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Artigo de luxo? A pobreza menstrual e a falta de acesso a absorventes ao redor do mundo

Maria Clara Serpa
Nosso Sangue
Published in
9 min readNov 15, 2020

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Muito mais do que apenas um tabu que afeta mulheres cisgênero, alguns homens trans e pessoas não-binárias, causando vergonha e os impedindo de realizar algumas atividades do seu dia a dia durante aquele período mês, a menstruação, infelizmente, pode mudar para sempre a forma como se inserem na sociedade e influencia diretamente a desigualdade de gênero. Cerca de 1,8 bilhão de pessoas menstruam ao redor do mundo e 12,5% delas, segundo a ONU Mulheres, delas enfrenta dificuldades em todos os seus ciclos para ter acesso a produtos menstruais — como absorventes externos e internos –, produtos de higiene geral — como papel higiênico — e até a saneamento básico, água tratada, banheiros próprios e a educação adequada para lidar com o período. Mais de 1 bilhão de mulheres não possui acesso a um banheiro seguro e limpo e 526 milhões sequer têm um banheiro em casa.

Essa questão é chamada de pobreza menstrual e, apesar de muitas vezes ser tratado como um problema de acesso apenas a absorventes, envolve todas as outras questões de higiene. O termo foi criado na França e, nos últimos anos, ganhou força e se tornou um dos grandes pontos de discussão de algumas vertentes feministas, refletindo até em leis em vários países do mundo.

Os absorventes são artigos de luxo, apesar de serem necessários para mais da metade da população mundial em algum momento da vida. Por mais que sejam tão utilizados quanto um rolo de papel higiênico, são raras as cestas básicas que trazem absorventes internos ou externos. No Brasil, apenas uma unidade custa cerca de R$ 0,50. Se levarmos em conta que, idealmente, um mesmo absorvente não deve ser utilizado por mais de seis horas, menstruantes deveriam usar, pelo menos, quatro unidades por dia. Em um ciclo médio de uma semana, isso custaria R$ 14, um valor extremamente alto para quem vive na pobreza.

Segundo o Impostômetro, há uma taxação de 35% sobre o preço dos pacotes de absorventes no Brasil, uma das maiores taxas do mundo. No governo Dilma, alguns produtos higiênicos de cesta básica tiveram isenção de impostos, mas os absorventes foram vetados pela então presidente. Outras nações, como o Canadá, a Austrália, a Malásia e alguns estados dos Estados Unidos zeraram os impostos sobre os produtos menstruais.

A precariedade menstrual é muito mais do que apenas um problema de falta de dinheiro, é um problema global de desigualdade. Uma pesquisa feita pela marca de absorventes Sempre Livre com mais de 9 mil mulheres brasileiras apontou que 22% das meninas entre 12 e 14 anos e 18% das que têm entre 18 e 25 não tem acesso aos produtos. Para conseguirem conter o sangramento, utilizam materiais impróprios como sacolas plásticas, papelão e até miolo de pão. No caso de pessoas em situação de rua, muitas vezes sequer têm roupas íntimas. A falta de acesso pode causar infecções graves que aumentam a mortalidade feminina ou acometer completamente o sistema reprodutor. Engana-se, no entanto, quem pensa que apenas países subdesenvolvidos enfrentam o problema. No Reino Unido, uma das maiores economias globais, 10% das meninas de até 20 anos não conseguem comprar absorventes, segundo a ONG International Plan.

Outro grupo extremamente afetado pela situação é a de pessoas em situação de privação de liberdade. No caso de mulheres cisgênero, é obrigação do estado oferecer os produtos, porém, na realidade, são fornecidos, em média, apenas de um a oito absorventes por mês para cada uma delas, o que é insuficiente. O livro Presos que Menstruam, de Nana Queiroz, mostra muito bem essa realidade e como a escassez de absorventes dos presídios faz o produto se tornar uma moeda de troca entre as mulheres. Quando recebem visitas das famílias, algumas das presidiárias conseguem mais absorventes, mas, com a pandemia, que impossibilitou as visitas, a situação se agravou ainda mais. A situação é também uma forma de violência estrutural de gênero porque é uma forma de acabar com a dignidade das mulheres. Em 2014, a ONU reconheceu a higiene menstrual como uma questão de saúde pública e de direitos humanos e, portanto, é um dever dos governos garantirem isso às pessoas que menstruam.

Além da questão física de incômodo e a maior chance de desenvolver doenças, a precariedade menstrual afeta o futuro dos menstruantes, impossibilitando que muitas meninas terminem seus estudos e, no futuro, consigam independência financeira. Segundo informações da Action Aid, uma em cada 10 meninas faltam a aula durante o período menstrual no continente africano. Alguns dos países mais afetados no continente são Quênia, onde 50% das meninas deixa completamente a escola depois da menarca; Burkina Faso, onde 83% das pessoas que menstruam não possuem banheiros adequados para se higienizar e trocar o absorvente; e Niger, onde 77% não possui as condições necessárias de higiene. Na África subsaariana em geral, 57% das meninas frequentam a escola primária, mas, depois da menstruação, a taxa cai para apenas 17% da população feminina.

O estigma e a vergonha são fatores importantes para a evasão escolar depois da menarca, mas, o principal, é a falta dos produtos específicos para conseguir sair de casa. Afinal, sem um absorvente, como sair de casa usando uma sacola plástica ou um pedaço de papelão para conter a menstruação? Em casa, ao menos, a menina pode ficar isolada e enfrentar o problema sozinha, sem ter que se expor.

No Brasil, não há dados específicos sobre meninas que deixam a escola devido à pobreza menstrual, mas alguns números coletados pela ONG Trata Brasil dão uma ideia da dimensão do problema. 23% das brasileiras de 15 a 17 anos não tem dinheiro para comprar absorventes todos os meses. 1,6 milhão de mulheres no país não têm banheiro em casa, 26,9 milhões não possuem esgoto e 15 milhões não têm acesso a água tratada. Muitas delas acabam emendando cartelas de anticoncepcionais orais para não menstruarem e, assim, não precisarem comprar absorventes. O contraceptivo é oferecido de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde.

Essa situação mostra que a pobreza tem um recorte de gênero, além de também envolver o racismo, já que grande parte da população afetada no Brasil é negra ou parda, que correspondem a 75% das classes mais baixas brasileiras. Depois de todo o problema envolvendo os estudos, quando mais velhas as mulheres também enfrentam problemas no trabalho devido à menstruação. Os patrões, em sua maioria homens cisgênero, não são compreensivos e não se preocupam caso a mulher esteja sentindo algum desconforto no período do mês em que menstrua.

Na Índia, um dos países em que a menstruação é mais estigmatizada e em que a pobreza menstrual é um enorme problema, segundo matéria da BBC, 70% das doenças reprodutivas em todo o país são causadas pelo uso de materiais impróprios na vulva ou na vagina. No estado de Tamil Nadu, ao sul do país, é comum que os empregadores forneçam remédios e anticoncepcionais que suspendam a menstruação para que não haja a possibilidade as empregadas faltarem ao serviço. Já em Maharashta, na região centro-oeste, as mulheres tomam decisões mais drásticas. O estado possui muitas plantações de cana-de-açúcar e, estar menstruada atrapalha quem trabalha nos campos, por ser um trabalho que sempre requer muito esforço e acontecer debaixo do Sol. Os proprietários das plantações não possibilitam que, quando necessário, as trabalhadoras tirem folgas. Com medo de perder o emprego, as mulheres passaram a fazer cirurgias para a retirada completa do útero e, assim, acabar com o “problema” de menstruar. Além disso, não menstruar acaba com as chances de infecções de repetição pela falta dos absorventes. A situação tomou proporções tão grandes que, de 2016 a 2019, foram realizadas quase 5 mil histerectomias na região.

De acordo com informações da ONU Mulheres, o número de mulheres em situação de precariedade menstrual aumentou significativamente devido à crise que a pandemia de Covid-19 causou no mundo todo. No Brasil, as mulheres perderam 25% mais empregos do que os homens, especialmente por serem maioria no mercado informal ou nos serviços domésticos, algumas das áreas mais afetadas pela crise. Além de aumentar o número de mulheres que não conseguem comprar produtos menstruais, piorou drasticamente a saúde mental do grupo, que agora, muitas vezes, precisa decidir entre comprar comida ou comprar absorventes.

Ndileka Mandela, neta de Nelson Mandela e ativista no combate contra a violência de gênero e a desigualdade de gênero, também atua com políticas contra a precariedade menstrual na África do Sul. No início da pandemia, um carregamento de mais de 10 mil absorventes que a ativista conseguiu como doação para mulheres em situação de vulnerabilidade no país não conseguiu sair do porto de Genebra, na Suíça, devido às restrições. Na Índia, diversas fábricas de absorventes fecharam durante a pandemia, por não serem consideradas serviços essenciais. O problema na produção e distribuição afetou diretamente 121 milhões de menstruantes, especialmente nas áreas rurais do país.

Uma dessas áreas foi retratada no curta-metragem Absorvendo o Tabu, de 2018, que venceu o Oscar de 2019 como Melhor Documentário de Curta-Metragem. Dirigido pela indiana Rayka Zehtabchi, o filme fala sobre o estigma da menstruação em uma comunidade rural indiana e mostra o processo de implementação de uma máquina de absorventes biodegradáveis que, além de acabar com o problema da falta de recursos para comprar o produto, pode ajudar a promover a independência financeira das mulheres que trabalharem produzindo os absorventes.

O sucesso do filme, ao lado da ação da maratonista Kiran Gandhi alguns anos antes, quando correu uma prova menstruada sem absorvente para chamar a atenção para a importância do produto, reacendeu o debate em vários governos ao redor do mundo, que passaram a se atentar à questão da pobreza menstrual. No ano passado, o parlamento britânico passou a distribuir absorventes internos e externos gratuitamente em todas as escolas e universidades, impulsionados pelo movimento #FreePeriod, criado pela estudante Amika George. Já no início deste ano, a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, também afirmou que passará a distribuir os produtos nas instituições de ensino, com o objetivo de diminuir pela metade a pobreza menstrual no país em até 10 anos. Segundo Jacinda, estima-se que 95 mil neozelandesas sofram com o problema atualmente e 1 em cada 12 meninas percam aula todos os meses por isso.

A medida mais recente ocorreu na Escócia, em 25 de novembro. A Lei de Produtos Menstruais foi aprovada de forma unânime e torna gratuito o fornecimento de absorventes e artigos de higiene relacionados a todos que precisarem. Com a lei, a Escócia se tornou o primeiro país do mundo a disponibilizar esse tipo de produtos de forma completamente gratuita o que, com certeza, impactará de forma positiva na diminuição da pobreza menstrual.

O projeto foi iniciado pelo Partido Trabalhista escocês e corre há quatro anos no país. Com a crise econômica devido a pandemia, a lei foi finalmente aprovada. Com custos estimados em cerca de 8,7 milhões de libras por ano, a lei manterá a decisão que determina que escolas e universidades também ofereçam os produtos de graça, o que já havia sido definido em 2017 pelo primeiro-ministro do país.

No Brasil, alguns projetos de lei foram criados, mas nenhum deles foi colocado em prática. O projeto de lei nº 4.968, de 2019, foi criado pelo vereador do Rio de Janeiro Leonel Brizola Neto e, assim como os outros países, pretendia distribuir absorventes nas escolas municipais. A P.L foi aprovada e promulgada, mas até o momento não foi colocada em prática. Mais tarde no mesmo ano, a deputada federal por Pernambuco Marília Arraes, apresentou um projeto semelhante para as escolas de Pernambuco, que está em tramitação no Congresso Nacional. Em março deste ano, Tabata Amaral, deputada federal por São Paulo, apresentou uma P.L. que visa a distribuição de absorventes em locais públicos.

Enquanto nada é colocado em prática por parte do Estado, cada vez mais coletivos feministas e ONGs criam campanhas de arrecadação de absorventes, coletores e roupas íntimas especialmente para mulheres em situação de rua e encarceradas. Outras empresas investem em soluções sustentáveis e reutilizáveis, como absorventes produzidos a partir de produtos reciclados ou casca de banana para, além de oferecer uma solução para o problema da precarização menstrual, ajudar a diminuir o lixo que os absorventes descartáveis produzem.

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Maria Clara Serpa
Nosso Sangue

Jornalista formada pela PUC-SP com experiência em jornalismo de moda, beleza, estilo de vida e redes sociais.