Qual será o papel social do design gráfico?

Ideias extraídas do texto A dimensão do design gráfico no construtivismo, de Maria do Carmo Curtis

Marcelo Brasileiro
Coletividad
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6 min readSep 14, 2016

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De modo geral, o reconhecimento do design gráfico na sociedade é baixo. As causas disso são discutíveis–se quiser conhecer um pouco mais do que eu penso a respeito, leia meu outro artigo. Hoje, contudo, minha intenção não é explorar mais esses motivos, mas sim propor complementaridade àquele pensamento citando o exemplo de um movimento artístico específico em que o design gráfico tem um papel de destaque: o construtivismo russo.

A primeira Guerra Mundial (bem como a Segunda Guerra mundial) foi basicamente um conflito europeu, e deixou a Europa arrasada. Os horrores da Guerra são do conhecimento de todos, assim como os seus desdobramentos políticos e econômicos: o fracionamento da europa central, o triunfo do capitalismo, etc. É comum, contudo, que se negligencie as consequências artísticas e culturais do pós guerra. O início do século XX para a arte é marcado pelo surgimento das famosas vanguardas europeias, movimentos de ruptura com a prática artística corrente que abrem espaço para diversos artistas e ideologias que, por mais diferentes, eram todas calcadas nas mesmas bases fundamentadas pela guerra. Esse surgimento se dá em concomitância com avanços tecnológicos, o que explica a grande devoção das vanguardas à tecnologia. Havia um otimismo em relação ao avanço científico que se traduz nas obras de maneira muito clara, sobretudo no futurismo.

Pois bem, sabe-se que o armistício que deu fim a guerra (fim a guerra? A guerra permaneceu mal resolvida até 1939, quando se iniciou uma nova) foi assinado em 1918. Pouco antes disso, contudo, o império Russo retirou-se do conflito devido às Revoluções que estavam prestes a acontecer no país, em 1917. Antes das revoluções, a Rússia fora uma autocracia que era regida por um Czar, que é um monarca. O império já sofria com tensões sociais perceptíveis desde 1905, e o que veio depois disso era incontível. Em Fevereiro de 1917 é deflagrada uma Revolução que expulsa o Czar do poder, e em Outubro uma nova revolução que alça ao poder o Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR).

Declara-se a União Soviética em 1922, o primeiro país socialista do mundo. Em teoria, a expectativa deveria ser a mais otimista, mas já se tinha a noção de que a ideologia socialista estava restrita ao território soviético, uma vez que outras nações não foram profundamente contagiadas pelo movimento. Isso significava para Lenin a necessidade de fazer com que o socialismo efetivamente funcionasse, objetivo nada fácil e que precisaria contar com todo o auxílio disponível.

O lema da vanguarda passa a ser construir, tarefa árdua considerando-se a dimensão do território russo e ao incrível atraso em que se encontrava o país. A despeito disso, São Petesburgo já era um importante centro cultural que reunia materiais gráficos de alta qualidade advindos da Alemanha, Japão, França, etc.

O atraso russo era completo: cerca de 70% da população(algumas fontes dizem 90%) era analfabeta e vivia em condições muito precárias. Neste contexto, a comunicação torna-se pouco eficiente, uma vez que os interlocutores têm graves dificuldades de lidar com a compreensão da sua mensagem. É neste ponto que converge-se a necessidade do Novo Regime e a história do Construtivismo. Muitos dos artistas que outrora produziam obras da estética conservadora migraram para o universo do design gráfico, produzindo cartazes, panfletos, revistas, enfim, uma produção visual voltada a um maior alcance comunicacional devido ao seu caráter de reprodutibilidade e do impacto visual e persuasivo da publicidade para a mudança de mentalidades.

Os designers/construtores popularizaram, assim, o uso das imagens aliadas a mensagens revolucionárias, tornando-se comum a técnica da fotomontagem (que pode-se comparar a uma colagem). Aliando o uso da tecnologia gráfica disponível à cultura popular russa, a propaganda política era massivamente espalhada pelo território. Tal fato fica claro com o uso dos Lubok, que são gravuras populares russas. Neste ponto, o design era muito valorizado como instrumento de mudança de mentalidade da população.

Quando a Áustria veio para Radzivily, Kazimir Malevich, 1915. Exemplo de um Lubok.

Os artistas que então entraram para o universo do design gráfico criam uma estética muito peculiar que até hoje é indissociável da Rússia. Era necessário que a mensagem visual fosse de fácil entendimento exatamente por conta da população iletrada. Percebe-se que isso é alcançado eficazmente pelo construtivismo, como fica claro neste cartaz de El Lissitzky “derrote os brancos com a cunha vermelha”.

Derrote os brancos com a cunha vermelha, El Lissitzky, 1919

A complementaridade entre conteúdo e forma neste cartaz é sem precedentes, tornando a mensagem tão óbvia que até o camponês mais iletrado compreenderia. Os bolcheviques (o grupo de maioria dentro do POSDR) já eram largamente identificados pela cunha vermelha e, semelhantemente, o branco era identificado como os contrarrevolucionários. A diagramaçāo utilizada confere um vínculo mais coerente entre a denotação do texto e a conotação da imagem.

Nem tudo, porém, eram flores. Se a primeira vista o design gráfico foi bem sucedido do ponto de vista social, isso não era verdade para todas as artes. Como já enfatizado, o contexto de atraso em que a Rússia se encontrava era muito significativo e havia, portanto, um sério descompasso entre as aspirações construtivistas e as possibilidades técnicas construtivas disponíveis à época. Isso fica claro quando conhecemos a história da Torre Tatlin.

A torre Tatlin era uma edificação incrivelmente complexa proposta pelos arquitetos construtivistas que serviria de Monumento a III Internacional Socialista. A construção teria estruturas diferentes que se movimentariam a velocidades distinas. A utopia nunca foi levada a concretização por claras impossibilidades técnicas, e o que era pra ser um monumento de se orgulhar é, até hoje, usado para evidenciar a disparidade entre as aspirações construtivistas e às reais possibilidades técnicas.

Durante o início do novo regime, o Estado tolerou o movimento de vanguarda e até se utilizou dele como meio de propagação ideológica. Mas a partir do momento que a arte passava a ser instrumento de denúncia (como o caso da torre, que denunciava o atraso em que o país se encontrava) o Estado agia de maneira hostil aos artistas, tendo-os acusado de “experimentais de cosmopolitismo capitalista” e defendo um retorno à pintura realista, mas com ênfase social, claro. Isso acabou levando pintores construtivistas como Malevich ao ostracismo. Grosso modo, a mensagem era: ou se produz arte que me favoreça ou não produza arte. Não havia sentido na Rússia Socialista o movimento da arte pela arte ou a manifestação visual puramente subjetiva.

Esta história toda quer nos dizer, na verdade, alguma outra coisa. A primeira conclusão que podemos constatar é que o design possui, em algum nível, um papel estratégico na história. Estratégico na medida em que articula os meios tecnológicos ao contexto social em que está inserido, isto é, que interemedia os valores tangíveis e intangíveis da sociedade. Depois, nos leva ao questionamento de qual será o papel social da arte/design. Fica claro no caso do construtivismo que o Estado determinou um papel bem definido naquele contexto. E se extrapolarmos este contexto e nos colocarmos no contexto brasileiro: qual é o papel da arte? Somente a arte engajada tem valor para a sociedade? Observa-se que o período da ditadura militar no Brasil foi fértil para o florescimento principalmente da música no Brasil, em que esta foi instrumento de denúncia e revolta contra o cenário político, e portanto de grande estima para a população. Ao mesmo tempo, identifica-se um sentimento parecido com o do Estado Russo na sociedade para com a canção Odara de Caetano Veloso no Festival Internacional da Canção de 1968, em que o público vaia o cantor por não identificar o componente de engajamento político na canção.

Neste ano mesmo, 2016, presenciamos um acontecimento político marcante (para não dizer trágico) para a história da democracia brasileira. Alguns artistas efetivamente se posicionaram acerca da questão; outros não. A questão que acho importante é: é necessário se posicionar diante destas questões? O artista que não reage ao contexto é necessariamente um alienado? A arte precisa ser sempre engajada em alguma causa para ter relevância? O que você acha?

Se você viu movimentações artísticas com claras referências à recente troca de governo (contra ou a favor), deixe nos comentários o link e vamos enriquecer a discussão!

Encerro este texto na expectativa que lhe faça pensar no tema. Se você achar essa proposição interessante, comente suas impressões ou compartilhe o link e deixe seu like. Boa arte pra você!

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Marcelo Brasileiro
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