Sussurros Sabor Manga

Evelling
Noites Veladas
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3 min readApr 21, 2021
Photo by Deon Black on Unsplash

Desenhava os lábios cuidadosamente com o lápis marrom. Um movimento novo, ainda tímido, para as suas mãos que, assim como o restante de seu corpo, ainda tremiam nessa jornada de autodescoberta. Contornar a boca foi a forma que encontrou para acalmar-se um pouco. Ficara com o coração disparado de ansiedade quando abriu a caixinha dos correios e encontrou um envelope pardo em seu nome. Finalmente havia chegado. A única lembrança nítida de uma noite única: um exótico brilho labial.

Passou o dia inteiro lutando contra a vontade de rasgar o envelope e usar o cosmético imediatamente. Pensou nos créditos gastos com 4G enquanto esquadrinhava a internet em busca daquele produto, que não estava disponível em qualquer revista Avon. Inúmeras vezes, escutou o sussurro, tão baixo que não tinha timbre, ecoar dentro de seu ouvido novamente: “Gostou?”.

A lembrança do toque úmido de uma língua contornando a sua orelha fez o ar faltar. Os pelos do pescoço se ergueram, em uma reação automática à memória tão cuidadosamente preservada. Foi necessário lavar o rosto de novo. Água fria.

Havia um plano. Banho, o mesmo perfume, a mesma roupa. O brilho que não era seu, mas passara a ser o seu sabor preferido. E seguiria o plano, mesmo que com esforço. A hora nunca se arrastou tanto. Era preciso que fosse noite. Era imprescindível a escuridão.

Por fim, estava ali, desenhando os lábios com o lápis, encarando a latinha recheada com um creme num tom entre laranja e rosa. Deu uma última olhada no espelho do banheiro, arfando. Decidiu levar a lata pro quarto. Sentou-se na cama, de frente ao espelho do guarda-roupa, e deu play no Spotify. A tensão era enorme. Cada músculo de seu corpo retesava. Admirou-se por um tempo. Então, passou o dedo indicador no brilho e, após colorir os lábios, passou a própria língua no dedo lambuzado. Eriçou-se: era isso. Era o gosto que tanto desejava sentir de novo.

Enquanto deliciava-se com o próprio dedo, lembrou-se da noite única. Os cheiros de álcool e chiclete de menta dominavam o ambiente. Essa mesma música tocava de fundo, meio bate estaca, meio rock’n roll. Um som hipnótico e sexy. Não havia barulho de vozes, nem movimentos. Só a música. De repente, uma profusão de mãos percorriam as suas costas. Safadas, as mãos enfiavam-se por dentro de suas roupas, soltando botões, abrindo fechos. Os hálitos se revezavam. As emoções eram muitas. O descontrole apavorava, mas também seduzia.

Por alguns segundos, os toques pararam. Talvez a safadeza tivesse acabado. Talvez a sua paralisia tivesse causado desinteresse. Foi quando a sua boca foi invadida. O beijo tinha calor, lábios, língua, dentes, vácuo, saliva, mordidas, sabor. E não tinha fim. Sentiu-se indo para trás até encostar em uma parede. O sussurro quente no ouvido. Balbuciou algo em resposta, nunca lembrou o que. A apalpação voltou. De costas. De frente. De costas de novo. Uma mordida na bunda… Desnuda!

Não entendia como, ou quando, ou onde. Havia um corpo contra o seu corpo. Havia pele, pelos e calor. Muito calor. O sangue fervia. Um cheiro de feromônio. Cabelos puxados. Pescoços mordidos. Sofreguidão. Tesão. Prazer. Gozou de estremecer.

Passou-se um tempo e tudo ficou calmo. Tão calmo que apagou sem noção das horas. Despertou sem companhia. Corpo coberto. Marca de chupão no pescoço. Fim de festa. No breu da sala escura, nada ficou. Nem rosto, nem nome, nenhuma rede social ou número de WhatsApp. A única certeza de todo aquele turbilhão de sensações era o sussurro quente ao pé do ouvido: “Gostou? É vegano… Leva manteiga de manga…”

Texto escrito — L.Q.

Nota da editora: Esta noite nos foi cedida gentilmente por uma pena amiga. Nosso pequeno sarau fica feliz de ter mais um visitante. Esperamos que apreciem.

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Onde meu mundo se encontra com o teu. Realidade, ficção, desejos e sonhos… Todos abundantes nestas paragens.