Por que um/a bissexual nunca está em uma relação hetero ou homo?

Já chega dessa lenga-lenga de chamar os relacionamentos e práticas bissexuais de “hetero” ou “homo” ou “lésbicos” ou “gays”. As práticas bissexuais são práticas bissexuais, oras.

Obra de Jade Hallet (UK) em seu DevianArt — http://k6034.deviantart.com/art/Bisexual-Pride-Destiel-620848070

Eu confesso que me chateio de verdade quando as próprias pessoas bissexuais chamam suas relações de “relação hetero” ou “relação lésbica” ou “relação gay” ou “relação homo”. O mesmo vale para práticas específicas (como um beijo, por exemplo: “beijo hetero”, “beijo lésbico”, etc). É claro que elas fazem isso porque todo mundo faz isso.

No senso-comum, por exemplo, um beijo entre duas mulheres é chamado de “beijo lésbico”, um casal de duas mulheres é chamado de “casal lésbico”, o sexo entre duas mulheres é chamado de “sexo lésbico”, e um relacionamento entre duas mulheres é chamado de “relacionamento lésbico”. O adjetivo “lésbico” ou “lésbica” é usado como sinônimo de qualquer interação afetiva, romântica e/ou sexual entre duas mulheres. Podemos substituir aqui os termos em aspas por “gay” no caso de dois homens, e por “hetero” no caso de um homem e uma mulher.

O problema é que essa maneira de classificar as coisas é a operação concreta daquilo que nos mata todos os dias.

Uma pesquisa publicada em 2015 apontou que a saúde mental das mulheres bissexuais é significativamente pior que a das mulheres lésbicas (leia o artigo original aqui, em inglês). Em 2016, o mesmo periódico publicou um outro artigo que demonstra as mesmas conclusões para os homens (leia o artigo original aqui, em inglês). Muitas das mazelas vividas pela população bissexual estão diretamente ligadas à invisibilidade. A angústia de “tentar” se encaixar como hetero ou homossexual, por exemplo, quando essas parecem as únicas opções disponíveis. Para nos encaixarmos, porém, precisamos omitir ou guardar no armário uma parte muito viva de nossa sexualidade — sob a pena de sofrermos rejeições, chacota e diversas espécies de violências ainda mais graves (inclusive físicas) quando as pessoas “descobrem” a parte guardada no armário e por isso nos acusam de mentir, enganar, etc. Não vou entrar agora em detalhes na infinita lista de dificuldades que vivemos; basta nos atentarmos para esse ponto: a invisibilidade da bissexualidade está na base de boa parte, senão de todas elas.

É parte central da disputa pelo reconhecimento da bissexualidade que as pessoas entendam que uma relação homem-mulher é uma prática hétero E TAMBÉM uma prática bi; que uma relação mulher-mulher é uma prática lésbica E TAMBÉM uma prática bi; que uma relação homem-homem é uma prática gay E TAMBÉM uma prática bi. Essa é uma forma imediata de tornar a bissexualidade visível e, ainda mais importante, legitimá-la dentro da comunidade LGBT.

Caso contrário reforçamos que a pessoa bissexual não existe, pois segundo a lógica do senso-comum (bifóbico), quando com alguém do mesmo gênero ela seria homo (“estou numa relação lésbica”) e quando com alguém do outro gênero seria hétero (“ontem fiz sexo hetero”). A bissexualidade não é uma ficção, nem só uma identidade. Quer dizer, a bissexualidade não é só um nome pra algo que concretamente seria hétero ou homo, ou uma mistura de ambos. A bissexualidade é um conjunto de práticas concretas — estar com homem, estar com mulher, estar com não-binaries, e conviver seguidamente com a possibilidade de todas essas práticas.

Ora, se não reivindicarmos essas práticas como sendo práticas bissexuais, nós mesmas/os incorremos no erro de reforçar a violência que nos mata todos os dias — a invisibilidade, a inexistência, a não-legitimidade de nossas práticas como práticas bissexuais em si.

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Marília Moschkovich
NOMONO — Sexualidade, Relações Livres & Não-Monogamia

socióloga-antropóloga, escritora-poeta, feminista-comunista, antirracista, não-mono/relações livres