O recorte feminino da violência em You Were Never Really Here | Crítica

Hugo Schnorrenberger
No Chão da Sala de Edição
5 min readJul 13, 2019

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Spoilers!

Existem momentos em que se assiste um filme e ele é diferente. Simplesmente diferente. Mas, ao mesmo tempo, ele parece igual aos filmes que se vê normalmente. É uma diferença quase intangível. Uma diferença primordial. Uma diferença de prioridades. É esse sentimento que eu tenho quando eu vejo um filme feito com um olhar feminino. É esse o sentimento que eu tenho quando vejo um filme da diretora e roteirista escocesa Lynne Ramsay.

Bom, tudo começa quando o livro You Were Never Really Here de Jonathan Ames foi entregue à Lynne Ramsay, com uma proposta de “você talvez vá gostar disso”, ela se propôs a escrever um filme de ação, um filme de gênero, per se, coisa que ela nunca tinha tentado. Quando a decisão estava feita ela entrou em contato com o autor e disse “olha, eu vou fazer essa adaptação, mas eu preciso avisar que eu não sei o que vai acontecer, não sei o que vai acontecer quando eu tentar fazer isso”. Bom, o que acontece, basicamente, é poesia.

O filme, estrelado por Joaquin Phoenix e escrito e dirigido por Lynne Ramsay é deslumbrante. Lynne, ao adaptar uma obra de gênero, cria algo atmosférico e sinestésico, o que bate de frente com a obra de Ames (que é um excelente exemplo de ficção de gênero). A premissa — que é idêntica em ambas as obras — basicamente é: Um veterano de guerra chamado Joe ganha a vida resgatando mulheres presas em cativeiros. Após uma missão mal sucedida em um bordel de Manhattan ele se encontra com toda a sua vida desmoronando por causa dessa falha.

Ambas as histórias seguem basicamente a mesma linha narrativa, com poucas mudanças por parte de Ramsay, mas que implicam em obras bem diferentes. A abordagem da roteirista-diretora é muito mais humana, no sentido de ser mais doce com as informações, ela busca muito mais inferir coisas do que de fato explicá-las; O que acarreta numa obra muito mais sentida — poética — e atmosférica do que objetiva e consequencial. O protagonista de Ramsay fala muito menos e se explica muito menos, em contrapartida na narrativa onisciente da terceira pessoa de Ames nós temos muitas explicações sobre comportamentos e acontecimentos da vida de Joe. Nós entendemos muito mais as coisas com um recorte bem específico. Quando Jonathan Ames se propôs a escrever esse livro ele queria fugir da comédia que ele normalmente fazia e escrever um page-turner, i.e. um livro que você simplesmente não consegue fechar até terminar; e devo dizer que ele conseguiu, o livro dura umas duas horas, mas são duas horas que você não consegue fazer outra coisa a não ser ler.

Pessoalmente, eu prefiro a versão de Ramsay, pois com ela nós sentimos e imaginamos uma vida de traumas do protagonista. As violências domésticas sofridas nas mãos de seu pai são sentidas e não necessariamente entendidas. Todo um histórico na guerra de traumas é sentido com apenas uma cena. Nada nunca é explicado de fato, nós temos uma representação do que é uma vida de uma pessoa traumatizada de novo e de novo e de novo. Temos um lampejo do que é viver fugindo, e sendo alcançado, pelo passado a cada segundo de sua vida. Eu costumo dizer que os filmes com violência, quando feitos por mulheres, são muito mais violentos. Existe uma certa sutileza ao lidar com a violência por parte delas que a torna muito mais agressiva e muito menos explícita. O exemplo perfeito disso está na cena em que ele entra no playground (nome do local onde são mantidas as meninas escravas sexuais). A cena acontece basicamente do mesmo jeito em ambas as obras. No livro nós adentramos uma descrição dos inimigos que vão se apresentando e de como Joe lida com a situação, acertando aqui um, ali outro, duas vezes um terceiro, etc (devo dizer que é muito bem escrito e detalhado e que recomendo a leitura, inclusive). Já na adaptação, nosso ponto de vista muda. A escolha de perspectiva passa a ser a de câmeras de segurança — ideia que Lynne Ramsay teve ao analisar imagens de violência do mundo real, onde basicamente elas são registradas por essas câmeras. Ao fazer isso nós temos algo tão mais violento do que o simples e comum recurso, quase pornográfico eu diria, de retratar a violência de forma explícita. Embora ela esteja presente no filme, em cenas com a da cozinha — cena essa que eu não me atrevo a tentar descrever aqui.

Outro ponto interessante que vale ressaltar — que não existe no livro, já que esse acaba antes dele resgatar a menina — é a cena do resgate. Joe falha em praticamente tudo na sua vida. Pra ele, ele sempre foi fraco de mais, impotente demais, burro demais. O personagem vive uma vida de auto depreciação. Quando ele chega no quarto para resgatar Nina das pessoas que a tiraram dele, o sequestrador já está morto. Ou seja, na visão dele, ele falhou novamente, pois a sua incompetência fez com que Nina fosse exposta a violência do homicídio.

No que tange o atmosférico, Lynne tem todo um trabalho de mostrar recortes do mundo, onde o tempo inteiro, apesar da vida de violência vivida por Joe, ele se encontra rodeado por violência, de certa maneira imerso nela. O mundo é violento e ninguém está nem aí. Essa atmosfera é a responsável por justificar a ação de Joe no final do filme, ação essa que culmina num discurso narrativo na última cena. Depois que Nina vai ao banheiro no estabelecimento que eles foram comer, Joe, não conseguindo encarar a sua suposta falha com ela, pega sua arma e atira na própria cabeça. Ao mesmo tempo se matando e expondo a audiência a cena mais explícita do filme. Seu sangue começa a se espalhar pela mesa e na mesma cadência o som do ambiente — conversas, talheres, copos, etc — aumenta e se espalha. Joe, e nós, estamos submersos em sangue e em conversas e barulhos. Conversas sobre comida, sobre o cotidiano, sobre banalidades. Lynne aponta que o mundo é tão violento, tão corriqueiramente violento, que a ação de Joe não tem nada de extraordinária. Nada de especial. Afinal, quem nunca foi num café sem alguém atirar na própria cabeça? Você? Bom, é possível que você só não tenha percebido.

Referências:

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