.

Na própria cor utilizada pela cenografia de cada ambiente, tem-se uma separação dura de dois mundos: um mundo mágico de grandes amores, dramas, e diversões hedônicas, e de um mundo posterior a tudo isso, onde as consequência de acreditar piamente e ingenuamente nesse universo paralelo são reais e esmagadoras. Temos, essencialmente, a história de um personagem que sofreu o trauma não só da morte da mulher amada, mas o de ter a ilusão de um mundo melodramático — simples, maniqueísta — quebrada.

Numa época onde toda narrativa, seja ela fílmica ou não, parece ganhar marcas de cinismo, até a imaginação melodramática, desejosa de morais simples, ganha consciência do perigo da própria ingenuidade. É através dos mesmos, se adicionados a novos exageros, recursos de que Douglas Sirk que Baz Luhrmann cria novamente, no começo dos anos 2000, o melodrama crítico, dessa vez voltando as capacidades críticas do gênero em direção a si mesmo.

4. E DAÍ?

O melodrama continua mudando. Desde seu início, essa forma de ver o mundo acompanha as morais, tradições, e a ética do mundo que retrata, refletindo os desejos e as crenças mais arraigadas da sociedade vigente. E o mundo mudou novamente, nos últimos 20 anos, e muda cada vez mais rápido. Há novos melodramas, e novas formas de melodrama a surgir. É possível considerar o novo nicho de filmes de super-heróis como um melodrama? Talvez. Se o fizermos, mesmo assim temos aí uma complexidade um pouco maior do que a esperada para o tipo melodramático.

Talvez o cinismo dos anos 1970 tenha realmente mudado o mundo. Queremos, ainda, acreditar em uma realidade simples, de finais felizes, ou, senão felizes, compreensíveis. Queremos o bem e o mal definidos, e queremos poder saber lutar contra eles. Queremos nossos vilões repreensíveis, e queremos não precisar escutar o lado do outro. Mas a narrativa atual de todos os meios, mesmo quando extremamente escapista, parece compelir-nos a tentar ir contra esse instinto.

Da televisão ao cinema, a narrativa melodramática ainda existe simples e digerível à quem a consome, e assim sempre será. Mas não mais isenta daquilo que retrata, e não mais isenta das consequências de sua própria visão. Uma forma de ver o mundo que parece parece poder aprender significa, talvez, que aqueles que a criam estejam aprendendo mais a respeito do mundo que os cerca.

Nossas histórias impossíveis, para usar um termo de Sirk, terão sempre algo a dizer a respeito de nós mesmo.

REFERÊNCIAS

  • HUPPES, Ivete. Melodrama: O Gênero e sua Permanência. Cotia: Ateliê Editorial. 2000.
  • “The Family Melodrama”. In: SCHATZ, Thomas. Hollywood Genres. Random House, New York. 1981.
  • BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination. Yale University Press, London. 1995.
  • ELLIS, Lindsey. Joel Schumacher’s Phantom of the Opera: A Video Essay. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=-m5I_5Vnh6A&t=984s>. Último acesso em: 13 de Dezembro de 2018.

FILMOGRAFIA

  • All That Heavens Allow (Douglas Sirk, 1956)
  • Written on The Wind (Douglas Sirk, 1957)
  • Strictly Ballroom (Baz Luhrmann, 1992)
  • Romeo + Juliet (Baz Luhrmann, 1996)
  • Moulin Rouge! (Baz Luhrmann, 2001)
  • Cabaret (Bob Fosse, 1972)
  • Chicago (Rob Marshall, 2002)

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