Isabel

Maria Clara Serpa
Nosso Sangue
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20 min readOct 24, 2020

Acho que a história de Isabel* foi uma das que mais me impressionou dentro dos relatos. Quando resolvi entrevistar alguma mulher de família católica, imaginei que seu relato seria mais similar a outros que já tinha ouvido de amigas ou familiares que também cresceram em meio ao catolicismo e até mesmo do meu. O preconceito muitas vezes nos faz acreditar que determinadas atitudes condizem com determinadas religiões ou culturas — o clássico estereótipo de que a mulher muçulmana é sempre oprimida, por exemplo. Por isso, foi tão tocante ouvir um relato tão diferente de uma pessoa que tem a origem relativamente parecida com a minha. Foi essencial para abrir meus olhos

Isabel, de 45 anos, nasceu em uma família católica fervorosa. Em casa, temas tabus eram proibidos. Ela sequer tinha ouvido falar sobre menstruação quando teve sua menarca e, anos depois, quase deixou de fazer um tratamento médico necessário para a Síndrome do Ovário Policístico porque a religião, em sua teoria, não permite o uso de anticoncepcionais.

“Meu nome é Isabel, sou uma mulher preta de 45 anos, letróloga, divorciada e tenho quatro filhos, duas meninas e dois meninos. O mais velho tem 25, o segundo, 20, a terceira, 14 e a mais nova tem 12. Nasci em Brasília e tenho mais três irmãos, dois meninos e uma menina, e sou a mais nova deles. Meus pais são casados há 65 anos e sempre ter um casamento perfeito. Ela, dona de casa, ele, comerciante que trazia o dinheiro para colocar comida na mesa.

Por muito tempo, diria que até alguns anos atrás, vi o casamento dos dois como um exemplo, o maior exemplo de amor verdadeiro, de relacionamento, de família. Atualmente, vejo que, na verdade, tinha muita coisa errada ali por muito tempo. Minha mãe sempre foi muito submissa, não tinha liberdade para fazer ou falar nada, vivia sempre às sombras do meu pai. Vivíamos como a clássica família tradicional brasileira católica, com a mãe dona de casa, o pai provedor. Ela cuidando da casa e ele sentado no sofá assistindo futebol. Ninguém da minha família admite, mas eu sei que pelo menos a minha irmã mais velha, que tem 47 anos, também pensa nisso. É uma relação totalmente desigual até hoje e, sinceramente, não vi melhora nenhuma mesmo com o passar do tempo.

Desde pequenas, eu e minha irmã fomos ensinadas a sermos meninas modestas, não podíamos usar roupas curtas, assistir alguns tipos de filmes e até ter amigos homens era mal visto. Sempre ajudávamos a minha mãe com as tarefas domésticas para aprendermos a ser boas esposas um dia. Era esse o ideal de vida que a família tinha para a gente. Já com meus irmãos, era tudo diferente e eles tinham bem mais liberdade, afinal, são homens. E só isso já basta.

Eu acho que boa parte disso tem a ver com a religião. Meus avós, de ambos os lados da família, eram extremamente religiosos. Com o passar dos anos minha avó e avô maternos mudaram um pouco e passaram a ser um pouco mais flexíveis nos mandamentos, apesar de continuarem rezando muito e frequentando a igreja toda semana. Minha avó trabalhava fora e era uma mulher mais independente. Já do lado do meu pai, sempre continuaram muito fervorosos. É até raro ver católicos como eles eram hoje em dia, nós temos a visão de que algumas vertentes de evangélicos são ‘radicais’, mas, na verdade, meus avós eram exatamente do mesmo jeito ou ainda mais tradicionais.

Meus pais se conheceram através de amigos em comum, mas nunca contaram a história a fundo para nós, filhos. Eles namoraram pouco mais de seis meses antes de noivarem. A mãe do meu pai não via com bons olhos o jeito mais moderno da família da minha mãe, por mais que hoje, para mim, não pareça nada moderno. Então, como ela estava completamente apaixonada, acabou ficando mais próxima da família do meu pai e mudando um pouco seu jeito.

Fiquei sabendo disso tudo pela minha avó materna, com quem eu conversava muito. Minha mãe nunca falou sobre isso comigo. Segundo minha avó, ela tinha o sonho de fazer faculdade de medicina e trabalhar fora, mas foi praticamente proibida pela família do meu pai. Ninguém de fato impôs, mas ela sabia que seria mal vista e resolveu se conformar de vez com a vida de dona de casa e até se afastou um pouco da própria família por causa disso.

Eles se casaram quando minha mãe tinha 18 anos e meu pai 21. Logo tiveram o primeiro filho e assim seguiram. Minha infância foi muito boa, nunca nos faltou nada material ou comida, mas hoje vejo que faltou muito acolhimento. A gente — eu e meus irmãos — tínhamos um certo medo do nosso pai porque ele nunca tivemos uma relação muito próxima. Ele sempre foi presente, mas não era carinhoso e aberto. Com a minha mãe era um pouco melhor, mas também não tínhamos muita abertura. Ela sempre foi muito fechada. Hoje, imagino que isso tenha a ver com as regras e tudo que era imposto a ela, a obrigação de ser a esposa perfeita, ser modesta, se vestir de maneira discreta, cuidar dos filhos, ser religiosa. Sempre foi muito pra ela carregar, eu fico extremamente triste em pensar o quanto ela sofreu. Não me lembro de minha mãe ter amigas ou sair com ninguém, ela mal se distraía. Então, imagino o quanto ela guardou e o tanto de sapo que engoliu a vida inteira para conseguir passar essa ideia de mulher perfeita, casamento perfeito e família perfeita. É muito triste.

Hoje em dia, por mais que ela esteja velhinha, eu batalho para estreitar nossa relação porque sei o quão difícil foi a vida dela. Meu pai já é falecido e é absurdo o quanto ela floresceu depois da morte dele. Eu amava meu pai, claro, mas sei que ele não era fácil e não idealizo ele como melhor marido do mundo, sei que estava longe disso. Nunca houve agressão física, mas constrangimentos e privações, com certeza. Mas isso só sei porque estou analisando com meu olhar de hoje.

Nunca falei com minha mãe sobre menstruação, sexo, relacionamento, nada disso. Até hoje, aos 45 anos, eu tenho dificuldade para mencionar qualquer coisa relacionada a isso com ela, não temos liberdade para esse tipo de coisa. Eu só ouvia falar desse tipo de assunto quando ia passar uma parte das minhas férias na casa da minha avó materna que, como eu já disse, era mais aberta, mas, ainda assim, ela era uma mulher muito religiosa, então não era nada descarado ou o tipo de coisa que a gente falava abertamente, sabe? Com outras pessoas da família, jamais. Com meu pai eu nunca cheguei nem perto de falar sobre esse tipo de coisa.

Na escola eu aprendi sobre reprodução, mas não sei porque eu não lembro de ter aprendido sobre menstruação. Obviamente deve ter sido mencionado, mas acho que eram coisas tão horríveis para mim que eu simplesmente apaguei.

Meu primeiro contato com a menstruação foi quando minha irmã mais velha ficou menstruada. Acho que ela tinha 13 anos e eu tinha 11 quando aconteceu e, na época, eu entendi que tinha acontecido algo, mas ninguém me explicou. Só fui entender que ela tinha virado mocinha anos depois, quando foi minha vez.

Era final de semana e lembro de ouvir ela gritar, chamando pela minha mãe, que pediu pra ela falar baixo. Eu fui até a porta do banheiro, que estava trancada, e fiquei tentando ouvir o que elas falavam, mas era um silêncio absoluto, só conseguia ouvir o choro baixinho da minha irmã. Nós duas dividíamos um quarto, então eu vi de perto o quanto ela sofreu naquele dia. Ela deitou na cama e nada a tirou dali, só ficava chorando, chorando, chorando. Lembro exatamente de sair e ir até a sala perguntar pra minha mãe se ela estava doente.

Como estava perto do meu pai, ela me puxou de canto e disse que não, que estava tudo bem com minha irmã e que não era pra gente falar mais naquele assunto porque era “uma coisa muito feia”. Pronto, acho que foi nesse dia que eu bloqueei tudo na minha cabeça e passei a ter essa visão da menstruação, mesmo sem nem saber do que se tratava.

O meu dia chegou dois anos depois, quando eu tinha 13 anos. Era um dia de semana, não lembro exatamente qual, mas lembro que aconteceu assim que voltei para casa da escola. Eu tinha aula só até a hora do almoço e voltava à pé com minha irmã da escola. Quando cheguei em casa, antes de sentar à mesa para comer, fui ao banheiro e foi nesse momento que percebi que estava sangrando. Eu não tinha ideia do que estava acontecendo, mas sei lá, acho que meu inconsciente já sabia que era algo errado, especialmente por causa da frase que minha mãe me disse no dia que minha irmã menstruou.

Por vergonha ou medo, eu não gritei, não chorei, não fiz nada. Coloquei um pouco de papel higiênico na calcinha e fui até a cozinha, onde minha mãe estava. Pedi para ela ir até o banheiro comigo e, quando cheguei lá, mostrei o que tinha acontecido. A reação dela foi péssima, parecia até que ela estava brava comigo. Não disse uma palavra e me deu um absorvente, me mostrando como colocar na calcinha em silêncio. Eu lembro muito da expressão fechada dela e, depois de um suspiro, ela me disse ‘Se acostuma, porque vai ter isso todo mês. E vai tomar um banho agora pra se limpar. Seus irmãos vão comer e depois eu te esquento um prato’. Fiquei muito triste, muito triste mesmo, mas fiz o que ela estava mandando, afinal, em casa não existia a possibilidade de não obedecer meus pais. No banho, eu chorei muito, sem entender porque ela havia me tratado com aquela frieza, quase um descaso. Depois eu nem quis almoçar e passei o resto do dia sozinha no quarto, enquanto nos outros dias normais, eu iria caminhar com minha irmã ou encontrar as amigas.

À noite, minha irmã sentou ao meu lado e disse que não era para eu ficar triste, que era algo normal, mas eu senti um pesar na voz dela, sabe? Não lembro exatamente o que ela me explicou, mas repetiu o que minha mãe havia dito de que teria aquilo todo mês e que era um indicativo que eu tinha ficado adulta e poderia ter bebês. Também deixou bem claro tudo que eu não poderia fazer naquele período: nadar, ir à praia, me exercitar… ressaltou também que eu tinha que fazer de tudo para esconder o absorvente e para que ninguém visse que eu estava naqueles dias. Aquilo significava tomar cuidado redobrado com as marcas nas roupas e com o papel no banheiro.

Apesar de ela não ter dito nada bom, eu me senti mais acolhida porque, pelo menos, tive um direcionamento de como prosseguir. Se dependesse da minha mãe, eu não ia saber absolutamente nada. Meu pai não olhou na minha cara por alguns dias e eu não entendia o porquê. Hoje, eu imagino que era mais porque ele estava sem jeito e não sabia como lidar com aquilo.

Dias depois, no final de semana, eu fui para a casa da minha avó materna e lá conversei com ela sobre o que tinha acontecido. Ao contrário dos outros, ela me abraçou e ficou até feliz, dizendo que eu havia ficado mocinha, mas, como minha mãe, falou que eu tinha que ter cuidado para ficar sempre limpinha, porque o sangue cheirava e nos deixava sujas. Ela contou para o resto da família e eu recebi até alguns parabéns, mas foi a única vez que isso foi mencionado. Lembro também que ela me fez meu macarrão preferido para o almoço como uma forma de celebrar. Graças à ela eu passei a me sentir menos como um ET ou uma aberração.

Outra coisa que a minha avó me disse naquele final de semana, foram algumas superstições que imagino que não tenham nenhum fundamento científico, mas que eu levo comigo até hoje.

A primeira e mais importante era para nunca andar descalça quando estivesse sangrando, mesmo em casa, isso porque poderia causar cólicas fortes e ‘dar barriga’. Além disso, era proibido beber coisas geladas, tomar sorvete ou tomar banho gelado porque o sangue poderia subir para a cabeça ou então o fluxo aumentar.

Apesar de achar bem estranho, eu nem questionei. Minha avó era minha inspiração e a mulher que eu mais confiava, então se ela me falava alguma coisa com certeza estava certa e eu deveria seguir as regras.

Já minha outra avó, a paterna, quando ficou sabendo me chamou para ler a Bíblia com ela, coisa que ela fazia com certa frequência, e me mostrou uma passagem do Velho Testamento que diz que a mulher fica impura quando está sangrando e não deve fazer várias coisas. Ela disse que era por aquele motivo que ninguém ficava feliz quando menstruava, porque não era algo bom.

Do dia que menstruei pela primeira vez em diante, muita coisa mudou. Em relação ao meu corpo, foi a partir da minha menarca que eu comecei a me desenvolver de fato. Meus seios começaram a crescer e meu corpo a mudar bastante, então, além da vergonha que eu tinha de que alguém na escola ou na rua percebesse que eu estava menstruada, também tinha a vergonha de verem todas aquelas mudanças no meu corpo. Minha adolescência foi bem conturbada, eu me sentia estranha, envergonhada e nem eu me entendia, mas imagino que seja assim com a maioria das meninas.

Sem ser em relação ao meu corpo, muita coisa mudou também. Juro, eu rezava muito todo o mês para minha menstruação não descer, apesar de eu saber que não ia adiantar. Eu perguntava para Deus porque aquilo tinha que acontecer comigo, achava muito injusto. Obviamente eu não falava para meus pais quando ficava menstruada, mas acho que eles sabiam de alguma forma e ficavam estranhos e mais distantes, especialmente meu pai. Naqueles dias ele mal olhava na minha cara, ficava distante. Eu me sentia desconfortável dentro da minha própria casa, parecia sempre que todos estavam me evitando. Pode ser que fosse mais coisa da minha cabeça do que da realidade, mas era uma semana do mês que eu me isolava quase completamente, mal convivia com o resto da casa. Minha irmã dizia se sentir igual.

Lembro que antes de menstruar eu ainda brincava, apesar de já ter 13 anos e, depois que aconteceu, minha mãe foi lentamente tirando os brinquedos do meu quarto e doando para outras pessoas. Cada semana tinha menos, até não ter mais nenhum. Tive que parar de brincar quase que de maneira compulsória, minha menarca marcou muito bem essa divisão entre criança e adulta, menina e mulher. Isso me confundia muito, porque sempre ouvia da minha família que se tornar mulher era uma benção, mas a menstruação era vista como uma coisa horrível.

O que mais pesava para mim era que eu me sentia muito suja, eu morria de nojo do sangue. Alguns dias eu tomava quatro, cinco banhos para tentar me sentir pelo menos um pouco mais limpa, mas não adiantava. Não era só a sujeira física, ou seja, o sangue em si, mas era uma coisa de se sentir suja por dentro. Eram banhos longos, em que eu me esfregava demais para tentar acabar com aquela sensação horrível. Aquela primeira frase que minha mãe disse no dia da minha menarca, com certeza teve um impacto muito grande nisso.

Além disso, lembro de um dia, foi em um dos meus primeiros ciclos, em que eu manchei a cadeira da escola. Isso é a coisa mais normal do mundo, acontece com a maioria das meninas, e não deveria ser visto como o fim do mundo, mas lembro que quando levantei, um menino começou a rir e zombar de mim porque viu a mancha. Em poucos minutos a classe inteira começou a rir e a professora, ao invés de fazer alguma coisa para me ajudar, falou bem alto que era para eu ir ao banheiro me limpar. Lembro que fiquei fechada dentro da cabine do banheiro um bom tempo, morrendo de vergonha de voltar. Não falei com mais ninguém aquele dia, só queria ir embora para casa correndo.

Episódios como esse marcam, envergonham. Eu vejo que o problema não era só com a minha mãe ou com a minha família, mas sim com a sociedade em geral que não sabe lidar e vê coisas naturais como coisas horríveis”.

Além de todos os traumas, depois de alguns ciclos, Isabel passou a sofrer com cólicas muito fortes. Apesar da dor, não conseguia ter abertura com sua mãe para pedir que a levasse em um médico. Apenas anos depois, em sua primeira ida ao ginecologista, descobriu que tinha Síndrome dos Ovários Policísticos (SOP), que atinge cerca de 10% das mulheres em idade reprodutiva, segundo a Associação Médica Brasileira. O distúrbio causa um desequilíbrio hormonal e o corpo passa a produzir maior quantidade de determinados hormônios, como a testosterona. Isso interfere no processo de ovulação, tornando os ciclos irregulares, aumenta a possibilidade do aparecimento de cistos nos ovários que podem aumentar drasticamente o tamanho do órgão. A SOP pode aumentar o fluxo da menstruação, causar cólicas fortes, aumentar a quantidade de pelos no corpo — devido ao excesso de testosterona, hormônio masculino –, favorecer o desenvolvimento de doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2 e obesidade e, em casos graves, levar até à infertilidade.

A doença não tem cura, mas pode ser controlada e os sintomas amenizados. O tratamento mais comum é feito com pílulas anticoncepcionais, que controlam os hormônios e ajudam a diminuir a quantidade de hormônios masculinos no corpo. Foi esse tratamento o sugerido pela médica de Isabel quando fechou o diagnóstico.

“Quando eu não chorava à noite apenas pelo fato de menstruar, eu chorava de dor. Alguns meses depois de começar a menstruar eu comecei a sentir cólicas horríveis, muito fortes. Na primeira vez em que reclamei disso com a minha mãe ela me deu um remédio e não se falou mais nisso. Todas as outras vezes eu tomava o remédio por conta própria. Existe muito esse mito de que as mulheres pretas têm que ser sempre fortes e que são resistentes à dor. Apesar da minha mãe também ser uma mulher preta, ela sempre disseminou muito essa mensagem, porque é algo que está enraizado na nossa sociedade. Desde pequenas a gente ouvia que tinha que engolir a dor ou que ‘não era nada de mais’.

Eu não conversava com ninguém sobre menstruação, nem com amigas, então não tinha noção do que era uma quantidade normal de fluxo, mas eu menstruava demais. Trocava de absorvente quase que a cada hora e, um dia, minha mãe me chamou para dizer que estávamos gastando muito com aquilo e que eu não precisava trocar com tanta frequência. Mas não era porque eu queria, era uma necessidade mesmo.

Tudo isso, ou seja, a reação da minha família e os reflexos físicos que a menstruação tinha em mim me fizeram odiar aquilo por muitos e muitos e muitos anos. Era o pior período do mês, quando ia chegando perto eu já ficava de mau humor só de pensar que teria que passar por aquilo tudo mais uma vez.

Eu só fui na ginecologista pela primeira vez aos 18 anos, depois que fiquei noiva do meu ex-marido e estava prestes a entrar na faculdade de Letras. Estava supertímida, não queria falar nem com a médica sobre aquilo, mas não aguentava mais e algo me dizia que tinha algo de errado no meu corpo. Não deu outra: fui diagnosticada com Síndrome do Ovário Policístico, o que explicava as dores, o fluxo irregular e alguns outros sintomas que eu tinha e jamais imaginei que poderiam ter a ver com isso.

Eu fiquei muito feliz quando descobri porque foram anos de sofrimento sem saber o que estava acontecendo comigo e agora, finalmente, eu poderia cuidar daquilo e ter mais qualidade de vida. Logo após o diagnóstico, a médica me disse que, apesar de não ter cura por ser uma doença crônica, havia maneiras de cuidar dos sintomas e o mais comum era tomar pílula anticoncepcional. Como eu cresci ouvindo muito sobre a religião e crendo muito no catolicismo, no momento em que ela falou isso eu já pensei que se contasse para minha mãe ou para minha avó, elas iriam ficar muito bravas porque, como elas levavam tudo que a igreja prega de uma maneira muito literal, usar métodos contraceptivos é proibido. O catolicismo é a favor da vida em todos os casos e, então, usar algo para evitar gerar a vida não é bem visto.

Eu não contei nada para ninguém da família, obviamente, e fiquei vários dias pensando no que eu deveria fazer. Foi difícil para mim ir contra o que minha família achava porque eu sempre segui à risca tudo que eles me impunham, mas neste caso eu estava falando da minha saúde. Voltei na médica e comecei a tomar a pílula escondida. Eu me culpei demais e pedia perdão a Deus todas as noites por estar fazendo aquilo, mas, no fundo, eu sabia que ele me entenderia porque eu nem tinha vida sexual ativa, era realmente apenas uma questão de controlar meus hormônios e me sentir melhor.

Poucas semanas antes do meu casamento, minha mãe achou a cartela e veio me questionar. Eu tentei explicar, falei que era uma questão de saúde e não quis contar para ela porque eu sabia que era errado. Ela ficou muito brava comigo porque tinha certeza que aquilo queria dizer que eu tinha perdido a virgindade antes do casamento, o que era mentira, e foi falar até com meu então noivo, que também não gostou de saber que eu estava tomando. A família dele era muito religiosa também, amigos dos pais da igreja. Nossa, foram dias horríveis, um monte de briga, até achei que o casamento não fosse acontecer, mas no fim deu tudo certo. Foi um assunto tenso por muitos dias, mas começar a tomar os hormônios me fez bem demais, diminuiu minhas dores, meu fluxo. Tomei a pílula até os 40 anos, tirando as pausas em que engravidei.

A ‘revolta do anticoncepcional’ foi a primeira de algumas que tive em minha vida. A segunda foi a dedicação à faculdade e não apenas a ter filhos. Nada disso foi bem visto, mas eu só queria ser eu. Continuo sendo uma mulher católica, vou à Igreja, leio a Bíblia e tenho muita fé, mas aprendi que não preciso levar tudo ao pé da letra, afinal a religião e as escrituras surgiram há mais de dois mil anos, o mundo é outro. O próprio Papa, o líder da religião, tem uma visão mais liberal do que minha família. O padre da Igreja que eu frequento atualmente também tem essa visão diferente. Eu gosto de como sou hoje e amo a religião, mas da minha maneira.

Quando pequena eu discordava de várias coisas que via, me lembro de várias vezes me questionar o porquê de algumas coisas que aconteciam em casa, como o fato de meu pai não ajudar em nada e minha mãe viver sobrecarregada com as tarefas domésticas. Porém, eu nunca questionei porque sabia que eram coisas que não deveriam ser questionadas. São aquelas regras intrínsecas”.

Após o casamento, apesar de acreditar que teria uma vida mais livre por estar vivendo longe dos pais, a letróloga se viu submetida às mesmas regras que tinha que seguir na casa dos pais, desta vez ao lado do marido. Isso porque ele, assim como ela e sua família, era muito católico e queria uma esposa perfeita, religiosa e que quisesse se dedicar completamente à família.

“Eu e meu ex-marido nos conhecemos desde pequenos. A família dele morava bem perto da minha e frequentávamos todos a mesma igreja. Nossos pais eram bem próximos, coisa de frequentar um a casa do outro e sair para beber, já nossas mães também eram amigas, mas não tão próximas. A mãe dele era bem parecida com a minha no sentido de ser bem religiosa e se dedicar 100% à casa e à família, mas elas não costumavam sair muito juntas. Eu, meu ex-marido, meus irmãos e os irmãos dele brincávamos juntos quando pequenos e, maiores, formávamos uma turma de amigos que fazia tudo junto. Ele foi a primeira pessoa com quem eu me relacionei amorosamente.

Logo que eu fiz 18 anos começamos a namorar e poucos meses depois ele me pediu em casamento. Eu aceitei porque realmente amava ele, mas não tinha ideia de como seria me casar. Hoje em dia eu penso que seria muito melhor ter ido morar junto antes, porque apesar de nos conhecermos desde pequenos, ninguém conhece ninguém perfeitamente até passar a dividir uma vida juntos. Ele é um homem bom, sempre trabalhou e fez de tudo para dar tudo do melhor para nossos filhos, mas é extremamente machista e queria que eu fosse como eram nossas mães.

Eu nunca quis ser dona de casa. Quando eu disse que queria fazer faculdade, ele ficou bravo e não queria que eu fosse, mas, sinceramente, não liguei. Era meu sonho, eu fui atrás e fiz, mas sempre foi um assunto mal resolvido entre a gente.

A família dele também é muito boa. São todos brancos e nunca se opuseram à nossa relação, como eu sei que acontece em muitos relacionamentos e casamentos inter-raciais. Óbvio que existe aquele racismo velado, que é algo que eu só percebo hoje que tenho mais conhecimento, mas nunca ouvi comentários ofensivos e nem nada muito explícito por parte dos meus sogros e cunhados.

De qualquer jeito, depois de formada ele conseguiu com que eu largasse o mercado de trabalho e voltasse a ser dona de casa, formando a família ideal dos sonhos dele. Eu me irritava, achava aquilo horrível, mas, no fundo, achava que não podia reclamar dele porque ele representava tudo que eu sempre acreditei ser o homem perfeito.

Em relação à menstruação ele também sempre foi bem conservador e deixava muito claro que morria de nojo. Se ele fosse na farmácia ou no mercado comprar alguma coisa, ele sequer comprava um pacote de absorventes para mim se eu pedisse. No banheiro não podia ter nenhum sinal de sangue e ele mal me tocava quando sabia que eu estava menstruada porque falava que era errado. Sabemos que, realmente, a Bíblia diz que um casal não deve manter relações nesse período do mês porque a mulher está impura, mas não achei que alguém realmente levava isso ao pé da letra. Mas ele levava. Com certeza esse horror dele também teve um papel importante para eu continuar odiando menstruar e tudo isso que envolvia.

Em geral, foi um casamento normal, com alguns conflitos, mas vivíamos bem. Nos divorciamos há uns cinco anos porque não estava mais dando certo viver com tantas diferenças. Ele se irritava com o meu jeito mais ‘moderno’, eu me irritava com o machismo dele e, então, resolvemos nos separar, o que também foi um horror para a família. Um erro quase imperdoável meu, porque, é claro, que ninguém foi cobrar ele. A culpa sempre é da mulher.

Confesso que minha relação com minha menstruação ainda não é a melhor do mundo, mas depois que me separei, passei a viver uma vida diferente. Passei a ver o mundo com outros olhos e perceber como era importante para nós, mulheres, nos aceitarmos e nos amarmos. Hoje eu consumo muito conteúdo sobre amor próprio nas redes sociais e, com isso, comecei a tentar ver esses fenômenos femininos como algo normal. Também passei a me descobrir como mulher negra nesse período. Tive uma fase muito boa em larguei a pílula que passei a observar meu ciclo natural e até apreciar ele, mas como estou no climatério, acredito que prestes a entrar na menopausa, estou tendo alguns sintomas, como insônia, alguns calores e mudanças no ciclo que incomodam bastante. Às vezes me sinto até como aquela menina que menstruou a primeira vez, torcendo para isso tudo passar logo.

Porém, acho que muito mais do que amar menstruar, que é um estágio bem avançado, busco aceitar e lidar bem com os meus ciclos e meu sangue. O importante para mim foi parar de ver como algo nojento, parar de tomar vários banhos por dia por me sentir suja e impura e passar a lidar com naturalidade. Eu só consegui isso bem mais velha, espero que as meninas comecem a perceber isso cada vez mais cedo. Na minha visão, a chave para isso é se observar com carinho e tentar entender que aquilo é algo natural. Apenas isso. Depois, o resto vem naturalmente.

Diferentemente da minha família, busco criar minhas filhas de forma mais aberta e liberal. A mais velha, de 14 anos, já menstruou e eu fiz questão de já conversar antes com ela sobre o assunto para que ela não fosse pega de surpresa como eu fui. Logo que menstruou, eu a levei na ginecologista para ver se estava tudo bem. A mais nova eu também já expliquei e busco sempre falar sobre o assunto e tratar com naturalidade para que elas não tenham a mesma visão que eu tinha. Na verdade, até com os meninos eu conversava sobre isso, mas na época deles eu ainda era mais travada e estava bem no início desse processo de desconstrução, por isso não conseguia abordar tão facilmente.

Quero que elas me vejam como um porto seguro, que elas saibam que podem contar comigo para falar sobre esse tipo de assunto. Quero sempre conversar com elas sobre tudo: sexo, menstruação, relacionamento, racismo que eu sei que é uma coisa que elas já sofreram e sofrem, como qualquer pessoa preta no Brasil.

Percebo que a mais velha já tem uma relação bem melhor com a menstruação do que a que eu tinha na idade dela. Ela também não sofre muito com cólicas, o que eu acho que ajuda. A mais nova também não parece ficar incomodada com esses assuntos, então acredito que estou no caminho certo.

Acho que a gente aprende com os ‘erros’ das nossas mães. Na verdade, não sei se posso chamar de erros porque que minha mãe sempre fez o que achou que era melhor para a gente, além de não ter muito acesso à informação e ser vítima de uma sociedade extremamente machista. Por isso, não a culpo. Mas acho importante usarmos das nossas mães as atitudes com as quais não concordamos para evoluirmos e sermos mães cada vez melhores para nossas filhas.

*nome trocado a pedido da entrevistada

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Maria Clara Serpa
Nosso Sangue

Jornalista formada pela PUC-SP com experiência em jornalismo de moda, beleza, estilo de vida e redes sociais.