Contra a “adultização”, a burca é a solução?

Num contexto tomado pelo pânico moral em relação à sexualidade, até militantes de esquerda e feministas se aproximam do moralismo avassalador daqueles que nos matam.

Millie Bobby Brown, em dois momentos diferentes entre uma temporada e outra de Stranger Things

Escrevi ontem um post comentando de maneira sucinta o caso que está sendo propagado entre militantes de diversas causas como “a adultização de Millie Bobby Brown” (atriz de Stranger Things, que tem 13 anos). Nesse post, lembro que é complicado falar em “adultização” quando estamos lidando com adolescentes que, se bem me lembro, estão justamente… se tornando adultos. Chamei a atenção para o fato de que é parte da adolescência explorar a própria sexualidade e os códigos e símbolos corporais de adultos, de diferentes maneiras.

Recebi mensagens bastante mal-educadas em resposta. Espantosamente, de gente que também acha, como eu, um absurdo que o MBL consiga censurar uma exposição no MASP sobre sexualidade, para menores de 18 anos; no entanto, parecem ter muito mais em comum com o referido grupo de extrema-direita do que imaginam.

Algumas pessoas interpretam que a gente assumir que crianças e adolescentes têm sexualidade e agência é um perigo, pois justificaria ou daria argumentos para justificarem pedofilia e abusos.

Não faz nenhum sentido, sobretudo se a gente pensar que mulheres, homens adultos têm sexualidade e agência e isso não é argumento pra ninguém justificar nenhum abuso ou violência. Pois dizer que um sujeito tem agência não é o mesmo que dizer que ele/a está imune a abusos ou que deve ser responsabilizado por tudo que acontece em sua vida. Ter agência não é o mesmo que dar consentimento prévio para qualquer coisa que qualquer pessoa faça com você, certo?

Juntamos isso com o moralismo e o pânico moral em torno do sexo — em que estamos mergulhados esses tempos -, e as experiências traumáticas de quem não pôde viver em segurança sua sexualidade, e aí, tcharam: temos feministas e pessoas de esquerda reivindicando uma suposta infância ou pré-adolescência/adolescência desprovida de sexualidade, “pura” — algo que se sabe cientificamente que não existe.

Ou reivindicando que politicamente seja importante afirmar isso e invisibilizar essa sexualidade. Ou seja, uma posição que ignora que boa parte dos traumas e do que gera ambientes violentos e não-seguros para o exercício da sexualidade é justamente a censura, o tabu, o calar dessa sexualidade, a recusa em entendê-la enquanto tal.

Inclusive é aí que está o moralismo e o pânico moral: no fato de que é a partir de um medo ou trauma vivido que se estabelece uma régua fixa de quais práticas são aceitáveis ou não nelas mesmas, para os outros, para os demais. em vez de pensar estrutura, relações sociais, contexto, etc. Na premissa de que há algo essencialmente bom e algo essencialmente mau.

O problema é que esse tipo de posição não só despolitiza o debate (porque inevitavelmente vai parar em propostas que envolvem a mudança de comportamento individual como solução), como também alimenta a relação pouco saudável com o sexo e a sexualidade, que são ingredientes essenciais do problema que se diz querer combater.

Esses argumentos se apoiam na ideia, premissa e/ou sensação de que há algo do qual é preciso “proteger nossas crianças”, e se toma que esse algo é o sexo, a sexualidade — e não as ações concretas de adultos que praticam essas violências, ou uma cultura de violação do corpo da criança, ou uma cultura anti-pueril que trata crianças como objetos ou corpos públicos incapazes e sem agência, etc. Se a gente consegue pensar nisso tão bonitinhamente no movimento feminista quando discute estupro, por que acha que precisa ir muito longe pra entender isso em relação aos abusos e violências a crianças? A gente reforça tanto que não é por usar burca e ter seu corpo invisibilizado como objeto sexual de maneira mais direta que uma mulher deixa de ser estuprada… Por que achamos que a solução para abusos contra crianças seria botar burca nelas (metaforicamente falando; a burca aqui indica a tentativa de anular a existência sexual de um corpo humano determinado)?

Por trás disso tem a velha construção moral de que o sexo é algo ruim, perigoso, sujo — e de que para ser bom, limpo, gostoso, só se for de um jeito específico que é o jeito “correto”. É a mesma base moral da cruzada antipornografia, da proposta de uma suposta pornografia feminista com olhar feminino (o que quer que isso signifique), da necessidade de chamar um certo tipo de pornografia de pós-porn, do estigma sobre trabalhadoras e trabalhadores do sexo (sexo por amor = lindo, sexo por dinheiro ou como meio de vida = degradante), e de tantas outras questões que estão no centro do debate público mas, sobretudo, no centro das divergências e polêmicas entre feministas pelo menos desde os anos 1970.

Um amigo comentou mais cedo:

“Quando o assunto é sexo, até quem é de esquerda é quase sempre de direita”.

Infelizmente tendo a concordar.

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Marília Moschkovich
NOMONO — Sexualidade, Relações Livres & Não-Monogamia

socióloga-antropóloga, escritora-poeta, feminista-comunista, antirracista, não-mono/relações livres