Não é só sobre o cinema americano, é sobre… | Opinião

Hugo Schnorrenberger
No Chão da Sala de Edição
5 min readJan 12, 2021

Depois de ler o excelente texto que convida a reflexões de Sergio Alpendre, me senti instigado a dar meus dois centavos na discussão. Primeiro porque eu claramente sou de uma geração diferente, e pontos levantados por ele no texto tocaram em coisas interessantes da realidade vivida por mim.

Essa realidade é uma realidade em que eu vejo pessoas, no meu ambiente universitário, rejeitando até o grande Hitchcock, que contrapõe o dito por Sergio “Hitchcock é permitido por aqui. Ninguém resiste a ele e a seus filmes.” E é uma resistência não só ao mestre do suspense mas ao cinema estadunidense como um todo. E esse ato “anti-imperialista” de salão chega ao limite de “não vejo nada de valor ali”. No entanto, essas mesmas pessoas que dizem isso são as primeiras a exaltar as qualidades em Parasita de Bong Joon-ho.

Sem essa formação cultural-cinéfila — que Scorsese tão sabiamente chama de “visual literacy” — simplesmente não se vê que não existira os filmes do diretor Bong sem Hitchcock. Ou, num outro exemplo, que não existiriam os filmes de Kurosawa sem o cinema de John Ford. Podemos pegar ainda a desconstrução do mito clássico do western, o cinema americano por excelência, feita por Sergio Leone, e que não seria possível sem a influência de Kurosawa que por sua vez recebeu a influência de John Ford. O western que influência o eastern que influência o western novamente. “Ainsi va la vie a bord du redoutable”.

Isto é, não se pode fazer Acossado sem ver filmes de Humphrey Bogart. Não se pode desconstruir padrões da linguagem sem conhecer a linguagem. E não se pode entender o cinema hoje, e a linguagem contemporânea, sem entender o seu caminho até aqui.

Eu poderia prosseguir com exemplos infindáveis, mas acredito que o ponto está feito. O cinema, ou a arte num geral, é feita do que você como artista reproduz e do que escolhe não reproduzir. Tudo bem se negar a reproduzir os signos e manifestações de gênero do cinema hollywoodiano como linha artística pessoal. Mas só se é possível negar o que se conhece.

A minha divergência com o texto de Sergio se dá na pergunta que ele escolheu como título: porque não o cinema americano? O que me levou a pensar na velha máxima de que não existem repostas certas para perguntas erradas.

Para chegar no que eu acredito que seria a pergunta certa, vou explorar uma faceta interessante do problema. Sergio, em seu texto, cita grandes e geniais cineastas como:

“Ford, Hawks, Walsh, mais Orson Welles, King Vidor, Henry King, Samuel Fuller, Nicholas Ray, Robert Aldrich, Brian De Palma, Martin Scorsese, James Gray e o cinema de estrangeiros como Michael Curtiz, Otto Preminger, Billy Wilder, Fritz Lang, Ernst Lubitsch e tantos outros que realizaram tanto e tão bem no exílio americano quanto em suas terras natais.”

O que eu concordo plenamente, e concordo também que exista essa parcela que ele chama de “cinefilia engajada”. Mas, para chegar na minha pergunta, vou sair dos Estados Unidos para elucidar um ponto.

Quando eu assisto a cinematografia italiana eu assisto o De Sica, Rosselini, Visconti e os aprecio como os mestres que são. Porém, eu também vejo o Mario Bava, Dario Argento, Lucio Fulcci e também os aprecio como os mestres que são. No entanto, é muito comum você ter uns citados em detrimentos de outros. Não se aprecia a esses mestres igualmente, e eles também não são iguais em suas prioridades. Uns estão focados nessa “busca pelo real, o documental, o neorrealismo” — como bem pontua Sergio descrevendo a tendência de gostos dessa parcela da cinefilia brasileira — e os outros se enquadrariam mais no que se convém chamar de cineasta de gênero. E é aí que eu acho que fica o problema. Pra mim, a pergunta não seria, então, “porque não o cinema americano?” e sim “porque um tipo de cinema e não o outro?”. Ou seja, pra mim, o problema reside no gênero. Ou no desprezo dessa cinefilia por ele. A visão de que essa estética, no caso a de hollywood, não é detentora de valor. Ou, como Sergio usa de exemplo, um filme de Clint Eastwood, por seus ideias como pessoa, não devem ser levados como nada mais do que um filme imperialista — o que é uma visão muito rasa e acredito que nem precise explicar o porque.

Primeiro vou elucidar a contradição nessa aspiração “anti-imperialista” em não ver filmes hollywoodianos. Por exemplo, quando falamos de cinema japonês é tão frequente ver os nomes de Ozu e Kobayashi como é infrequente ver citado Kinji Fukasaku e Kenji Misumi. E mesmo nas aventuras mais genéricas de Kobayashi, ainda se escuta um “não, mas a maneira como ele fez…” Agora, enaltecer esse cinema, seja o de Ozu, Kobayashi ou até o de Fukusaku ou Seijun Suzuki, por exemplo, em prol de um suposto anti-imperialismo cinéfilo é um ato de extrema indigência intelectual. É apagar todas as atrocidades cometidas, e o sofrimento vivido pela China, por exemplo, sobre o coturno do imperialismo japonês. Por isso, eu argumento, que não é sobre o imperialismo — pelo menos não somente, e caso fosse sobre anti-imperialismo essas pessoas estariam organizadas e construindo um partido revolucionário e não boicotando esse ou aquele filme hollywoodiano — e sim sobre gênero. Já que todos esses cineastas citados por Sergio podem ser (pelo menos por mim) considerados cineastas de gênero.

Um último exemplo disso está na pergunta: Por quê se fala tanto de King Hu e quase nada de Chang Cheh, Wang Yu, Lo Lieh. A conversa normalmente começa e entra em hiato em King e só volta em Ang Lee ou Zhang Yimou. Pelo menos pra mim a maestria no uso de zoom-ins e outs na linguagem de Liu Chia-liang buscando minimizar as distorções laterais da lente evitando o uso de pans é tão interessante quanto a câmera na mão do Glauber Rocha. Mas ainda assim, existe a insistência de que um tem mais valor do que o outro.

Acredito que o cinema nacional de qualquer país é uma síntese dialética das simpatias e das antipatias de um cineasta com o cinema mundial. Por fim, eu digo que advogar por espaço daquele cinema dentro de um contexto de hegemonia e imperialismo cultural terá todo o meu apoio, mas nunca em detrimento de possíveis qualidades artísticas vindas desses mesmos países.

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