Nossa Voz #1020 #Comum

Algumas perguntas para Peter Pál Pelbart

Nas últimas duas décadas, o conceito de “comum” ganhou certa fortuna bibliográfica. Commonwealth, de Toni Negri e Michael Hardt, foi um ponto de inflexão, mas o “comum” aparece de muitas outras formas — em Silvia Federici, em relação ao feminismo, ou em Fred Moten e Stefano Harney, em relação ao racismo, mostrando a amplitude e a plasticidade do conceito. Você, como editor filósofo, tem tido um papel importante na difusão desse conceito aqui. Você pode nos narrar, a partir da sua perspectiva, como ele aportou no Brasil?

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A recepção brasileira da noção de comum, e também sua disseminação no pensamento político contemporâneo, responde ao colapso de imagens excessivamente unitárias, homogêneas ou coletivistas. A aspiração a uma comunidade outra não cabe mais nesses formatos caducos. De fato, o fracasso do socialismo real, a inépcia da representação política, o enrijecimento do jogo partidário suscitaram a necessidade de repensar as modalidades de laço social. Mas, para alguns, há razões mais profundas. Certas mutações no modo de produção pós-fordista, em que se requisita a cooperação dos cérebros, a sensorialidade alargada, a afetividade, a inventividade coletiva, teriam redesenhado a ideia do comum. Assim, a noção começou a ser pensada como um “fundo vital” já presente na multidão, mas também algo a ser construído. Pressuposto e por vir, a cada vez o comum se agencia de modo singular.

O comum é um novo conceito velho. Quais são as torções provocadas que podem explicar seu relativo sucesso e sua possível utilidade no contexto atual quando o comparamos a outros conceitos que compartilham da mesma etimologia — ou radicalidade, para brincar com a própria etimologia da palavra “radical” — , como “comunhão”, “comunismo”, “comunidade” ou “comunitário”?

Talvez seu diferencial esteja no modo como nele coexistem a multiplicidade, as singularidades. As outras noções mencionadas correm o risco de desembocar numa concepção unitária e fusional, exceto o comunismo, a ser reinventado nessas novas bases. Pois, o que nos é comum, além da terra, da água, do ar, da linguagem, da vida, senão a potência de reinventar formas de vida que não privatizem justamente isso que nos é comum, e que proliferem das mais variadas maneiras? Ninguém mais aguenta o socialitarismo unidimensional. Sufocamos de subserviência e mesmice.

Na América chamada “latina”, é possível traçar outra genealogia do conceito de “comum”. Nos anos 1990, os zapatistas foram precursores na sua propagação. No Brasil também existem experiências do comum — do quilombo à aldeia indígena. Arriscando certo anacronismo, podemos destacar que, em A sociedade contra o Estado, Pierre Clastres já aponta para a defesa do comum nas sociedades indígenas, resistindo à dialética moderna que torna o Estado o único horizonte histórico possível de toda construção social. À luz dessa outra história do comum, como a noção vem sendo re-apropriada, descolonizada e transformada aqui (se é que está sendo)?

Não há dúvida que os indígenas são nosso “futuro”, não nosso “passado”, como lembra Viveiros de Castro. E dos zapatistas, a ressurgências de comunidades indígenas, mas também de uma poderosa teorização a respeito de seu perspectivismo, nosso humanismo branco, eurocêntrico, produtivista, consumista, privatista, individualista, predador, vai fazendo água na mesma velocidade como se impõe sobre o planeta. Não cabe “voltar atrás”, e todo sonho regressista é tão inócuo quanto o seu inverso. Mas esse magma de saberes e práticas exterminados, porém redivivos, não pode deixar de irrigar nosso presente.

Quando realizou projetos como a Clínica Pública de Psicanálise ou Sem título (NÓS SOMOS O PÚBLICO DO INTERESSE PÚBLICO), ambos na Vila Itororó Canteiro Aberto, a artista Graziela Kunsch questionava o uso da noção de “comum” como potencialmente nociva em um país onde o “público” deve ser ainda construído. Gostaria de você comentasse a relação do comum com o “público”?

Não me parece que se possa identificá-los. A luta pelo resgate da esfera pública no Brasil — ou por sua instauração, já que não é certo que ela tenha existido — passa forçosamente pelo Estado e suas instâncias. A privatização da esfera pública no Brasil tem raízes na colonização, na escravidão, em nosso capitalismo perverso. Talvez isso se deva, no fundo, ao fato de que nunca houve entre nós uma verdadeira revolução. Mas o pensamento do comum passa ao largo do Estado, de suas hierarquias, e diz respeito à emergência de espaços comuns vindos de baixo, da vida das gentes e de suas múltiplas conexões.

Peter Pál Pelbart é professor titular de filosofia na PUC-SP. Publicou Ensaios do assombro, entre outros. Traduziu várias obras de Gilles Deleuze. É coeditor da n-1 edições.

Entrevista por Benjamin Seroussi.

Texto publicado originalmente na edição 1.020 do jornal Nossa Voz.
Acesse a publicação na íntegra aqui.

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