Nossa Voz #1019

Os fins do museu

Guilherme Giufrida e Jéssica Varrichio

Casa do Povo
Nossa Voz

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Ciro Miguel, Meteorito, 2018¹

“Quantas vezes uma coisa pode morrer?” — Eleonora Fabião

Nós, museu do louvre pau-brazyl, um projeto artístico-curatorial independente, agimos pelas margens, lutamos pela liberdade de criação e pela invenção de novas estratégias de existência; por que estamos aqui? Porque acreditamos na construção de bases sólidas para a prática institucional. Porque acreditamos na preservação da memória e dos arquivos. O recente incêndio do Museu Nacional nos faz pensar sobre os sentidos de um museu em tempos de crise do Estado e dos financiamentos para a cultura. Essa questão diz respeito a todos nós, é urgente, é uma pauta que não pode morrer. O nosso programa de ação está baseado também nas potências e deficiências de museus e por essa razão, neste momento tão sombrio, tratamos de criar fôlego para desenvolver mais um pulmão, mais uma proposição dentro da nossa precariedade resistente — um programa de ressonâncias que em sua primeira edição discutiu os fins do museu².

Para escrever sobre o assunto e concatenar todas as vozes necessárias para dar conta dessa tarefa — a minha, Guilherme, como mestre pelo programa de pós-graduação em antropologia social do Museu Nacional; a minha, Jéssica, que nunca entrei no Museu; e a nossa voz coletiva — precisamos nos amparar primeiro na História. Pode-se dizer que a fundação da instituição museológica nasceu bipartida, com duas naturezas bem diferentes, provocando impacto sobre a recepção dos objetos ali. Usemos os exemplos canônicos: Museu do Louvre (fundado em 1773) e British Museum (fundado em 1753). Ambos frutos do século XVIII, o primeiro se estabeleceu como o recôndito das Belas Artes, da Renascença³— Rafael, Michelangelo, Da Vinci –, guardião da segunda maior coleção de pintura do mundo. Um filhote do projeto de ilustração da Revolução Francesa.

Já o segundo, um museu etnográfico, está mais conectado ao empreendimento imperialista europeu com uma coleção que conta com a Pedra da Roseta trazida do Egito por tropas napoleônicas, peças do Partenon removidas pelo embaixador britânico Lord Elgin, entre muitos outros itens pertencentes a diferentes populações.

Breve geral I, de Luisa Doria. Cenas dos filmes Summit of the Mount Agugung de Banbang Suryobroto, 2015 e O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, 1957

Essa forma de organizar o pensamento, os arquivos e a memória chega ao Brasil no momento em que o país se torna uma parte da Europa com a vinda da família real. O país transformou-se em Reino Unido — isto é, perdendo o atributo de colônia mas sob a tutela do rei português –, e instituições do saber e da pesquisa precisavam ser criadas para estar à altura de um território que subitamente se transformou em Império. Dentro dessa empreitada, surge a era dos museus, em que três museus etnográficos são fundados: o Museu Real (que passaria a se chamar Museu Nacional), no Rio de Janeiro, o Museu do Ypiranga, em São Paulo, e o Museu Emilio Goeldi, no Pará. Ao declarar que esse território passará a ser uma extensão de Portugal, não se anulam todas as idiossincrasias anteriores. Como transpor aquele tipo de prática de pensamento para os trópicos?

O Palácio de São Cristovão (onde se instalou o Museu Nacional) teve todo o rito de passagem europeu incorporado: de moradia da nobreza para um espaço público museológico. A começar pela casa de D. João VI, que havia sido cedida pelo comerciante Elias Antônio Lopes em 1809 e que, ao longo de todo o período monárquico, passou por reformas para “ficar com cara” de palácio para se adaptar e cumprir seu papel de palco eficiente de símbolos e rituais do poder da monarquia. Muitos arquitetos de diferentes origens ampliaram o espaço, acrescentando ornamentos; a inspiração passa pelo Palácio Real da Ajuda em Portugal até a reforma de 1876, quando ganha contorno de “Versalhes Tropical”.

Em 1818, fundou-se o Museu Nacional localizado no Campo de Santana, que em 1892 será transferido para a Quinta da Boa Vista, após a Proclamação da República, desempenhando um importante papel como estabelecimento dedicado à pesquisa etnográfica e ao estudo das ciências naturais. Em 1946, o museu é incorporado à UFRJ e, em 1968, o programa de pós-graduação foi implementado — sendo o Programa de Antropologia Social (o PPGAS) o primeiro do país.

Na cantina do Museu, um restaurante por quilo começava a servir mates e pães de queijo logo cedo. Já às 11h30 ficava repleto de funcionários, professores universitários dos importantes programas de pós-graduação e alunos e professoras de escolas públicas primárias de várias regiões do Rio de Janeiro, que tinham na visita ao Museu Nacional um passeio obrigatório. Eram quatro ou cinco mesas comunitárias compridas, onde se podia ver sentados lado a lado Eduardo Viveiros de Castro — antropólogo e um dos inventores do perspectivismo, torção fundamental nas ciências humanas contemporâneas –, e Josefa Silva, professora primária de Nova Iguaçu, que trouxera seus alunos para ver Luzia e os dinossauros.

O mesmo espaço que materializava a origem monárquica brasileira não era, no entanto, um palacete suntuoso, reverenciando o passado de forma saudosista e inerte. Não devemos ter em mente o Museu Nacional como uma instituição de apologia às elites portuguesas que colonizaram o país. Pelo contrário, os cursos de pós-graduação — ao menos o de antropologia, que conhecemos melhor — pensavam as narrativas, personagens e trajetórias contra-hegemônicas à História Nacional. Atrás da fachada imperial, misturavam-se à cantina, salas com paredes cheias de mofo, administradas por gente que fazia aquele lugar funcionar sob o sol carioca com todas as gambiarras necessárias, uma vez que o repasse orçamentário nunca chegava em sua totalidade.

Breve geral II, de Luisa Doria. Cenas do filme Terra em transe de Glauber Rocha, 1967

Por mais que no período de estabelecimento dessa instituição no Brasil ela estivesse mais atrelada aos grandes enigmas evolucionistas europeus e americanos e não tivesse muito diálogo com o seu entorno, a coleção do Museu Nacional não seria composta apenas de artigos de civilizações longínquas, tampouco da vida profunda do mar e de objetos que aterrissaram aqui vindos de viagens espaciais, de dinossauros e insetos. No caso brasileiro, o exotismo mora aqui, ele é nosso vizinho. Ao mesmo passo em que se estava conservando a memória da humanidade, rastros de ancestralidade que habitam o território brasileiro encontravam-se dentro das paredes do Museu Nacional. A construção desse acervo também aconteceu a partir da presença de objetos daqueles que compartilham a mesma terra — negros, indígenas, povo de santo. Diferentemente de outros museus de história natural pelo mundo, no Museu Nacional o Outro éramos nós mesmos.

Sabemos que, para muitos, ver aquele museu pegar fogo era ver suas coisas morrerem mais uma vez. Historicamente, no ocidente, os museus de história natural e etnográficos são fruto não somente de pesquisadores que trazem materiais em colaboração com seus interlocutores, mas de muitos saques em contextos violentos, em que etnias foram dizimadas, e religiões, criminalizadas. Esses museus são a materialização da colonização; entretanto, isso também os fazia território ideal de rearticulação de objetos, símbolos e narrativas.

Na primeira aula de Teoria Antropológica I, depois da implementação da política de cotas para indígenas no PPGAS em 2014, as professoras apresentavam o programa, que partia de textos cujos títulos traziam as palavras “selvagens”“civilizados”, “primitivo”. Uma aluna da etnia Tukano interviu, muito incomodada com aqueles termos que, para ela, nada diziam ou nada tinham a ver com a sua trajetória e experiência de luta e resistência como indígena no Brasil hoje. Além disso, exigiu-se que os alunos lessem no mínimo em português, espanhol, inglês e francês para acompanhar as leituras básicas de formação na disciplina. A mesma aluna argumentou imediatamente que sabia ler, falava e escrevia em nove idiomas, sendo que nenhum deles era espanhol, inglês ou francês.

É extremamente recente a entrada massiva de negros e indígenas nas universidades brasileiras, espaço até uma década atrás pouco inclusivo e plural. O Museu Nacional foi o primeiro programa de pós-graduação do Brasil a incluir políticas afirmativas, como cotas, aprovada em outubro de 2012. Essa primeira geração de jovens teria um papel central na instituição para repensar radicalmente as escolhas curatoriais e os apagamentos produzidos nesses acervos. O incêndio é a capitulação de um processo que mal começara, pois esses espaços só foram abertos muito recentemente.

Desperdiçou-se o lugar onde seria possível produzir uma museografia da descolonização concreta, a partir dos milhões de objetos que ali se encontravam, em relação à história e à arquitetura do antigo Palácio São Cristóvão. Apesar de ser um lugar fundado na mística e no programa colonial, era, por excelência, o lugar com todo o potencial para de fato se discutir a descolonização das instituições e do pensamento. Ali, indígenas conectavam-se às tradições, objetos e etnias extintas, frequentavam esse espaço, começavam a escrever teses de mestrado em suas línguas e a reorganizar e reconectar esse acervo em seus termos.

Aceitamos esse modelo ocidental de guardar memória e então línguas indígenas desaparecidas, que davam seus últimos suspiros, foram doadas em forma de registros fílmicos e arquivos para o acervo do Museu Nacional; acreditava-se e apostava-se que seriam mantidas com cuidado. Caso alguém tenha alguma dúvida, uma língua define uma visão de mundo. Não estamos falando apenas de fonética perdida, de palavras soltas, perdidas. No interior daqueles sons e respirações havia visões de mundo. No dia 2 de setembro de 2018 morreram inúmeras possibilidades de existir.

Breve geral III, de Luisa Doria. Cenas de O sacrifício de Andrei Tarkowsky, 1986.

O museu é o espaço de materialidades que importam ser cuidadas e guardadas, conservam um legado, a memória, a composição de quem nós somos. Mesmo que visitemos o Museu Nacional uma vez na vida, ou nunca, sabemos que lá havia algo de importante dos nossos antepassados, e que queremos que nossos filhos, colegas pesquisadores, nós mesmos, tenhamos acesso no futuro. O museu é um lugar para lembrar e não esquecer; para isso é preciso cuidado, zelo e atenção. Em uma sociedade baseada no lucro e pragmatismo, qual a importância de assegurar que tal acervo resista? A sociedade faz um pacto em que, por meio de impostos e outras formas de compartilhamento do ônus dessa guarda, assegura o cuidado por seu passado. O incêndio evidencia mais do que uma crise no Estado, mas um fim de qualquer pacto de país que vale a pena ser vivido, encarado, pensado coletivamente.

Em um passado recente, houve dinheiro excessivo para grandes obras de impacto durante os grandes jogos esportivos no Rio de Janeiro. Nesse período, foram construídos diversos museus, todos sem acervo. Museus como o Museu do Amanhã, calcados da experiência, na espetacularização, na imagem e na publicidade. Cultura como entretenimento, que evidencia as prioridades em relação ao museu do cuidado minucioso e invisível.

Repetimos genocídios incessantemente e o rumo e a agenda de políticas públicas desanimam. A recente extinção do IBRAM, com a normativa 850, evidencia que um tipo de instituição pública, gratuita, fruto da escolha da sociedade por preservar sua história caiu de qualquer prioridade de recursos dos orçamentos e gestões públicas de vários governos. Como e por que guardar? Onde está a identidade brasileira?

Podemos pensar as nossas práticas institucionais e os significados de um museu a partir da experiência indígena com a memória e a destruição. Se nossos arquivos pegam fogo — não só o Museu Nacional, há várias histórias de outros museus e arquivos de importantes artistas que sucumbiram –, o que significa, por exemplo, a morte parcial de rios como o Rio Doce, ou a destruição provocada por Belo Monte? Como indígenas de diversas etnias lidam com fins de parentes humanos e não humanos, com quem criaram alianças que se estendem de seus corpos, que são partes de si assim como o acervo do Museu Nacional era parte de nós?

Durante a faraônica reforma do Maracanã um grupo variado de indígenas ocupou um antigo museu, fundação que também remontava ao império, ao lado do estádio. Com muita luta, o prédio não foi destruído para virar um estacionamento, e o processo de ocupação ficou conhecido como Aldeia Maracanã. Este outro prédio vazio é bem próximo às cinzas do Museu Nacional. Hoje, ambos, Aldeia e Museu, formam uma espécie de roteiro dos museus do holocausto das histórias minoritárias e da crise do Estado brasileiro.

O Palácio São Cristovão/Museu Nacional era um lugar de embate identitário e, por isso, dizia tanto sobre o Brasil — sobre a colônia, sobre o Reino Unido e também Portugal, sobre a Independência assinada por Maria Leopoldina, sobre a Monarquia, sobre as Phalas do Throno, sobre um projeto de ilustração e demonstração de poder, sobre territórios indígenas, seus costumes e sua dizimação, sobre a escravidão mais longeva da História, sobre a República e a Constituição Republicana, sobre o projeto moderno, sobre a pesquisa universitária reconhecida internacionalmente, sobre o descaso do poder público com seu patrimônio.

As mãos tremem, a vontade é de…, isso aqui é um velório, mas essas palavras estão sendo escritas, nosso coração está aberto. Queremos fazer política falando de amor. Estamos tristes, mas nosso amor tem um lastro de subsistência na precariedade, não é de hoje, ele é grande, ele é enorme, ele tem três pulmões para dar conta de respirar nessa realidade. Chega de terminar as histórias com “Oh! Good business”.

Breve Geral IV, de Luisa Doria. Foto de José Carlos de Carvalho (à esquerda), chefe da expedição 1887–1888, ao lado do diretor do Museu Nacional, o Professor Roquete Pinto, Arquivo Museu Nacional, 1932; O meteorito de Bendegó, em meio aos escombros do Museu Nacional, fotografia de Leo Correa.

Notas

¹ Na noite do dia 2 de setembro de 2018, no Rio de Janeiro, um incêndio devastador destruiu a coleção de mais de 20 milhões de itens do Museu Nacional. Um meteorito de 5,6 toneladas que estava lá desde 1887 sobreviveu. A proposta do trabalho que ilustra este texto, feito por Ciro Miguel, Meteorito (2018), é deixar as ruínas do incêndio e construir uma redoma ao redor do meteorito sobrevivente, um museu com apenas um item de sua coleção.

No mesmo sentido é o desejo do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “A minha vontade, com a raiva que todos estamos sentindo, é deixar aquela ruína como memento mori, como memória dos mortos, das coisas mortas, dos povos mortos, dos arquivos mortos, destruídos nesse incêndio. Eu não construiria nada naquele lugar. E, sobretudo, não tentaria esconder, apagar esse evento, fingindo que nada aconteceu e tentando colocar ali um prédio moderno, um museu digital, um museu da Internet — não duvido nada que surjam com essa ideia. Gostaria que aquilo permanecesse em cinzas, em ruínas, apenas com a fachada de pé, para que todos vissem e se lembrassem. Um memorial” (entrevista ao Jornal Público, 4 de setembro de 2018).

² Encontro realizado na Casa Plana em 24 de setembro de 2018, do qual participaram Ana Luiza Nobre, Luísa Valentini e Renata Motta, cujas falas inspiraram algumas citações deste texto.

³ Apesar de sua grande coleção etnográfica.

Guilherme Giufrida é antropólogo e curador, mestre em antropologia pelo Museu Nacional; atualmente é assistente curatorial do MASP.

Jéssica Varrichio é curadora e atriz, já trabalhou no MAM-SP e no Pivô; concebeu com Giulia Damiani a peça As enchentes entre os incêndios. Ambos são curadores do museu do louvre pau-brazyl

Breve Geral é um ensaio de imagens, frames e falas apropriadas de filmes. Esta seleção foi feita pela artista Luisa Doria em resposta a provocação feita no contexto da edição 1.019 do jornal Nossa Voz: por que ainda não fizemos uma greve geral? Estas imagens buscam propor uma reflexão sobre o tempo em que vivemos, de súbitas mudanças, sejam elas políticas, climáticas ou de ânimos em relação ao futuro

Luisa Doria nasceu em São Paulo em 1987 e reside atualmente em Berlim. Há 13 anos circula entre as fronteiras do cinema, artes plásticas, quadrinhos, ilustração e design, buscando entender os horizontes entre elas.

Texto e ensaio publicados originalmente na edição 1.019 do jornal Nossa Voz. Acesse a publicação na íntegra aqui.

Nossa Voz é uma publicação da Casa do Povo. O jornal existiu próximo à instituição, de 1947 a 1964, quando foi fechado pela ditadura militar devido ao seu posicionamento político. Em 2014, foi relançado pela Casa do Povo tendo seus eixos editoriais repensados a partir do contexto contemporâneo, em diálogo com as suas premissas históricas. O comitê editorial se reúne regularmente para discutir a cidade, a memória e as práticas artísticas em consonância com a situação política atual.

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