Nossa Voz #1020 #Comum

Política como prática de experimentação

Alana Moraes

Casa do Povo
Nossa Voz

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Jumeok bap, bolinhos de arroz típicos da culinária sul-coreana, feitos pelo coletivo Mitchossó, em sua participação no programa Estudos do Comum, na Casa do Povo.

O texto que se segue foi encomendado junto a Alana Moraes no contexto dos Estudos do Comum, programa realizado pela Casa do Povo entre os dias 13 e 16 de novembro de 2019. Assim como as atividades Performando Oposições (2016) e Laboratório para Estruturas Flexíveis (2017), Estudos do Comum se estabelece como uma plataforma imersiva de programação composta por falas, almoços, performances, mutirões e saídas a campo, sempre com o intuito de reunir uma comunidade de pessoas ao redor de um tema, com tempo suficiente para o ócio e para o convívio.

Se nos anos anteriores conhecemos a Agência Solano Trindade (Capão Redondo), a Aldeia Guarani Mbya Kalipety (Parelheiros) e a Escola Nacional Florestan Fernandes (Guararema), em 2019 descemos e subimos a serra para conhecer o Instituto Procomum (Santos) e o quilombo urbano Casa Tainã (Campinas). Guiados pelo conceito de “comum”¹, reunimos convidados como Binna Choi, diretora do Casco Art Institute: working for the commons (Ultrecht, Holanda), Graziela Kunsch, Alana Moraes, os coletivos Mitchossó e Ocupeacidade, além dos próprios gestores do Instituto Procomum e da Casa Tainã.

A fala de Alana Moraes, intitulada “política como prática de experimentação”, encerrou o segundo dia de encontro (14/11), numa noite marcada pela chuva e pela cerveja, e que reuniu o fazer performático culinário do Mitchossó², com deliciosos 주먹밥 (Jumeok bap, na tradução literal, “punho + arroz cozido”), e uma fala de Binna Choi sobre o Levante de Gwangju³.

Nestes tempos de grandes catástrofes e receitas desandadas, não nos basta mais constatar a insuficiência das formas ideológicas; precisamos saber reconhecer o que tem nos tornado vulneráveis, o que tem conseguido capturar nossas possibilidades de experimentar outras formas de viver juntos e de viver bem. Investigar as imagens de pensamento que têm nos envenenado, paralisado, e outras podem ainda nos fazer “vingar” — como é dito das plantas ou de uma receita nova — , fazer pegar novamente revoltas e seus dias seguintes⁴.

Nesse ponto, podemos voltar às imagens que ainda nos informam ideias de transformação. Pode ser que elas tenham sido constituídas a partir de dois domínios distintos. Um deles assumiu um caráter épico de ruptura, a imagem de uma longa noite a partir da qual se poderá finalmente começar do zero. Aqui temos o ímpeto da revolta, os gestos heroicos. Risco, recusa, aventura, combate. Encontramos então a indeterminação de um acontecimento, as aparições multitudinárias, a mobilização de maiorias e, ao mesmo tempo, as virtudes que demandam racionalidade, determinação, força, sacrifício da causa, coragem, discurso e inteligência estratégica.

Contudo, outro domínio vem se conformando em torno de um conjunto de ideias menos heroicas, vamos dizer assim. São ideias sobre o dia seguinte, o café da manhã, as cenas cotidianas e nada épicas que sustentam a reprodução da vida; a estabilidade, as pequenas decisões sobre nossos recursos; as conspirações, o contínuo trabalho de confiança que nos faz interdependentes, as hesitações, as formas de gaguejar, o corpo vulnerável, e também suas experimentações eróticas, as cumplicidades e formas de implicação e cuidado com aqueles e aquelas que amamos, incluindo os viventes de outras espécies.

Dispostas desse modo, não é difícil enxergar que essas duas modulações de imagens foram informadas por uma divisão sexual do trabalho e do pensamento revolucionário: o primeiro conjunto de imagens é obviamente construído a partir de atributos dados ao masculino: força, violência, autoridade, consciência, ruptura, coragem, ousadia, aventura, certeza; o segundo, por sua vez, é construído por atributos marcadamente femininos: o cuidado, o cotidiano, a inescapável reprodução da vida, a estabilidade, o compromisso, o corpo errático e muitas vezes descontrolado, a produção de muitas mediações, as composições, as formas de nos implicar e de ficar mais um pouco com os problemas.

Até que ponto nós assumimos essa herança da binariedade heteropolítica⁵ para pensar nossas imagens de transformação e fomos envenenados por ela para produzir, inclusive, as formas democráticas? Até que ponto as tradições da esquerda não estão irrigadas por essa divisão venenosa e, a partir dela, é sempre atualizada a noção de política como algo que está fora da vida do corpo e da experiência, uma noção de política que revindica pra si uma visão estratégica e não marcada (portanto masculina, branca e bem confortável) sobre o presente? Lugares nos quais nos sentimos sempre interpeladas por forças binárias sobre ter certeza ou hesitar (“confusas”!); sobre saber comandar ou cuidar da escuta (“emocionadas”!); sobre gritarmos “palavras de ordem” no alto de um carro de som ou colocarmos nossos corpos nas rua, entre todos, e não desejar “conscientizar” ninguém (“ingênuas”!).

Esse é o verdadeiro problema que nos importa aqui. Um problema que nos convoca a pensar até que ponto as práticas políticas do Comum vão se conformando, ou são alocadas, propositadamente, nesse segundo conjunto de imagens como um lugar inofensivo, contaminado pelas questões menores da vida cotidiana, feminilizado, pacificado, impróprio e, sobretudo, ingênuo diante da verdadeira guerra de mundos que enfrentamos hoje.

A minha hipótese é que essa divisão genereficada das nossas imagens e práticas de transformação converteu-se em grandes dispositivos-armadilhas dos modernos para que a gente siga desatrelando as práticas do Comum das tradições revolucionárias. Por isso termos urgência em relocalizar as práticas do Comum em uma história de práticas revolucionárias, práticas que desafiaram e desafiam até o limite os modos capitalistas de devastação da vida, e que asseguraram até o fim a indissociabilidade entre a produção de autonomia da vida cotidiana e a revolta; a indissociabilidade entre corpo e guerra, como nos ensinam os povos indígenas dessa terra.

Ou ainda podemos pensar, por exemplo, nas experiências de quilombo, como nos mostrou generosamente Beatriz Nascimento⁶, que eram e são afirmativas em relação à liberdade e criação de uma forma interespecífica de viver junto e de desejar junto, uma tecnologia política do comum que nunca separou a revolta do cotidiano, o corpo da inteligência do combate. Filosofias políticas que, por suas proposições radicais de variação do corpo, assustaram por um bom tempo a heteropolítica de uma esquerda embranquecida.

Mas isso porque, como lembram vários pesquisadores, a contrarrevolução capitalista coincide, e em grande parte foi sustentada, por uma revolução científica racionalista cujo principal produto foi a produção de uma festa fúnebre de binômios de separação da vida do corpo e da mente, a natureza da cultura, a subjetividade da objetividade. O capitalismo se produziu sobretudo com a ajuda de um golpe epistemológico franco-atirador; uma nova forma de partir o mundo e de extrair valor de suas divisões.

Para muitas autoras, a caça às bruxas (nos séculos XVI e XVII) “foi então primeiro fenômeno de modernização, de um pressuposto sangrento para a ascensão moderna da racionalidade masculina (…) Na caça às bruxas, portanto, estava claramente em ação o mecanismo das projeções: o temor aos próprios impulsos e afetos encontrava expressão na denúncia contra a mulher”⁷. Silvia Federici⁸ afirma que nesse momento as mulheres eram acusadas de ser “pouco razoáveis, vaidosas, selvagens, esbanjadoras”. Ela segue dizendo que “a língua feminina era especialmente culpável, considerada um instrumento de insubordinação”. A mulher-bruxa se tornaria a Outra do projeto emergente de racionalidade moderna — as bruxas como o bode expiatório para o ensaio de modernização que simultaneamente tratou de cruzar o oceano.

A construção da soberania moderna, da forma Estado, assim como da própria ideia posterior de cidadania, dependia de um idioma generificado que guardasse a ficção de um sujeito contido, “racional”, autossuficiente e livre das contaminações do mundo desordenado da vida do corpo e das economias políticas de interdependência. As ciências modernas, nesse sentido, são herdeiras dos caçadores, assim como a empreitada da colonização que igualmente se sustenta em torno desse projeto de disciplina dos corpos em uma versão violenta e racista.

A expansão da classe operária urbana em São Paulo, ainda no começo do século XX, por exemplo, foi atravessada por constantes investimentos disciplinadores da vida cotidiana, dos corpos e da produção da vida na cidade. A questão mais discutida pelo poder público naquela altura não dizia respeito às fábricas, mas sim ao perigo dos cortiços vistos como epicentros de contaminação. Técnicos higienistas são convocados como os grandes especialistas capazes de oferecer uma nova versão ao racismo colonial dos modernizadores, agora culpando os mais pobres e mais negros por uma vida feminilizada⁹ de promiscuidade, doença, contágio e revolta. Era a “imagem negativa de uma alteridade assustadora — o povo selvagem, incivilizado, bruto”¹⁰. O ataque e a criminalização das ocupações de sem-teto seguem ainda esse mesmo fio do poder que teme as soluções coletivas e autônomas para a vida — “vagabundos”, eles dizem há 500 anos diante daqueles que recusam ser meros “funcionários do mês”.

A história do Comum é uma história de expropriação de terras, e também é a história contínua da expropriação de um regime de produção de conhecimento a respeito do tema “viver junto”. Essa expropriação e permanente criminalização da interdependência são necessárias para que as ficções mais importantes do capitalismo sobrevivam: a ideia do indivíduo autossuficiente; a ideia de que estamos aptos a concorrer uns contra os outros; a ideia de que cada indivíduo é seu ponto de partida, que cada um é responsável pelo seu próprio fracasso, de que cada indivíduo é forjado por uma ontologia proprietária na qual ele pode ser dono de si, de uma conduta, de uma identidade, quem sabe de uma propriedade, de uma mulher, de uma terra, de alguns animais, de muitas verdades etc.

“A história do Comum é uma história de expropriação de terras, e também é a história contínua da expropriação de um regime de produção de conhecimento a respeito do tema ´viver junto’.”

Por definição, um “cidadão” é alguém que controla seu corpo, que o domestica, ou que dele pode escapar para eleger as melhores decisões, os mais aptos candidatos. Cidadãos possuem a habilidade de fazer suas próprias escolhas no silêncio de seus corpos¹¹.

A insistência das muitas práticas do Comum, em todos os seus desesperos e devastações — a cozinha coletiva, os espaços de festas, os quilombos, os terreiros, os cortiços, as ocupações — , passa a ser alvo de toda a política urbana moderna. É preciso a todo custo produzir uma vida com um só fogão no qual uma só mulher guardará o segredo da infelicidade e da irrealização do projeto de sucesso prometido pelo capitalismo. Segredo esse que continuamos guardando até hoje, como presas fáceis que nos tornamos, repetindo o ritornelo do “sem tempo” para fazermos coisas juntos, “sem tempo” para nos encontrarmos. Consumidos por nossos próprios sacrifícios, não somos capazes de assumir a verdade do corpo, e a verdade é que não aguentamos mais.

Agora já podemos olhar o Comum a partir de todo o perigo das desestabilizações que ele produz; todo o perigo que ele representa e sempre representou. O neoliberalismo radicalizou uma forma de cidadania que tem a ver com sacrifício — ou, se quisermos, a cidadania sacrificial¹²: aquela que nos demanda sempre mais, a despeito do fracasso, das impossibilidades, da indiferença, da solidão.

E é nesse terreno que o momento épico da revolta se encontra com as imagens não tão heroicas das práticas do comum. Nos momentos da insurgência apaixonada — como aconteceu aqui, em 2013, e na Coreia do Sul, em Gwangju, em 1980 — , os herdeiros dos modernos, aqueles que se pensam como os nossos responsáveis, nossos representantes, tratam de impor à revolta uma vez mais o dispositivo da binariedade heteropolítica: os “vândalos” contra os “pacíficos”, os “bons cidadãos” contra os “detratores da cidadania sacrificial”, os “ingênuos” contra aqueles que sempre “sabem”. Mas também nas diferentes e insistentes práticas do comum trata-se de acusar seus praticantes de “vagabundos”: os detratores da produtividade, da empregabilidade, do trabalho assalariado, da disciplina e do sacrifício.

Existe um fio que conecta bruxas, quilombos, aldeias indígenas, ocupações de sem-teto, Gwangju, as muitas comunas e práticas de autogoverno: trata-se da insistência na indissociabilidade entre a vida do corpo e a revolta, entre a aventura de produzir uma vida comum pela diferença e o contínuo desafio de conjurar a epistemologia dos modernos e suas instituições, a sua ciência, a indissociabilidade entre liberdade e interdependência. E esse lugar trans-histórico de conjuração por excelência é a cozinha junto com as práticas de experimentação.

As cozinhas coletivas como práticas do comum seguem desafiando os binarismos, as produções autorizadas de verdade. Elas convocam práticas de experimentação e de produção de conhecimento. Citando uma definição breve de Cacique Babau, liderança Tupinambá, as retomadas das terras indígenas podem ser também consideradas “um laboratório, onde ocorre o resgate do ser índio”¹³. Laboratório é um lugar de experimentação no qual podemos nos perguntar, investigar, testar, mudar de ideia, ativar algumas propriedades e neutralizar outras¹⁴. Não tem a ver com afirmar o que somos (revolucionários verdadeiros, marxistas, feministas); as práticas experimentais, tal como bem colocou o Cacique Babau, têm a ver com uma hesitação, um modo experimental e investigativo de se associar com humanos ou não humanos, com a terra, as substâncias, um deslocamento de si, uma reativação da nossa inteligência coletiva, um convite: o que é ser um Tupinambá, afinal?

Isabelle Stengers lembra que a famosa sentença-slogan do pensamento iluminista, enunciada pelo filósofo Immanuel Kant, sapere aude (“ousar saber”) é, na verdade, parte de um poema do poeta romano Horácio. Se em Kant “ousar saber” pretendia comunicar a ousadia da razão e a missão de levar a luz para aqueles que permaneciam na escuridão, em Horácio sapere tem relação não apenas com “saber”, mas também com “sabor”. Ou seja, não se trata de conhecer uma coisa ou outra. “É antes perceber os efeitos da relação experimentada com ela — uma arte dos efeitos”.

Provar (to taste) não é testar, verificar ou identificar fraudes. É aceitar o risco de encontros reais, encontros que podem significar sustento ou envenenamento. Ouse provar se deseja se tornar hábil para saber: essa não é uma fórmula para uma iluminação conquistadora, mas para uma exploração relacional cautelosa e situada, pois os efeitos nunca são “objetivamente” bons ou ruins, mas não são “apenas subjetivos” também. Eles estão relacionados ao que está em jogo na situação¹⁵.

Estar na cozinha é ter que realizar um feito (feitios, feitiços) que passa necessariamente pela criação experimental a partir dos elementos disponíveis e sempre levando em conta aqueles e aquelas que irão provar o feito; ou seja, um alimento está sempre implicado em sua malha de comensalidade: fazer uma refeição é imediatamente constituir uma comunidade provisória entre aqueles que cozinham e aqueles que comem, uma relação que se estabelece a partir do sabor, da experimentação, entre todos.

A comida também transforma o corpo, nos agencia com aquilo que os modernos chamaram de “natureza”. Nas cozinhas abertas e coletivas, é impossível não se dar conta de que o mundo está muito mais vivo do que imaginamos. A cozinha nunca foi só um lugar de produção de transformação de alimentos, tal como o quis fazer a todo custo a ordem industrial. Como espaços de experimentação por excelência, nas cozinhas sempre foram elaboradas as práticas de phármako (o conhecimento sobre o que é remédio e o que veneno, o que cura e o que mata), ervas, temperos, caldos, odores, sensações, paixões.

Não há cozinha sem relação, e é a verdade da relação que sustenta todo o acontecimento de uma ocupação sem-teto contra a propriedade privada. Os primeiros laboratórios experimentais estavam muito mais próximos de cozinhas do que de lugares assépticos e protegidos da contaminação do “exterior”, características próprias dos laboratórios modernos¹⁶. As cozinhas coletivas das ocupações se fazem necessariamente pelo seu exterior. A cozinha é o espaço onde se experimenta fazer coisas que favorecem a vida compartilhada, “ninguém na cozinha tenta assegurar-se de quem tem razão ou de que seus argumentos são incontestáveis”¹⁷. Em suma, uma prática experimental implicada, como sempre foram as ciências experimentais, como sempre foram nossas técnicas de viver junto e acreditar no mundo.

O Comum e a revolta interessam-se, tal como os químicos e os alquimistas, pelos modos como os corpos estabelecem relação e, por consequência, desencadeiam reação. Se existe revolta ou práticas do Comum — aqui, lembro de Stengers outra vez — , é porque os corpos são definidos como “ativos”, ativáveis, mas sua atividade não pode ser atribuída a eles: ela depende das circunstâncias e pertence à arte dos químicos — ou das cozinheiras, das revolucionárias desobedientes-mitchossó, da produção dos bolinhos de arroz durante a revolta de Gwangju. O que está em jogo aqui é criar tipos de circunstâncias nos quais os corpos se tornarão capazes de produzir o que somos capazes de desejar juntos: arte de catálise, de ativação, de moderação, de atenção.

As práticas experimentais do comum desconfiam do que chamamos de democracia como “a forma menos pior de gerir o rebanho humano”¹⁸ e trata de experimentar uma aposta outra, (des)centrada na questão não do que são os humanos, mas do que eles podem se tornar capazes. Aqui se pensa por que se é forçado a pensar; pensa-se por que o corpo não aguenta mais e por que somos agora obrigados a experimentar.

O comum associado à revolta é sempre um laboratório aberto e experimental. São coinvestigações sobre modos não proprietários de viver em companhia; trata-se de fabricarmos dispositivos que conjurem os responsáveis, os autorizados, os representantes, os especialistas, os que se imaginam donos.

A revolta não é um enigma, como bem lembrou Edson Teles. Ela não existe para ser “interpretada”, para ser “mobilizada”, “convocada” de algum lugar que se autoconsagra “mais consciente” porque sabe “ver melhor”. A revolta é a visão que está na pele, é ver com a pele. “O enigma é como fazemos para não entrar nos cálculos das razões de governo na hora em que a potência das ruas explode e queima”¹⁹. Os laboratórios do comum podem emergir para que possamos experimentar modos pelos quais podemos nos tornar cúmplices diante das desobediências dos sacrifícios, diante de nossas dissidências. A revolta e as práticas do comum entrelaçam-se sempre pelo reconhecimento de que “[e]xistimos pelas coisas que nos sustentam, assim como sustentamos as coisas que existem através de nós, numa edificação ou numa instauração mútua”²⁰ numa refeição compartilhada que possa fazer circular uma vez mais nossas histórias, as dos nossos avós, as dos nossos companheiros.

Os laboratórios do comum exigem praticantes não especialistas. As práticas experimentais do comum são sempre “uma aventura, tanto empírica quanto pragmática, porque não significa recuperar o que foi confiscado, mas aprender o que é preciso para habitar novamente o que foi devastado”²¹.

Os muitos laboratórios do comum insistem em borrar as fronteiras da ciência moderna que separou o corpo das práticas de conhecimento. Os “olhos da carne” e os “olhos da mente”, como constam nos textos de Platão e Descartes. O problema compartilhado pelos dois filósofos seria precisamente o de como combater ou superar a “instabilidade”, as “deficiências e distrações dos nossos olhos inundados de realidades sensíveis” se livrando finalmente dos “olhos da carne”²². O comum é a afirmação do instável (ou do metaestável)²³ contra o Estado, das práticas de aberturas contra os códigos fechados e securitizados, das reações químicas contra os programas. A revolta prescinde o comum porque agora já sabemos com Stengers, bruxas, indígenas, quilombolas e todos os dissidentes do sacrifício:

“o objetivo não é escapar cegamente e enfrentar o caos, mas fabricar e experimentar”.²⁴

Alana Moraes é antropóloga, autora do ensaio “Contato e improvisação: O que pode querer dizer autonomia?” (2018); co-organizadora do livro Junho: Potência das ruas e das redes (2014) e da Cartografia das emergências: novas lutas no Brasil (2015). Elaborou e coordenou junto com Fábio Zuker e Helena Ramos, o LABORATÓRIO VILA ITORORÓ: EXPERIMENTOS DE UMA VIDA EM COMUM e hoje faz parte, junto com com Henrique Parra, do Laboratório do Comum — corpos, territórios e tecnologias.

Texto publicado originalmente na edição 1.020 do jornal Nossa Voz.
Acesse a publicação na íntegra aqui.

Nossa Voz é uma publicação da Casa do Povo. O jornal existiu próximo à instituição, de 1947 a 1964, quando foi fechado pela ditadura militar devido ao seu posicionamento político. Em 2014, foi relançado pela Casa do Povo tendo seus eixos editoriais repensados a partir do contexto contemporâneo, em diálogo com as suas premissas históricas. O comitê editorial se reúne regularmente para discutir a cidade, a memória e as práticas artísticas em consonância com a situação política atual.

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Notas

¹ O tema do “comum” permeou a programação da Casa do Povo ao longo do ano de 2019, graças ao prêmio ProAC Editais Território das Artes (Espaços Independentes), com o projeto “Casa do Povo: Instituição do Comum”, que propôs a realização de obras comissionadas no jardim da Casa do Povo, a plataforma de encontros Estudos do Comum e a edição do presente jornal Nossa Voz.
² Mitchossó é um dos coletivos da Casa do Povo. Composto por mulheres coreano-brasileiras, o grupo discute relatos e experiências pessoais sobre temas considerados polêmicos dentro da comunidade, assim como organiza grupos de estudos abertos que abordam questões asiáticas para além da Coréia do Sul e de seus embates contemporâneos. “Mitchossó”, em coreano, equivale à expressão “você enlouqueceu?”.
³ A apresentação de Binna Choi se baseou no texto “No vácuo do Levante de Gwangju: lutas intermináveis”, entrevista de Bik Van der Pol com Binna Choi, publicada na edição anterior do jornal Nossa Voz, №1019.
⁴ Jean Tible tem também pensado sobre uma virada na direção de uma “política do cultivo”.
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⁷ SCHOLZ, Roswitha. “O valor é homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos — CEBRAP, São Paulo, n. 45, julho 1996.
⁸ FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Editora Elefante, 2016.
⁹ Chalhoub (1996) conta como a espetacular ação de destruição do grande cortiço Cabeça de Porco no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX foi narrada com entusiasmo pela imprensa da época, quase sempre associando a imagem de Barata Ribeiro (médico e prefeito) ao herói Perseu, assassino de Medusa, enquanto o cortiço destruído era associado à Medusa, uma imagem que evoca uma encenação da masculinidade que destrói uma vida feminilizada, contaminada e perigosa
¹⁰ RAGO, Margareth. Do Cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista. Brasil 1890–1930. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
¹¹ MOL, Annemarie. The logic of care: health and the problem of patient choice. London: Routledge, 2008.
¹² BROWN, Wendy. Cidadania Sacrificial: Neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018
¹³ Ver o importante trabalho de Daniela Alarcon: ALARCON, Daniela Fernandes. O retorno da terra: as retomadas na aldeia tupinambá da Serra do Padeiro, Sul da Bahia. São Paulo: Editora Elefante, 2019.
¹⁴ Com Henrique Parra temos experimentado um Laboratório do Comum nos perguntando coletivamente como se faz uma
vida não-fascista a partir do fazer-bairro. Ver: https://trama.pimentalab.net/
¹⁵ STENGERS, Isabelle. Aude Sapere: Dare Betray The Testator’s Demands. Parallax, Vol. 24, №4, 406–415, Field Philosophy and Other Experiments, 2018.
¹⁶ LAFUENTE, Antonio. La cocina frente al laboratorio, 2017.
¹⁷ LAFUENTE, Antonio. La cocina frente al laboratorio, 2017.
¹⁸ STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, p. 442–464, abr. 2018.
¹⁹ https://urucum.milharal.org/2019/10/30/a-revolta-nao-e-um-enigma/
²⁰ LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo: n-1 edições, 2018.
²¹ Stengers, Isabelle. No Tempo das catástrofes — resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naif, 2015.
²² GÁRCEZ, Marina. Um mundo común. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2013.
²³ PARRA, Henrique. Laboratório tecnopolítico do Comum: protótipos, reticulação e potência da situação. Dois pontos, Curitiba, São Carlos, volume 16, número 3, p. 111–120, julho de 2019.
²⁴ STENGERS, Isabelle. “Experimenting with Refrains: Subjectivity and the Challenge of Escaping Modern Dualism”. Subjectivity, maio 2008, volume 22, pp. 38–59.

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