Histórias de Guerra

Stray K
Nobody Cares
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5 min readOct 31, 2017

Amizades acabam, amizades nascem. No meio disso, o esporte.

No mundo “politicamente correto” de hoje em dia, é difícil imaginar que uma criança assista filmes de guerra. Mas quando eu era criança, alegava razões escolares / históricas para que meu pais me deixassem assistir com eles alguns filmes clássicos como Apocalypse Now (de Francis Ford Coppola), Nascido para matar (de Stanley Kubrick), Platoon (de Oliver Stone), Império do Sol (de Steven Spielberg), Nascido em 4 de julho (de Oliver Stone)sempre dava certo e eles só me pediam para sair da sala quando aparecia alguma cena mais forte / inadequada para a minha idade (“Vai tomar uma água!”, era o código).
De fato, esses filmes me ajudaram muito na escola a assimilar acontecimentos históricos e, na vida, me fizeram refletir sobre o impacto das guerras na história dos povos.

Em um fórum (de torcidas de futebol) do qual participo, os tópicos são separados por continentes e países. Desde 2012, nunca vi nenhuma hostilidade entre hinchas (como são chamados os torcedores argentinos) e torcedores brasileiros. Em qualquer interação sempre foi mantido o respeito.

O mesmo não acontecia entre os ultras (como são chamados os torcedores europeus — na Inglaterra, os termos utilizados são hooligans e casuals; na Itália, os torcedores são chamados tifosi).
Nos tópicos abertos a todas as torcidas, o clima entre eles sempre foi muito hostil (sem brincadeiras, só ofensas mútuas), principalmente entre aqueles da região dos bálcãs (sim, eles se odeiam!). As discussões eram sempre pautadas por política, nacionalismo, guerras…

Eu me assustei quando um desses grupos de ultras começou a me mandar mensagens perguntando sobre o futebol (estádios e torcidas) aqui no Brasil (eles planejavam vir à Copa do Mundo de Futebol de 2014 e queriam algumas dicas). Começamos a trocar informações inclusive sobre nossos países, idiomas e, no meio dessas conversas, chegamos ao tema “Guerra da Iugoslávia” (país extinto em 1991, que deu origem à Croácia, Bósnia e Herzegovina, Eslovênia, Macedônia, Montenegro e Sérvia).
Esse grupo de ultras croatas se mostrou surpreso quando comentei já ter assistido documentários e filmes que retratavam aquele período.

A quem tiver curiosidade, segue a lista:

Vukovar, jedna priča (1994), de Boro Drašković

Cena de Vukovar, jedna priča (1994): Antes da guerra, havia casamento entre povos que passaram a se odiar

Esse filme mostra como era a vida na antiga Iugoslávia antes de sua dissolução.
Sérvios e croatas conviviam pacificamente (havia até casamento entre pessoas dessas etnias) até que, o nacionalismo alcançou proporções inimagináveis que culminou em mortes de civis, estupros coletivos, genocídio / limpeza étnica. Chama a atenção que o filme foi gravado na cidade de Vukovar (na fronteira entre Croácia e Sérvia), que até hoje conserva paredes esburacadas pelas rajadas de fuzil e prédios em ruínas para que as pessoas nunca se esqueçam dos que morreram na guerra.

2. Harrisson’s Flowers (2002), de Élie Chouraqui

Harrisson’s Flowers (2002): Romance? Filme de guerra? Tem bombas, execuções… tire suas conclusões

Quem imagina a atriz Andie MacDowell (protagonista de filmes românticos) estrelando um filme de guerra? Ok, esse filme é classificado como “romance”, porque ela vai à Vukovar à procura de seu marido, um fotógrafo que foi cobrir a Guerra da Iugoslávia e foi dado como morto.
Sem acreditar que o marido tenha morrido, ela decide ir atrás dele para encontrá-lo e levá-lo de volta para seus filhos.
Tem cenas de guerra sim, mas não tão fortes quanto as do filme anteriormente citado.

3. Once Brothers (2010), de Michael Tolajian

Once Brothers (2010): Vlade Divac (à esq.) e Dražen Petrović (à dir.) eram amigos… até que veio a guerra

Aqui uma dica de documentário (produzido pela ESPN) que mostra como a Guerra da Iugoslávia teve impacto na vida de dois amigos: Vlade Divac (sérvio) e Dražen Petrović (croata). Entre 1986 e 1990, ambos jogavam na NBA (Vlade pelo L.A Lakers e Dražen pelo New Jersey Nets) e na seleção da Iugoslávia, no mesmo período.
Foi justamente quando a Iugoslávia ganhou o Mundial de Basquete em 1990 (contra a Argentina), que a amizade dos dois estremeceu. Um torcedor comemorou agitando a bandeira da Croácia, Vlade Divac puxou a bandeira, se tornou odiado pelos croatas e perdeu a amizade de Dražen Petrović.
Para quem não sabe, Dražen Petrović é uma espécie de Ayrton Senna dos croatas. Morreu em um acidente automobilístico, no auge da carreira, e até hoje o seu túmulo é local de peregrinação dos fãs.
Documentário excelente, com depoimentos de estrelas da NBA que entraram em quadra com os dois ex-amigos.
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O curioso é que, o estopim da Guerra da Iugoslávia, acreditem, foi um jogo entre Dinamo Zagreb (time croata) e Crvena Zvezda (time sérvio), em 1990. Antes do início da partida, já havia briga entre as torcidas (nas ruas), dentro de campo (entre jogadores das duas equipes) e nas arquibancadas (entre torcedores e policiais).

Quem podia imaginar que a guerra começou com um jogo de futebol?

Em 2014, os tais ultras (de 3 torcidas diferentes, incluindo 2 arquirrivais) vieram e num intercâmbio futebolístico, fui sua guia aqui em São Paulo. As conversas eram predominantemente em Inglês (como no fórum), em Croata e Português (eu falando o que aprendi com eles e eles falando o que aprenderam comigo).
Perguntei a eles sobre a guerra. Ouvi muitas histórias impactantes, como a de Tomislav: “Meu pai morreu na rua da minha casa, fuzilado pelos sérvios, quando eu tinha 11 anos.”.
Ouvi também a de Terzic que aos 8 anos (no meio da noite, de pijama) foi arrancado de casa com os irmãos, a mãe e a avó e levado para um campo de refugiados de guerra. De lá foram levados para a Suíça e só reencontraram o pai depois que a guerra acabou.

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