Por que dizemos “obrigada por me aturar” a quem amamos?

sobre como achamos que o amor deve ser. sobre os fermentos tóxicos que nos vulnerabilizam quando amamos. uma reflexão-auto-reflexão (mas que pode, espero, servir pra alguém).

eu conheço muitas mulheres.

bom, na verdade, eu conheço muita gente. :P

mas dessa gente, muitas delas são mulheres.

e mulheres interessantes, cheias de vida, de projetos, de vontade política, engajadas, críticas, que se incomodam com imposições machistas, que têm um forte desejo de independência que as move.

muitas delas são jovens: camaradas da militância, ex-alunas, mulheres que liam/lêem meus textos na internet, e por aí vamos.

guardem essa informação.

como minha lua é em peixes (essa informação não precisa guardar, rs), eu a-do-ro quando vem no meu feed as pessoas contando que estão apaixonadas, falando de seus amores, etc. acho uma fofura, acompanho, leio, dou likes e corações. afeto é uma delícia, mesmo quando a gente está convicta de que o Amor (reparem no azão maiúsculo) tem que ser absolutamente destruído para a construção de uma sociedade saudável para as mulheres.

daí que tem uma coisa muito — mas MUITO — frequente nesses posts estilo amo-meu-mozão que eu tanto gosto (talvez seja um dos meus gêneros textuais mais queridos? haha).

essa coisa muito frequente está expressa na repetição, por diferentes mulheres, de frases como:

- “obrigada por me aturar”

- “obrigada pelas broncas que você me dá”

- (e coisas afins)

essas frases sempre me incomodam. e, claro, a psicanálise é rainha em me explicar por que elas me incomodam tanto:

porque eu já as disse à exaustão em diferentes relacionamentos. inúmeros.

(tá bom, não inúmeros porque eu namorei/casei monogamicamente apenas 5 vezes, que em geral é a situação que produz posts nesse lindo gênero textual)

até o dia em que terminei um casamento em que havia muito abuso psicológico. e comecei a entender que um dos fermentos desse abuso tinha vindo — olha só! — de mim mesma.

hein? para, Marília, tá culpabilizando a vítima.

tô não, amoras, acompanhem aqui o raciocínio comigo.

não é uma questão de culpa, em primeiro lugar. porque a gente sabe, cientificamente, que a ocorrência de abuso psicológico e violência de gênero não é individual. ou seja, não se trata de “culpa” se a gente quiser extrapolar a dimensão individual e tentar entender aquilo que está além da gente. pra enxergar melhor, pra aprender com isso alguma coisa, e até pra pensar estrategicamente como construir uma sociedade em que essa merda não exista. não é?

(eu sei que aqui já teve gente que abandonou o texto, já vai ter gente distorcendo o que eu estou dizendo pra falar que eu estou culpando as mulheres, amiguinha do patriarcado, etc. mas né, acontece. sobretudo na nossa era, a era da desinformação que vai muito além das fake news)

pois então. o fermento. voltemos ao fermento.

esse era o fermento do troço. vejam bem, não é a causa, não é a coisa. é o fermento. um catalisador que acelera, condensa um processo complexo. gosto de escolher bem minhas metáforas.

eu havia sido convencida, durante minha vida toda, por mini-comentários, pequenas sugestões sutis de conhecidos, amigues, família, grupos de convivência, televisão, cinema, livros, etc. de que eu era uma “mulher difícil”.

junto com isso, todas essas pessoas, grupos e instituições sociais também haviam me dito que, como mulher, eu valia “mais” como ser humano se além de fazer TODO O RESTO (ser bonita, ser inteligente, trepar “bem” (?), ser independente, saber cozinhar, ser doce e delicada mas não demais, ser forte e sábia mas não demais, etc) eu também tivesse um homem “ao meu lado”. ou seja, se eu fizesse parte de um Casal.

(reparem aí, olha, o Casal em maiúscula. estão vendo? então. sabe quando a parceria, o companheirismo, eles parece que se destacam das pessoas e aparece essa entidade, O Casal? e que cada um que está na relação tem que fazer coisas para O Casal como se O Casal não fosse a relação estabelecida entre os dois? então. é disso que eu falo. e, vale muito pontuar: eu vivi esse processo de estar em um O Casal numa relação não-monogâmica, sim? e por isso a gente fala que Monogamia não é sobre quantas pessoas você pega por vez, mas sim que é uma estrutura. faz parte da nossa cultura. O Casal é uma instituição da Monogamia. E justamente porque somos todos e todas criados dentro da Monogamia — mesmo quem está em famílias e arranjos não-mono desde criancinha — nós convivemos com O Casal em todas as nossas relações. talvez para algumas pessoas O Casal não seja uma instituição tão destrutiva — ainda estou elaborando algumas percepções e ideias que devem sair num livro sobre esse interessante tema no ano que vem ou em 2019. mas o ponto é: O Casal. e a imposição do nosso sistema de Gênero articulado à Monogamia de que, como mulher, valho mais se fizer parte de um O Casal.)

está aí o fermento tóxico.

cada vez que um homem se dispunha a estar “só comigo” eu me sentia “premiada”. era como se ele estivesse dizendo “você é mais preciosa do que todas as outras mulheres”.

como eu tinha, em algum lugar não-tão-consciente da minha cabeça, aprendido que eu era uma “mulher difícil” e que era difíci me amarem. e que, como eu “fugia do padrão”, eu teria era sorte se encontrasse alguém que quisesse “estar ao meu lado” e formar um O Casal comigo.

(o que, aliás, é a mesma coisa que está por trás de quando a gente vê tantas mulheres construindo o “direito de ser assumida como namorada/relação” como uma bandeira política. elas querem o direito de estarem nessa posição considerada legítima pela Monogamia feat. Gênero. porque intuitivamente a gente sabe e acredita que, estando ali, a gente vale mais. e sentir que a gente não vale é uma bosta, mesmo. é destruidor. e é parte desse fermento tóxico)

colo aqui uma indagação sobre isso: que mulher não foge do padrão? como disse em um texto, certa vez, à lá Simone de Beauvoir: somos todas erradas, até quando somos certas. o nome disso é opressão de gênero (já não tão à lá Beauvoir assim, já que o conceito de gênero não existia quando ela escreveu O Segundo Sexo). quer dizer. toda essa autopercepção que nos é inculcada, ela é inculcada igualmente em todas as mulheres. inclusive naquelas que às vezes para a gente, de fora, parecem “estar dentro do padrão”. algumas vão sofrer tudo isso de maneira mais violenta, quanto essas instituições sociais e grandes estruturas vão se articulando — Raça, Gênero, Classe, Monogamia, Idade, Peso/Formato do Corpo, Beleza, Sexualidade, etc.

esse é um dos mecanismos — fermento tóxico — que faz com que todas nós estejamos sujeitas a relacionamentos abusivos.

por mais feministas que sejamos.

por mais precavidas que sejamos.

por mais lindas que sejamos.

por mais magras que sejamos.

por mais “fortes” que sejamos.

por mais desejáveis que sejamos.

por mais ricas que sejamos.

por mais certinhas que sejamos.

e por isso eu repetia seguidamente:

- obrigada por estar comigo

- obrigada por me aturar

- obrigada por me aguentar

- obrigada por me dar broncas

essa sensação de dever algo para o outro. “obrigada”, a gente diz. como se, ao topar estar num O Casal conosco, eles estivessem nos fazendo um grande favor. e isso é sutil. não são homens escrotos, não, na maior parte das vezes. são homens que nos Amam, são homens que nos veneram, que nos celebram, que gostam de nossa companhia.

o problema não é, como eu insisto em dizer, individual.

o problema não é o moço “tratar bem” ou dizer explícita ou implicitamente x ou y.

o problema muitas vezes não é o moço, ele mesmo.

ou a moça, aliás, porque vejo di-re-to isso se repetir entre mulheres, e entre homens, quando em O Casal também. o que só informa a gente, ainda melhor, que tem uma dimensão aí dessas violências que extrapola o Gênero. e essa dimensão é a Monogamia.

vejam, não estou dizendo neste texto que as mulheres precisam de reações abertas, sem contratos de exclusividade, necessariamente, para poderem construir relações saudáveis. eu penso isso, mas pra embasar melhor teria que escrever todo um outro texto complementar e este já está bem grande. então vou me ater ao ponto mínimo desse complexo debate:

se você sente que deve agradecer ao seu mozão por te aturar, ou por te dar broncas, ou por te aguentar, ou por estar com você: isso pode ser Amor. mas quando ele é assim maiúsculo muitas vezes ele vem na maiusuclez dele carregando umas boas toneladas de reagentes para esse fermento tóxico.

você não é perfeita e tem vários problemas? com certeza. seu mozão também, certo?

você sente que está fazendo um favor em amá-lo ou Amá-lo? ele sente que está fazendo um favor em amar ou Amar você?

vejam, esse fermento tóxico sempre pode flopar (ainda bem — porque há muita gente vivendo relações gostosas e saudáveis por aí, mesmo com vários reagentes do fermento tóxico por perto).

mas a mera presença dos reagentes já nos deixa mais vulneráveis.

e essas frases ecoam na minha cabeça como um rótulo daqueles com uma caveira e uns ossinhos em embalagens de produtos de limpeza: “obrigada por me aturar”

amor, afeto, respeito, companheirismo: nada disso é possível numa relação que tem como base que um “ature” o outro.

cuidem de vocês mesmas.

tenho certeza que vocês são amáveis, como descobri que eu sou também.

e descobrir isso mudou minha vida.

cuidemo-nos juntas e juntos.

PS.: acrescento ainda que os homens — muitos, muitos mesmo — também se encontram com alguma frequência nesse mesmo lugar de dizer “obrigada por me aturar”. tampouco é saudável pra eles e por isso esse é um debate que precisa ser integrativo sobre como amamos, sobre como nos relacionamos. contudo, é absolutamente indispensável a gente lembrar que a vulnerabilidade que esse lugar traz, para as mulheres, por causa dessa articulação diabólica do Gênero com a Monogamia, é uma ameaça à vida delas grande parte das vezes.

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Marília Moschkovich
NOMONO — Sexualidade, Relações Livres & Não-Monogamia

socióloga-antropóloga, escritora-poeta, feminista-comunista, antirracista, não-mono/relações livres