Desejos marginais e a superação do moralismo

Ao comentar o caso de um ator pornô especializado em retratar pedofilia, uma reflexão que fiz sobre a complicada relação entre desejo e práticas sexuais teve uma repercussão gravemente reacionária entre jovens de esquerda. Às vésperas da posse de um presidente que ataca diretamente a autonomia sexual das pessoas, o debate é sério e merece atenção: para que nós, que lutamos deste lado, não sejamos tragados pelo obscurantismo que nos leva de volta ao século XIX e possamos enfim construir o socialismo do século XXI.

Há alguns dias, quase como um presente de Natal para a tradicional Família brasileira (inclusive as de esquerda, que podem ser bem tradicionais também, como discuto mais adiante), escrevi um post curto no Facebook sobre o caso de um ator pornô que, tendo 1m de altura e parecendo criança por causa de uma condição física, se especializou em pornografia com temática de pedofilia. No post, eu propus uma reflexão sobre como a lógica da fantasia, do espetáculo, do imaginário é uma — e a lógica da ação concreta, da prática, é outra. Sigo aqui a linha de raciocínio desse primeiro post que escrevi antes do Natal e, em seguida, amplio a reflexão sobre o caso e sobre a relação entre socialismo revolucionário e a necessidade de um debate qualificado sobre autonomia sexual (bem como as barreiras e dificuldades para tal).

O espaço da fantasia e o fetiche sexual: como encarcerar desejos?

Penso em como é saudável que o imaginário possa ser imaginado, porque ali ele não machuca ninguém, pois mais que a fantasia seja justamente, às vezes, de machucar ou ser machucado/a (um exemplo clássico: fetiche de estupro!). Para isso é preciso uma série de regulações e ferramentas, para que a sexualidade seja saudável e não seja confundida com atos de violência. Quando a gente reforça tanto, no feminismo, que estupro não é sexo, não é ato sexual, é justamente essa diferença que estamos colocando: fetiche de estupro, consentido, simulado, é sexo. Estupro não é sexo. São duas coisas qualitativamente diferentes e que são produzidos no contexto de relações sociais distintas.

Nesse quadro, desenho animado (oi hentai), animações 3D, atores adultos que se parecem com crianças, são todas estratégias para que viver o imaginário e a fantasia não impliquem em situações que necessariamente machucariam uma pessoa ao produzir esses filmes (em tempo: sim, a rotina dos trabalhadores que produzem esses filmes é em geral permeada de relações abusivas de trabalho, de atores e atrizes pornô até estagiários de estúdios de animação; mas a questão aí é justamente regulamentar e fiscalizar as condições de trabalho como fazemos em tantas outras profissões, ou pelo menos lutamos para que seja feito).

No post original eu mencionei que essa proposição que faço é difícil de entender, num mundo em que o desejo por si só já é o crime — mesmo quando esse desejo é totalmente comum (como o fetiche de estupro ou o masoquismo, o fetiche de dominação, etc). Sabendo disso, ainda disse que talvez eu devesse apagar o tal post, já que como Simone de Beauvoir e Gayle Rubin eu provavelmente seria chamada de apoiadora de pedófilos, defensora do estupro e outros absurdos. Já havia até escrito sobre esse tema antes, diante de uma discussão completamente imbecil sobre “adultização” da atriz não-sei-quem-da-série-Stranger-Things (aqui no Medium deve ter algum texto meu sobre esse assunto também) mas deixado o post restrito a amigos.

Desta vez resolvi deixar o post público e causar, mesmo. Penso que nesses tempos a radicalização das ideias e percepções sobre o sexo me parece cada vez mais necessária, ou seremos levados na onda obscurantista do retorno ao século XIX que já contamina o Estado brasileiro e a nossa educação. Nós, que pretendemos construir uma sociedade livre de toda forma de exploração e opressão, não podemos deixar que isso nos aconteça. A proposição de radicalizar as ideias sobre gênero, sexualidade e sexo é necessária como a proposição de radicalizar as ideias sobre como precisamos mudar a estrutura produtiva.

Repercussão: como debater livremente a autonomia sexual?

Eu esperava ser atacada, por esse post, pelos grupos que já me atacam há anos por causa de meus escritos e posições sobre trabalho sexual, pornografia, não-monogamia, aborto: radfems brasileiras, conservadores religiosos, bolsominions e MBLs da vida. A novidade da vez foram as pessoas que se reivindicam de esquerda, às vezes até revolucionária, socialistas e/ou marxistas. Pessoas que não constroem nenhuma organização política reivindicando que eu seja expulsa daquela que construo com diversos e diversas camaradas no cotidiano há quatro anos (as mesmas pessoas que provavelmente depois chiariam falando em stalinismo se o PCB expulsasse alguém por um post de internet; ah, ironias da vida). Pessoas que não têm formação nenhuma em estudos de gênero e sexualidade, que acabaram de entrar na militância, que provavelmente se formaram lendo textos na internet sem o apoio de um grupo de estudos organizado; enfim.

Eu sabia que a questão trazida era polêmica. O que não esperava era tão pouca abertura a um diálogo mínimo, a uma reflexão mínima, e tanto comportamento de turba raivosa. Ingênua eu? Talvez. Talvez me baseando na profundidade do debate interno que venho presenciando em várias instâncias do PCB ao longo dos últimos anos, tenha esquecido que não é sempre assim.

Essa repercussão me lembrou de diversos casos e de uma crítica fundamental e urgente: o maior desafio do marxismo e do socialismo neste século será o sexo. É onde menos avançamos e, como lembra Wendy Goldman no belo “Mulher, Estado e Revolução”, quando não avançamos o pensamento e as relações sociais em certa esfera no próprio processo de construir condições para uma revolução, não há revolução que traga solução ou autonomia em relação àquilo.

Nos anos 1980 a antropóloga Gayle Rubin quase apanhou porque propôs uma conferência sobre formas marginais de sexualidade num encontro feminista na Barnard (EUA). Ela foi lá linda e radiante de roupa de couro e tudo e teve que ir embora pelo risco das ameaças que sofreu. Ela conta, no “Deviations” (uma coletânea de seus textos) como era muito mais tranquilo ser abertamente lésbica no meio militante da época, do que ser abertamente praticante de BDSM (que envolve, entre outras possibilidades, fetiche de estupro, diferentes formas de dominação, dor, agressividade/”violência consentida”, etc).

O caso dessa semana me faz pensar que parece que, apesar de os estudos de gênero e sexualidade terem avançado nos últimos 30 anos (quem quiser e puder ler minha tese sobre a área de estudos de gênero e o conceito de gênero no Brasil, está lá na minha página no academia.edu em PDF a versão que foi defendida, em inglês), o momento político e histórico não deixa a coisa ser muito diferente hoje.

Há alguns anos umas amigas maravilhosas começaram um blog chamado Biscate Social Clube. Uma forma de peitar, dentro do feminismo, o discurso e as posições moralistas sobre o sexo e a sexualidade. Escrevi alguns textos lá na época, e sigo lendo o blog até hoje. Isso me lembra que não é de hoje a necessidade de radicalizar o debate sobre sexo na esquerda e no feminismo, embora a dias da posse de Bolsonaro isso pareça ainda mais urgente.

A relação complexa entre desejo e prática, entre fantasia e ação concreta, que começou esse bafafá todo, é uma questão fundamental nos estudos dessa área, que nos permite avançar para relações sociais de autonomia de fato — onde não haja uma moral sexual reguladora do desejo e da prática sexual, apenas regulações que impeçam violência sexual (e se está consentido por pessoas que podem consentir não tem como ser violência — sem entender isso a gente não avança nem em questões muito básicas como dialogar sobre estupro, contracepção, violência obstétrica, aborto e outros temas ligados aos direitos sexuais e reprodutivos).

Não há relação entre as estruturas sociais e os desejos sexuais presentes em cada sociedade? Como o desejo é produzido?

“Mas Marília, você está dizendo que os desejos e fantasias sexuais das pessoas não têm a ver com a estrutura social concreta? Numa sociedade socialista, baseada em outras relações sociais e sem opressão de gênero, por exemplo, as pessoas não deixariam de ter fetiches como o fetiche de estupro?”

Se você chegou até aqui neste texto, possivelmente já entendeu que eu nunca disse e nem diria isso. Mas essa foi a dúvida mais comum entre as pessoas que se propuseram a discutir — e não a pedir cadeia, gulag ou pena de morte para mim — , então penso que vale a pena tentar detalhar um pouco mais essa lógica. Num diálogo com um camarada que é psicólogo expliquei de uma maneira até bastante curta e didática, acho, esse ponto que a maioria das pessoas (cegas pela própria moral e ideologia sexual, o que é absolutamente normal considerando justamente as estruturas sociais que nos produzem enquanto sujeitos) não conseguiram acessar apesar de estar implicado no texto. É essa explicação que reproduzo a seguir.

Já dou o alerta, porém, de que talvez haja diversos conceitos e de que não vou explicá-los em detalhe. Primeiro porque seria insuficiente, segundo porque todas e todos merecem pegar essa oportunidade pra talvez estudar e entender melhor tudo isso. Terceiro porque tenho outras coisas pra me preocupar na vida (como talvez, inclusive, juntar essas reflexões num ensaio ou livro pro ano que vem).

Segue aqui em maior detalhe para quem ficou em dúvida ou nunca antes ouviu essa linha de raciocínio (compartilhada por Gayle Rubin, Simone de Beauvoir e outras grandes teóricas feministas). Vamos lá:

Bem, uma sociedade com outras relações sociais provavelmente produziria, claro, outros desejos. É lá que queremos chegar. Porém também não temos como prever ou saber se entre esse novos desejos nessa nova sociedade, não haveria diversos que fossem também incômodos para nossa moral (a futura moral dessa sociedade hipotética).

O ponto central da questão, e aí qualquer pessoa que assuma que existe inconsciente precisa acatar esse ponto, é: não dá pra saber qual vai ser, nem controlar o desejo que será produzido.

Nem precisamos necessariamente, embora seja bom, ir até o Freud pra entender nos termos dele (como “inconsciente”). Podemos pegar o próprio princípio dialético do Hegel que o Marx adota, quando fala em negatividade — e que foi depois retomado pela Escola de Frankfurt ou ou até pelo Ruy Fausto quando fala em “zonas de sombra”, e por outro filósofos também próximos do debate marxista (a tese de doutorado da Butler sobre a recepção do Hegel na França em tempos recentes é interessante, ajuda a entender parte desse fenômeno de como alguns princípios da dialética hegeliana foram parar nas teorias marxistas e/ou psicanalíticas mais recentes — se chama Sujeitos do Desejo mas não sei se está publicada em português ainda como livro).

Quer dizer, se a gente entende esse movimento dialético da produção de sujeitos — baseado nas relações sociais mas incontrolável em sua totalidade (para que possa haver dialética inclusive temos que assumir isso, esse incontrolável, negativo, zona de sombra, inconsciente, que poeticamente eu gosto de brincar de chamar também de Deus ou Universo, rs) — a gente entende também que não é uma política que vai determinar o desejo ou controlá-lo. Essa é uma ilusão ingênua, que ignora a complexidade da formação subjetiva em qualquer sociedade, inclusive nas que pretendemos construir juntos…

Então, se por um lado a nossa sociedade produz os desejos/fantasias X por causa da nossa estrutura, por outro podemos mudá-la para melhor e ainda assim não vamos ter controle sobre o desejo (e novas estruturas vão produzir novos desejos que, repito, não podemos saber quais serão nem quando chegarmos de fato lá).

A minha preocupação — e o que eu venho combatendo e questionando — é o raciocínio de que a passagem do desejo para a execução irrestrita desse desejo seja imediata. Assumir isso seria assumir que os videogames violentos causam (atenção: causam) os tiroteios em massa nos EUA, pra pegar um argumento antigo e conhecido na mídia “pop” por causa daquele filme do Michael Moore, “Tiros em Columbine”. O materialismo dialético nos permite ver que, justamente, a coisa não fuciona bem assim. Os sujeitos estão imersos em diversas relações sociais, de produção e reprodução de mercadorias, ideologia, corpos. E que há diversos fatores que precisam ser levados em conta.

Sobretudo, pra ficar em outro exemplo conhecido: a diferença entre uma pessoa que fantasia e goza com fantasia de estuprar alguém e uma pessoa que ativamente comete um estupro, está nessa passagem. A pessoa que estupra alguém não o faz por fetiche — e toda a literatura feminista marxista e nao-marxista nos mostra que estupro não é sexo, atividade sexual; é uma ferramenta de opressão. Fazer essa distinção é essencial em qualquer argumento feminista, seja ele marxista ou não.

Fazer a associação dessas coisas como se o estuprador agisse por fetiche, é dizer que uma pessoa que estupra outra sofre de um desejo sexual incontrolável. É um argumento machista e perigoso, que cai em aberrações como “estupra mas não mata”. Ao mesmo tempo, como então, nessa chave, avaliamos as pessoas que têm fetiche de estupro como pessoa estuprada no fetiche, e não como estuprador? Se elas forem estupradas na vida real então tudo bem, não é estupro, porque é algo que em fantasia e com consentimento (numa simulação) elas curtiriam SIMULAR? Percebe o espaço para machismo e violência que esse tipo de argumento — que se pretende feminista e parece que deseja coibir violência — oferece?

(em tempo, já acontece: quantas denúncias de estupro são invalidadas socialmente porque a vítima ou é trabalhadora sexual, ou demonstra que gosta de sexo? quando é praticante de BDSM ou outras modalidades marginais de fetiche sexual, pior ainda. tudo isso decorre da mesma linha de raciocínio que procuro combater)

Então, voltando: a questão é na passagem, no quando a fantasia deixa de ser fantasia. O ponto central, considerando que não podemos prever nem controlar o desejo nem o imaginário das pessoas em sua totalidade, é: como podemos cuidar e construir uma sociedade para que haja leis, regras, estruturas, etc. que atuem nessa passagem para o “ato concreto”, de maneira que sob nenhuma hipótese um sujeito pense que realizar um ato concreto por desejo seja mais importante do que a integridade de outro sujeito? De maneira que se enxerguem e nos enxerguemos de fato como sujeitos, então?

Enquanto marxistas, socialistas, comunistas revolucionários, militantes, não podemos tornar moral uma questão que é política. Se desejamos ser polícia da moral, do sexo, do desejo, da punheta alheia, melhor nos juntarmos ao Bolsonaro e sua turma. Se desejamos trabalhar não na moral mas na política, então é preciso operar esse salto que não é simples e que inclui uma boa dose de divã para nós mesmos — me lembro de uma bela entrevista com a Maria Rita Kehl em que perguntam para ela como a psicanálise clínica pode ajudar a militância; ela brilhantemente responde que a psicanálise pode ajudar o/a militante e nesse processo, por consequência a militância também engrandece. É de momentos e situações assim que ela fala, me parece, quando dá essa resposta: para desanuviar a visão construída numa sociedade que ideologiza o sexo, por exemplo, é preciso construir uma série de mecanismos psíquicos, emocionais, etc. enquanto sujeitos para que não deixemos a política ser pautada pela nossa moral individual (o que é a definição por excelência de moralismo). Uma sociedade livre de toda exploração e opressão só pode acontecer mediante esse tipo de processo, de salto qualitativo na observação e trato dos fenômenos sociais, tenhamos nós o apoio de sessões de psicanálise ou não.

Para o socialismo no século 21, além do divã

Como mencionei lá em cima, me chamou a atenção que a maior repercussão negativa desse post tenha sido entre a juventude que se reivindica de esquerda e, mais, marxista. Eu não sei se por uma questão geracional no uso das redes, ou por uma questão geracional de terem aprendido militância sem aprender bem interpretação de texto e leitura crítica autoral (nosso sistema educacional passa cada vez mais longe de ensinar isso) e terem a base de sua formação política na internet, o que significa sempre falar muito, ouvir pouco, dialogar quase nada e zero de autocrítica e tempo pra pensar no que se diz. Ou talvez por ausência de educação sexual, mesmo; ou de oportunidades auto-reflexivas como a psicanálise, a arte, etc.

Curioso que esses dias um dos meus namorados me perguntou, quando contei o caso da Débora Diniz, se eu também sofria ameaças pelo meu trabalho com sexualidade, direitos sexuais e reprodutivos e aborto. Foi antes do post e eu disse “não, nada muito fora do ‘normal’ ou ostensivo”. E aí veio o comportamento de turba, de quem surpreendentemente se diz marxista, revolucionário e usa como nomes falsos na internet os nomes de personalidades históricas intelectuais como Kollontai (!), que dedicou sua vida à causa da autonomia sexual, pensada nos parâmetros culturais e sociais de sua época e cultura (a coitada se revira no túmulo).

Esse é um problema que não posso e não podemos nos furtar a ignorar se pretendemos construir essa nova sociedade, o socialismo no século 21.

Liberdade sexual, autonomia sexual, não se resume a casais monogâmicos LGBT formando familinhas em moldes burgueses e dizendo que isso celebra “o amor”. Isso é uma casquinha da pontinha de um iceberg que é o fenômeno social da sexualidade no capitalismo atual, e parte de estruturas poderosas (sistema de gênero e sistema de parentesco) que organizam a reprodução física e simbólica dos corpos — e portanto, a reprodução e continuidade das classes e grupos sociais (ou fatias de classe, enfim, há diversas formas de nomear).

Quem prega moral sexual é igreja, e historicamente o Estado é acionado para controlar os corpos e desejos marginais. Vocês conhecem o conceito de “parafilia”? Então. Bissexualidade é considerada uma parafilia ainda hoje, ao lado de pedofilia e prática de BDSM. Como já foi com a homossexualidade no passado. Como já foi (ou ainda é, em alguns documentos) com a transgeneridade, travestilidade e transexualidade. Não é possível fazer um debate que se pretende revolucionário sem chegar à raiz do funcionamento desses sistemas e estruturas no capitalismo — porque o socialismo, como o capitalismo, precisa da reprodução dos corpos e da classe. Para isso, é preciso vencer a própria moral e o moralismo e entender de fato como as operações sociais, culturais e psicológicas ligadas ao sexo funcionam.

Infelizmente isso não vai ser compreendido com a leitura de post de Facebook ou até mesmo com textos ensaísticos como este. A realidade social é tão complexa quanto qualquer outro objeto de estudo científico. Você não acharia que pode ter uma boa formação médica, a ponto de realizar uma cirurgia, só lendo posts de Facebook, certo? Então porque pensa que seria capaz de compreender em profundidade os mecanismos da realidade social por esse caminho? Estudar e entender sexualidade não é bradar palavras de ordem sobre aborto e estupro aqui e ali e disfarçar tudo com “amor”. Amor é o caralho, aliás — uma ficção individualista que esconde as estruturas que nos matam, e que esconde a questão central de poder, controle e exploração na esfera que aprendemos erroneamente ser “privada” — o sexo. Dizia o Freud, e eu gosto, que tudo é sobre sexo, exceto sexo, que é sobre poder (e daí tiramos a conclusão lógica de que não dá, em última instância, para repensar a distribuição de poder na sociedade sem pensar essa manifestação corrente e abundante dele que é o sexo).

Por fim, se no século XIX (quando escreveram Marx e Engels) não se podia dizer e estudar de maneira aberta a sexualidade como podemos hoje, se não havia diversos avanços dos quais hoje podemos lançar mão, então como é possível se dizer materialista histórico dialético simplesmente ignorando esse conhecimento acumulado ao longo dos últimos 100 anos e repetindo (como fazem nas piores leituras da Bíblia as Damares da vida) sem contexto nenhum, trechos e frases de autores que parecem ter sido alçados ao status de Deuses? Marxismo não é religião, e não há nada menos materialista do que ignorar a materialidade — e entender o que é “material” na perspectiva marxista é fundamental aqui (dica: não é aquilo que tem existência física em forma de objeto apenas, essa é uma leitura equivocada e chula). Ver a materialidade das coisas é ver o processo inteiro de produção da coisa (ou fenômeno, inclusive simbólico ou ideológico, e por isso vejo certos trabalhos de Bourdieu e Butler como mais materialistas dialéticos do que boa parte dos trabalhos que em tese são “marxistas” porque estão usando jargões marxistas ou falando de Marx e de marxistas), é ver quais são as relações sociais que as produzem.

Curiosamente só dá pra ser materialista dialético com as coisas, então, se abandonarmos ou se estivermos dispostos a abandonar (ou ao menos questionar e não deixar entrar na frente dos nossos olhos na hora de ler, estudar e debater) aquilo que vem da nossa formação ideológica e cultural como sociedade. Nossos tabus, os elementos ideológicos sobre o sexo (talvez o sexo seja a esfera da vida social mais ideológica e ideologizada, aliás — e arrisco dizer, em praticamente todas as sociedades de que temos notícia), o sistema de parentesco.

Avisei: haja divã.

Debates sobre direitos sexuais e reprodutivos, trabalho sexual, sexualidade, questões LGBT, contracepção, aborto, maternidade, trabalho doméstico, casamento, dupla jornada… Tudo isso passa por debater o Gênero como um sistema (sexualidade incluída aí) e o nosso modelo de parentesco, no sentido antropológico mais fino da palavra (incluída a sexualidade aí também). Esses sistemas organizam a maneira como o capitalismo acontece, se adapta e se desenvolve em diferentes lugares, porque organizam a produção do elemento básico necessário para a existência da mercadoria mais valiosa de todo esse sistema, que é a força de trabalho: o corpo. São peças que compõem o jogo que o capital sabe jogar (e explorar) bem. Se quisermos construir uma nova sociedade, será preciso a disposição de destruir a moral (sobretudo a própria moral individual e o moralismo e/ou práticas moralistas) para poder repensar as estruturas, relações e formas de organização.

Como eu disse num debate promovido pelo Goethe, pela fundação Friedrich Ebert e pela Boitempo no início deste ano, quando me perguntaram qual era o maior desafio do marxismo e do feminismo marxista para o século XXI: enfrentar com honestidade intelectual e qualidade de debate, sem moralismos, a questão do sexo.

Às vésperas de uma posse presidencial como a que veremos dia 1° no Brasil, coalhada de obscurantismo, moralismo, retrocessos — sobretudo na área de estudos de gênero e sexualidade (coincidência? acho que não), eu tenho apenas um desejo neste ano-novo e pularia o mar inteiro na virada se na praia estivesse, para que ele pudesse se tornar real com a graça de Iemanjá: que pelo menos a militância de esquerda e/ou marxista e/ou revolucionária não se deixe iludir e não retroceda também ao século 19, mas que possa finalmente chegar ao século 21.

Feliz (?) 2019 de luta, camaradas.

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Marília Moschkovich
NOMONO — Sexualidade, Relações Livres & Não-Monogamia

socióloga-antropóloga, escritora-poeta, feminista-comunista, antirracista, não-mono/relações livres