Animais que falam

João Paulo
Norvana
Published in
6 min readNov 12, 2015

Todo final de Domingo era a mesma coisa, vinheta do fantástico e jantar com alto nível de stress causado geralmente pelo término do fim de semana. Na mesa, os quatro integrantes da família Gonçalves debatiam os assuntos pendentes dos últimos dias:

“Ridículo como pode ter pessoa que sai na rua com bandeira a favor de aborto. ‘Meu corpo minhas regras’ o caralho, e o corpo do bebê? E as regras dele? É impressionante como tem gente imbecil!” — disse Matias, o pai e chefe-da-família — “Esse pessoal só quer saber de orgia e usar droga, vocês podem ver, toda mulher que aparece nesses protestos a favor de aborto é cheia de tatuagem, peito de fora, tudo mal amada.”

Enquanto isso Rosana pegava a salada e Pandora, a poodle de 7 anos da família, ia de um por um na mesa tentando beliscar algo, missão que estava cada vez mais difícil nos últimos dias.

“Graças a Deus Carlinha está melhor agora, teve que sair mais cedo do colégio na sexta-feira porque tava com muita dor de cabeça” — disse Rosana sobre a filha.

“Certeza que é por causa daquele uniforme apertado, na prova eu mal conseguia respirar por causa da calça. Cada vez que a mamãe lava parece que encolhe mais!” — disse Carla — “O sangue para de circular no meu corpo e eu fico toda bolada achando que vou desmaiar a qualquer momento. Se tivesse comprado o uniforme tipo com aquela malha que a Marcela tem seria muito melhor, ele se ajusta muito mais e não aperta.”

“Pois é filha, mas uma calça dessa pra uma jovem de 16 anos é mais de trezentos reais. Se o prefeito parasse de gastar o tempo dele com bicicleta e prestasse mais atenção nas escolas a situação seria diferente.” — concluiu Matias, antes de dar um sermão em Pandora por não deixá-lo comer em paz. Decepcionada, a cadela foi até a porta e deitou, observando de longe o jantar.

“Nossa filho to gostando de ver, tem comido bem mais de umas semanas pra cá, se Deus quiser você dá uma engordada, ta precisando né?” — disse Rosana pra Carlos.

“To no peso certo pra minha altura, mãe” — respondeu.

“Falando nisso, esses dias eu vi a Claudete dando um saco de pão pra um vagabundinho ali na esquina.” — disse Matias — “Deu vontade de gritar ‘se gosta tanto de vagabundo leva pra casa!’ Pessoal é fogo, por isso que tem aumentado o número de delinquentes por aqui, ficam dando comidinha, fazendo carinho, massagem, daqui um tempo não vai dar nem pra sair na rua mais sem pedir licença pra eles. E agora andam com cachorro no colo, pro pessoal ter mais dó e ficar dando dinheiro pra eles encherem a cara. Faça-me o favor! Eu não to nem aí, se aparece um vagabundo desse com um cachorro sarnento me pedindo coisa eu dou-lhe é uma bicuda!” — riu Matias

O riso logo foi cortado por uma voz estridente e ainda desconhecida:

“Galera…” — Todos na mesa se entreolharam tentando descobrir quem era o dono da voz — “Aqui na porta!”

Sob o olhar da família estava Pandora, agora sentada e olhando de volta pra todos na mesa, falando com uma voz fina como se fosse uma daquelas crianças à frente de seu tempo:

“Tipo, eu realmente pretendia manter o silêncio até minha morte, afinal esse é um direito meu como cadela e também porque vocês obviamente ainda não estão preparados pra ouvirem bichos de estimação falando por aí né, ” — mesmo com todos aqueles filmes ridículos de porcos e cavalos agindo como humanos, pensou — “mas meio que não deu, to precisando falar umas coisas que estão entaladas na minha gargantinha aqui sabe…”

Todos acompanhavam a cena boquiabertos. O garfo que estava quase na boca de Carlos com um pedaço de frango foi solto como se ele tivesse perdido repentinamente o controle das mãos. Rosana colocou a mão no peito e observou sua cachorrinha como se tivesse visto Jesus descendo da cruz mas cagando e andando pela igreja. Pandora prosseguiu:

“Primeiramente que, tipo, puta vacilo vocês ficarem regulando comida pra mim no jantar né galera, sendo que a vida inteira consegui filar uma boia numa boa pois todos me davam um pedacinho qualquer que fosse. Agora do nada descobriram que eu tô acima do peso e que não posso comer mais nada que não seja essa ração mequetrefe que estão comprando, por causa da CRISE que o país vive…”

Não ouvia-se sequer uma respiração na cozinha. Enquanto falava, Pandora levantava levemente sua pata direita dando pequenas encostadas no chão, pontuando seu discurso:

“Acho que ao invés de cortar o meu barato aqui na cozinha seria mais válido prestar mais atenção na vida da Carlinha, por exemplo.” — apontou o focinho em direção à Carla e todos focaram nela, deixando a caçula da família enrubescida — “Que vai toda semana ao nutricionista pois diz que quer emagrecer mas me acorda toda madrugada porque vem pra cozinha assaltar a geladeira ou comer alguma coisa com nutella.”

Carla não sabia onde enfiava a cara, balbuciou e preparou um discurso rapidamente mas não com tempo suficiente pra interromper Pandora.

“E tipo, beleza, essa coisa de gula é foda, eu até consigo ser compreensiva e perdoar os barulhos na madrugada, mas mano, quase toda tarde transando com o namorado sem a menor parcimônia. É na sala, nos quartos, na cozinha, na garagem, na moto. Pelo menos pílula do dia seguinte acho que só precisou uma vez mesmo, né Carlinha? Menos mal. Mas tipo, um dia eu fui feliz pra porra morder uma embalagem nova que surgiu lá fora e quando eu sacudi ela na boca vi que era uma camisinha, foi parar porra até na minha orelha! Galera, isso é bem desagradável, na moralzinha.” — Agora ninguém mais sabia onde enfiar a cara. Carla se levantou abruptamente e saiu da mesa com as mãos no rosto.

“O Carlos é mais de boa,”— ele relaxou os ombros ao ouvir — “quando se enfia no quarto pra fumar baseado não enche o saco de ninguém pelo menos.”

Carlos apoiou os cotovelos sobre a mesa e a cabeça sobre as mãos, inconformado. Semanas escondendo as ervas pelos cantos e fumando de madrugada pra vir uma cadela filha da puta e começar a falar do nada.

“Eu ia ficar de boa aqui, mas já que você tocou no assunto…” — todos viraram pra trás e viram Don Juan, o gato siamês, descendo delicadamente de cima do armário enquanto falava — “infelizmente o Carlos não fica apenas fumando um baseado na madrugada, pois se assim fosse eu nunca teria esfregado minhas patinhas naquela poça de sêmen que ele deixa nas meias,” — sentou e lambeu a pata, agora livre de qualquer fluido — “como eu também não teria tido a infeliz descoberta de que um site chamado xhamster tem tudo, menos hamsters. Meow.”

Carlos também se retirou da mesa.

“Enfim, galera, meu ponto mesmo é o seguinte,” — Pandora retomou — “vocês não podem simplesmente nos criar de um jeito a vida toda e de repente AUF,” — latiu, assustando os dois restantes na mesa— “tirar tudo de mim como se eu fosse um cãozinho sarnento de mendigo, ok Matias?” — sem saber o que fazer ele apenas assentiu, ainda desacreditando o que acontecia.

“Aliás, esses cachorros sarnentos que você daria uma “bicuda” por aí, além de serem mais simpáticos, cruzam menos do que você cruza com outras mulheres. Só com a vizinha da frente já foram tantas vezes que perdi a conta, deve perder pra Claudete só.” — Rosana ficou pálida e foi se debruçando lentamente na mesa, deitando o rosto em cima de uma alface americana.

Matias ficou vermelho de raiva e fechou os punhos, mas antes que fizesse alguma coisa Pandora levantou-se e olhou firmemente pra ele:

“Eu não quero saber o que você é contra ou a favor, se estou numa família tradicional brasileira ou não, eu só sei de uma coisa, Matias, uma lição precisa ser ensinada nessa casa e quem vai ensinar sou euzinha. Isso não é mais uma democracia.” — deu um passo a frente — “Quando eu pedir comida, você vai me dar. Quando eu quiser sair pra passear, você vai me levar. Quando você vir um cachorro na rua com um mendigo, você vai dar dinheiro pra ajudar os dois, porque eles pelo menos cuidam um do outro, já você só pensa no próprio pips -sim, é assim que chamamos pênis entre nós- e se preocupa mais em odiar ‘delinquentes’ do que cuidar da própria família.” — Pandora continuou caminhando em sua direção.

“E antes que você pense em usar esse punho fechado contra meu focinho, meu querido, saiba que se qualquer coisa acontecer comigo os cães desse bairro inteiro vão ter muito o que falar e fazer, principalmente Dilbert, o rottweiler da sua amada Claudete.” — Pandora sentou-se, coçou a orelha e após um estalo saiu correndo pra garagem latindo loucamente para o carteiro que estava no portão.

Naquele momento, Matias Gonçalves percebeu que não mais sabia quem era criador e quem era criatura.

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