Mixtape

Stray K
Nobody Cares
Published in
5 min readJan 23, 2018

“Escuta isso aqui. Me fala se não é bom…”

Eu tinha 11 anos quando cheguei naquela escola. 5º ano do Ensino Fundamental e eu não conhecia ninguém ali, afinal, eu vim de outra cidade (onde deixei meus melhores amigos). Era um recomeço (e dos mais difíceis). Meu pai havia falecido e minha mãe decidiu mudar-se para São Paulo trazendo os dois filhos (eu e meu irmão mais velho).

No meu primeiro dia de aula, aquele estranhamento… ninguém me deu as boas vindas (nem mesmo os moleques da minha idade). Mal olharam na minha cara — pareciam estar muito ocupados resolvendo equações ou rabiscando qualquer coisa em seus cadernos.

Apenas uma garota de óculos e semblante sério teve a educação de me olhar e movimentar a cabeça positivamente como se silenciosamente me dissesse: “Olá”. Retribuí da mesma forma.

Os dias foram se passando e eu continuava sendo o novato ignorado. Sozinho num canto do pátio, passei a observar discretamente cada um dos meus colegas de sala, incluindo a garota que gestualmente me cumprimentou.

Percebi que ela costumava andar com outras três garotas (de outra sala). Elas levavam seus walkmans e, durante o intervalo, trocavam impressões sobre o que ouviam. “Escuta isso aqui. Me fala se não é bom…”, disse a garota da minha sala. Elas faziam uma espécie de rodízio, ora avaliando e compartilhando músicas, ora trocando discos entre si.

Estranhamente, eu dava um jeito de parecer invisível mesmo estando a uma curta distância daquele quarteto, e apesar do barulho dos outros alunos no pátio, eu queria poder ouvir a conversa delas. Naquela escola, usávamos uniforme, de modo que ninguém ia com camiseta de banda. Como então eu saberia sobre quais bandas elas falavam? Minha curiosidade era grande.

Os meses foram passando e eu já tinha pelo menos uns dois colegas da minha sala, mas na hora do intervalo eu ainda olhava para aquele grupo entusiasmado. Achava interessante que no pátio, a garota de óculos (eu já sabia que o nome dela era K.) era bem diferente do que era na sala de aula (calada, concentrada, sempre séria). Na hora do intervalo ela era alegre, contava piada, ria com as amigas, parecia ser uma pessoa bacana.

“Já viu o jeito como ele olha pra ela?”, disse Ricardo (um dos colegas de sala). “Ela é estranha, não é de muita conversa”, advertiu Cristiano. “Cuidado…ela tem cara de brava. Capaz de bater em você, hein? Hahahaha”.
“Do que vocês estão falando?”, perguntei. Perguntei por perguntar mesmo, porque sabia que eles estavam falando da K. De fato, eu já não conseguia disfarçar que era para ela que eu olhava, fosse no pátio, fosse na sala de aula.

Eu tinha apenas 11 anos. Ela também. Éramos dois pirralhos mas, pelo menos da minha parte, havia algum interesse (não físico, afinal, nem meu primeiro beijo eu havia dado ainda). Queria simplesmente ser seu amigo, caminhar ao seu lado pelas ruas do nosso bairro falando sobre música (mesmo sem ainda saber do que ela gostava exatamente), chamá-la para ir comigo a alguma loja de discos, quem sabe…

Numa noite qualquer, eu e meu irmão entramos numa loja de discos e adivinha quem estava lá? Sim, a K. Ela e uma moça que eu supus ser sua irmã. Estavam no caixa, pagando por um disco (já embrulhado) quando ela (K.) me viu e sorriu (discretamente mas, sorriu). Foi a primeira vez que a vi sem óculos e sorrindo. Foi a primeira vez que notei a cor de seus olhos (castanho claros, feito mel).

Quis muito vê-la no dia seguinte na escola. Já havia um pretexto para uma conversa quando ela estivesse sozinha.

“Ei, e aí? O que compraram ontem na Billbox?”, perguntei
“Minha irmã comprou um disco do Tears for Fears”
“E o que você trouxe hoje no seu walkman pra mostrar pras suas amigas?”
“Trouxe uma fitinha do Angra”, ela respondeu.
“Sério? De qual disco?”
“Reaching Horizons, uma demo tape deles gravada 1 ano antes do Angels Cry”

E foi assim que começamos a conversar. Sobre música. Não só metal mas muitos outros estilos (hardcore, punk, synth, darkwave e tantos outros). Durante o intervalo, éramos eu, ela e as 3 garotas da outra sala (mas com ela, a conversa se estendia durante o trajeto de volta para casa).
Passamos a emprestar discos um para o outro, a trocar dicas sobre bandas.

Até que minha mãe decidiu mudar de cidade no ano seguinte e eu precisei me despedir da K.
Dei a ela uma mixtape (com as músicas que me faziam lembrar dela) e uma carta dizendo o quanto ela faria falta na minha vida.

7 anos depois, voltei a São Paulo. Dessa vez, passando férias na casa do meu irmão. Fomos à pastelaria que ele frequentava aos finais de semana e qual não foi minha surpresa ao ver que a filha dos donos era a K.?
Nos abraçamos forte e ninguém entendeu nada. Depois contamos ao meu irmão e aos pais dela que estudamos juntos durante o 5º ano do Ensino Fundamental (passamos aquela tarde conversando, colocando 7 anos de conversa em dia).

À noite, saímos com alguns colegas daquela época, com quem ela ainda mantinha contato. Na pista pouco iluminada do Madame Satã, quando começou a tocar uma das músicas da mixtape que dei a ela, nos beijamos (eu sabia que aquela era a música que ela queria aprender a tocar algum dia).

Aquele beijo demorou 7 anos para acontecer mas ficou marcado na minha memória até hoje como o “meu primeiro beijo” (mesmo sem ter sido).

--

--