O Tigre e o Dragão (2000)

O que falta em King Hu | Opinião

Hugo Schnorrenberger
No Chão da Sala de Edição
4 min readSep 9, 2020

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Existe uma categoria específica de filmes que tem uma hora certa pra chegar. Não é que você duvide da qualidade deles — muito pelo contrário inclusive — mas você ativamente posterga o momento de assistir algo que você sabe que vai gostar. O Tigre e o Dragão é um filme desses pra mim. Teve uma época que ele ficou conhecido por todo mundo. E eu, no auge do meu impeto hipster, decidi por ignorá-lo já que ninguém via as centenas de filmes que eu via do tipo. E esse rancor durou muito tempo. Só agora, após ver Mulan e ter o Wuxia dentro de mim reavivado que eu senti que era a hora; e como era.

Dragon Inn (1967)

Eu pude ver concretizado tudo que eu achava que King Hu deveria ser — para quem não conhece, King Hu é um grande bastião do gênero Wuxia nos anos 60, 70. Pra mim, ver um filme dele é ser constantemente frustrado. Pois King não só detêm uma das melhores noções de composição e cinematografia, ele também detêm, indiscutivelmente, as melhores e mais bem escritas narrativas do gênero. E justamente por isso ele causa um grande desequilíbrio por aliá-las as piores coreografias de luta(ou a inexistência delas). Para Hu, essa parte da narrativa é quase que não importante, então muitas de suas cenas são construções de movimentos de câmera e montagem em que você “entende” uma luta mas não a vê de fato.

Enquanto King Hu é muito bem quisto academicamente justamente por construir as cenas de luta como um esforço da linguagem cinematográfica, seus contemporâneos que faziam filmes como Carrascos de Shaolin, Cinco Dedos de Violência, A fúria do Dragão que são bastiões de coreografia, enquadramentos e montagem não tem esse espaço. Acredito que isso se deve ao fato de que Hu tinha como prioridade suas narrativas e seus temas, enquanto o contraponto tem como prioridade a execução primorosa das características do gênero. Mesmo assim, eu nunca entendi porque você deveria ter um e não ter o outro. E é aí que entra Ang Lee, que é claramente inspirado (como todo cineasta desse gênero) só que sem ser uma cópia de Hu; construindo e complementando em cima das suas referências.

Não consegui achar uma cena de luta em si no youtube, mas com o trailer da para ter uma ideia.

Em o tigre e o dragão, dirigido por Ang Lee, Chow Yun-fat é um antigo mestre chamado Li Mu Bai que quer aposentar a espada (batizada de Destino Verde), que representa um grande orgulho e uma grande sina pela vida levada; as escolhas feitas e as oportunidades perdidas. Ele a entrega para Michelle Yeoh, que atua outra espadachim companheira de Chow, que também sofreu diretamente das escolhas feitas por ele. Yeoh é encarregada de levar a espada até um antigo amigo deles, onde ela deve ficar e eles estarão longe de seu peso em memória e sua influência presente.

Michelle Yeoh em O tigre e o Dragão (2000)

Após a apresentação do status quo, isto é, quando a história realmente começa, temos um momento que é comumente chamado, em teoria do roteiro, de incidente incitante (ii). O tigre… faz uma coisa impressionante ao aliar as expectativas do gênero (i.e. cenas de luta) às construções narrativas de roteiro tanto em coreografias, que são construídas com uma progressão impressionante de intenção e obstáculo, quanto em momentos da narrativa que elas acontecem. No filme de Ang Lee esse ii coincide perfeitamente com a primeira luta do filme (que acontece aos 17') quando uma Ladra rouba a Destino Verde dando início a uma cena de perseguição pelos telhados e luta intrinsecamente conectadas (no maior estilo Wuxia que você puder imaginar).

Nesse filme, momentos de luta são momentos de personagem. Yeoh ataca puxando e segurando, as vezes trazendo de volta para o chão, enquanto a Ladra se defende se desvincilhando, esquivando e tentando subir. Antes mesmo de alguém falar alguma coisa, nós sentimos seus personagens por suas escolhas de golpes. Mas, como todo filme de Kung Fu, a coreografia não é nada se você não souber recorta-la com a câmera e Ang Lee, aliado ao diretor de fotografia Peter Pau e ao editor Tim Squyres, enquadram os movimentos com uma prioridade de linhas incrível e uma ligação entre planos elegante. Explico: quando os golpes das personagens são horizontais, isto é, fazem caminhos menores entre o atacante e seu alvo eles são filmados de maneira a criar linhas no quadro horizontais e diagonais, i.e., com a câmera paralela ao chão. Enquanto alguns momentos em que a coreografia se concentra em golpes circulares, Ang Lee escolhe por filmar de cima, contrastando com as linhas verticais anteriores. Criando uma complexidade e ao mesmo tempo demonstrando um respeito pela coreografia de Yuen Woo-Ping (dispensa apresentações).

Ao contrário de King Hu, Ang Lee e outros diretores como Zhang Yimou (Herói, Clã das adagas voadoras) preenchem a lacuna que eu acredito faltar em King, que é aliar as melhores histórias com as melhores coreografias. Em suma, Lee respeita as expectativas de gênero e demonstra — como tantos outros como ele — que quando se cumpre bem esse quesito, você tem o espectador nas suas mãos e liberdade para fazer com ele o que bem entender no desenrolar de sua história.

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