Juliana

Maria Clara Serpa
Nosso Sangue
Published in
12 min readNov 24, 2020

Ouvir o relato de Juliana* também foi transformador. Assim como a história de Isabel, católica, eu esperava ouvir coisas completamente diferentes nesta entrevista. A religião islâmica é uma das mais estigmatizadas em nossa sociedade e, por mais que tentemos não ser preconceituosos, é quase inevitável não ligar o Islã com machismo e opressão das mulheres. Apesar de ter crescido em uma família metade católica e metade muçulmana, Juliana cresceu ouvindo e falando sobre menstruação e outros assuntos que não são debatidos em muitas famílias. Ouvi-la me fez perceber que, algumas vezes, a falta de informação e o tabu não vem da religião, mas sim da criação e da abertura de cada família.

“Eu sou a Juliana*, tenho 31 anos, sou de Curitiba e sou muçulmana. A família do meu pai é libanesa e veio para cá nos anos 60 em busca de oportunidades. Um irmão do meu avô já havia vindo e, alguns anos depois, ele resolveu se mudar também com a minha avó, meu pai e meus três tios. Vieram para Curitiba porque era onde a família já estava e tinha uma comunidade razoável de muçulmanos. Quando tinha uns 23 anos meu pai conheceu minha mãe. Ela trabalhava na padaria do bairro em que ele morava e era católica. Foi um pouco difícil no início pela diferença de culturas e religiões, mas ela aceitou se converter ao Islã e casar com meu pai.

A família da minha mãe é brasileira, descendente de portugueses. Em um primeiro momento, meus avós não gostaram muito do envolvimento dela com meu pai pela fama ruim e a visão errada que as pessoas costumam ter do islamismo, mas, com o tempo, foram quebrando os preconceitos e hoje todos vivem muito bem e em harmonia.

Como minha mãe não nasceu islâmica, ela conta que teve um pouco de dificuldade de assimilar algumas regras e hábitos da religião no começo, o que causava um pouco de desconforto. Meus tios, por exemplo, têm vários filhos, e minha mãe nunca quis ter mais de dois. Praticar a Salá [cinco orações diárias que todo muçulmano deve fazer] diariamente também era complicado. Mas, segundo ela, o mais difícil foi se “submeter” a usar o hijab [tipo de vestimenta islâmica que deixa à mostra apenas o rosto, mãos e pés das mulheres]. Meu pai nunca a obrigou, afinal, é uma ordem de Deus, mas é uma opção de cada uma usar ou não. Estudando um pouco mais a religião, ela foi se interessando e, então, resolveu começar a usar. Hoje, ela é muito dedicada ao Islã e se dá superbem com a minha avó paterna, que havia sido um pouco relutante com a presença dela na família logo no início.

Depois de se casarem, meus pais tiveram apenas dois filhos, eu, de 31, e meu irmão, de 28. Nós crescemos em um ambiente multirreligioso, já que, apesar de em casa e na casa da família do meu pai praticarmos o Islã e falarmos árabe e português, costumávamos ir muito para a casa dos meus avós maternos que, apesar de não serem muito religiosos, eram católicos. Hoje, eu sou muçulmana, mas acredito que tenho uma interpretação própria da religião justamente por ter crescido em contato com pessoas bem diferentes e não fechada em uma família completamente islâmica, como acontece com a maioria das crianças. Meu pai também nunca foi opressor e nunca reclamou da minha mãe passar para a gente algumas coisas da cultura dela e dos hábitos da família dela. Acredito que esse ambiente foi muito enriquecedor para nós.

Estudei em escola islâmica minha vida inteira e depois fiz faculdade de turismo. Hoje eu sou praticante do Islã, vou à mesquita pelo menos uma vez por semana, tenho amigas da religião, mas também socializo muito com pessoas diferentes de mim. Em casa, quando pequena, minha mãe recebia várias amigas não-muçulmanas e isso nunca foi um problema. Não é que os muçulmanos não podem ter amigos de outra religião, mas como sempre vivemos apenas naquele meio — família, escola islâmica, mesquita — fica mais difícil conhecer pessoas diferentes.

Todo mundo lida muito bem com isso na minha “família islâmica”. A única coisa que ainda causa um pouco de desconforto é o fato de eu ter 31 anos e não ser casada e nem ter um namorado. Eu namorei por cinco anos um homem islâmico, mas eu nunca tive vontade de casar. Tenho vontade de ter minha família um dia, mas sentia que não era o momento certo e acabamos terminando. Quero focar na minha carreira por um tempo.

Minha mãe sempre abordou assuntos como menstruação e sexualidade em casa. Meu pai, não, mas acredito que seja muito mais pelo fato de ele ser homem e não se sentir confortável para falar sobre essas coisas com a filha, como eu imagino que aconteça com pais de várias religiões, do que pelo fato de ele ser muçulmano. Minhas avós, seja a católica ou a muçulmana, também sempre foram bem abertas.

O islamismo tem diretrizes claras para tudo. Há regras ou recomendações no Alcorão para praticamente todos os assuntos que envolvem nossas vidas. Por isso, as coisas são tratadas com naturalidade. As pessoas têm essa visão de que o Islã é machista, oprime as mulheres, mas isso tem muito mais a ver com a cultura e com a família do que com a religião. Eu nunca vi meu avô tratar minha avó como alguém inferior, por exemplo. A relação dos meus pais também sempre foi bem igual. O que acontece é que Alá criou o homem e a mulher, que são seres diferentes por natureza. Cada um é de uma forma e tem um tipo de obrigação, mas eles não são vistos de forma diferente por Deus.

Não há porque termos tabus porque tudo o que acontece com a gente ou tudo que está na Terra foi criado por Deus. No caso da menstruação, por exemplo, há as diretrizes no Alcorão que dizem o que a mulher deve ou não fazer nesse período do mês. Está escrito lá, abertamente, então não é visto como algo vergonhoso, pelo menos na minha família. Eu ouvia falar de menstruação desde pequena, porque percebi que em alguns momentos do mês minha mãe não fazia as orações. Ela me explicava que era porque estava menstruada — assim, sem usar outros termos ou apelidos — e que o sangue menstrual significava que ela não estava grávida e que acontecia com todas as mulheres, inclusive aconteceria comigo quando crescesse.

Ou seja, dentro da minha casa isso sempre foi algo muito esclarecido. Para minha família, era importante que nós soubessemos de tudo desde pequenos para não sermos surpreendidos no futuro. Eu acho isso incrível porque, com certeza, me poupou de muito sofrimento e muitas dúvidas.

Porém, eu sei que minha família não é igual todas e conheço meninas muçulmanas que nunca tinham ouvido falar de menstruação quando tiveram sua menarca. Para mim, isso é fruto do machismo estrutural da sociedade, que repudia tudo que é naturalmente feminino, e da interpretação errada da religião, que acontece muito e contribui demais para a intolerância religiosa.

Alá nunca disse que a menstruação era suja ou que a mulher fica suja quando está menstruada.É um período de dor, desconforto, em que a mulher está mais vulnerável e, por isso, pode ser dispensada de algumas obrigações para poder se cuidar e resguardar. Os homens são instruídos desde pequenos a serem compreensivos e carinhosos nesse período. Na minha visão, isso é algo incrível e não uma forma de opressão ou de nos diminuir.

Outro ponto importante para mim é lembrar que as escrituras religiosas foram feitas há milhares de anos. Maomé recebeu as revelações do Alcorão em 610, quando a sociedade e o mundo eram outros. Por isso, apesar de respeitar a religião, eu acredito que há coisas que precisam ser adaptadas simplesmente pelo fato de que não se aplicam mais nos dias atuais. Muita gente não vê assim, mas eu vejo.

Eu não vejo como um problema uma mulher não querer usar roupas que a cobrem por completo ou não querer cobrir os cabelos, por exemplo. É uma opção de cada uma e isso não a faz menos religiosa. Eu optei por usar o hijab e me cobrir, mas não julgo quem não o faz. Nós temos o livre arbítrio e podemos decidir o que fazer da nossa vida. Já ouvi gente falando que usar absorvente interno era haram [termo usado para se referir a qualquer coisa que é proibida pela fé], mas isso não faz sentido algum. Como em 2020 uma mulher não pode usar um OB? Eu acho que não podemos levar tudo a ferro e fogo, seja por estar escrito no livro sagrado ou por ter ouvido de algum líder religioso”.

Por ter esse tipo de criação, Juliana não sofreu muito quando menstruou pela primeira vez. Por já saber do que se tratava e entender como seria sua vida dali em diante, não teve grandes surpresas. Apesar disso, a vida da mulher islâmica muda bastante após a menarca e ela passa a ter mais obrigações e ter que seguir mais regras. Ainda assim, para a turismóloga a transição de menina para mulher — como é interpretada em sua religião — aconteceu de forma natural.

“Eu tinha 11 anos quando menstruei pela primeira vez. Fui a primeira das minhas amigas. Como eu disse, minha mãe já havia explicado para mim e para meu irmão o que era a menstruação, além de a gente ouvir ou ler sempre quais eram as regras que as mulheres deveriam seguir nesse período do mês. Só que como eu era bem nova, eu não esperava que já fosse acontecer. Minha mãe sempre dizia que achava que eu iria menstruar com uns 13 ou 14, como foi com ela. Nós duas fomos pegas de surpresa no dia.

Era um final de semana e eu acordei para uma das rezas do dia. Quando criança, nós não somos obrigados a rezar todas as vezes ou fazer jejum no Ramadã. Isso só se torna obrigatório na puberdade, mas é comum que as crianças comecem, aos poucos, a aderirem às práticas mesmo antes da maturidade. Nessa época, eu já estava fazendo quase tudo como adulta. Uma das orações é de manhã bem cedo, então meu pai me acordou e eu me levantei para fazer o Wudu, a limpeza que temos que fazer antes de orar. É como se fosse uma purificação, lavamos as mãos, o rosto, os pés, braços e a boca.

Quando cheguei ao banheiro para me lavar, percebi que tinha menstruado. Levei um susto na hora porque não estava esperando. Chamei minha mãe e ela ficou muito feliz. Sabia que a reação dela não seria ruim, mas não esperava toda aquela animação. Ela me abraçou, me parabenizou e saiu correndo para contar para meu pai e meu irmão, que também me deram os parabéns. Eu não rezei, já que nós somos dispensadas de rezar quando estamos menstruadas, e fiquei com um pouco de cólica o resto do dia.

O começo é desconfortável porque é algo novo que você não sabe muito bem como lidar, mas não tive nojo, repulsa, nem nada disso. Naquela noite, meus avós foram em casa jantar e foi quase uma celebração para a minha menstruação. Todo mundo estava feliz.

Na segunda-feira, na escola, foi um pouco mais complicado porque deixei o sangue vazar e fiz sujeira, mas a professora me ajudou. Ninguém tirou sarro ou comentou nada. Por isso digo que, na nossa religião, é algo tratado com naturalidade. Depois de alguns meses fui à ginecologista ver se estava tudo bem — confesso que isso eu não queria fazer, mas minha mãe me obrigou dizendo que era importante para mim. Nunca quis tomar anticoncepcional, apesar de ouvir da minha mãe que não havia problema algum se eu quisesse. Minha avó paterna, no entanto, dizia que não era permitido, mas eu não quis porque não achei necessário mesmo.

A nossa vida como mulher muçulmana muda bastante depois de menstruar. Primeiro, começamos a usar o hijab. Como eu já disse, é uma opção de cada mulher e eu sempre quis usar porque achava lindo. No dia da minha menstruação meus pais me deram um hijab novo que eu logo quis sair usando. Eu já usava às vezes para ir à escola, mas desse dia em diante passei a usar diariamente em todos os momentos que estava fora de casa ou perto de pessoas que não são da família.

Não vejo o véu como algo opressor porque é minha opção e é também uma maneira de nos proteger da objetificação e mostrar respeito a Deus. Atualmente, o que mais me motiva a usá-lo é por ele ser, na minha visão, um símbolo de resistência e identidade. Sair de hijab para mim é resistir e lutar contra o preconceito que passamos sempre.

Confesso que deu um pouco de vergonha no começo porque quando, do dia pra noite, você passa a usar o hijab, as pessoas sabem que você menstruou e, apesar de ser natural, dá vergonha das pessoas que não são da família. Passou rápido e logo eu estava habituada. Outra coisa que eu acho importante falar é que impor as mulheres a usarem outros tipos de véu, como a Burqa, não é algo que lemos no Alcorão. O livro fala de cobrir determinadas partes do corpo, mas o rosto não é uma delas. Essas outras vestimentas são impostas pelos homens e governos em alguns países.

Além do hijab, comecei a praticar a Salá regularmente e, quando menstruava, estava dispensada. Mesmo assim, eu sempre faço o Wudu e coloco minha roupa de oração e fico ali, sentada, mas sem rezar. Penso em coisas boas e invoco o nome de Deus. Aproveito também para estudar a religião. Nós não podemos tocar um exemplar original, em árabe, do Alcorão quando estamos sangrando, mas podemos ler as traduções. É uma época também em que eu ajudo a cuidar dos filhos de algumas amigas ou familiares para que elas possam rezar e não me sinto mais longe de Deus. Sinto que estou tão próxima e conectada quanto no resto do mês.

Quando estamos menstruadas também não podemos jejuar. Ou seja, se menstruamos no meio do Ramadã [nono mês do calendário islâmico, em que a maioria dos muçulmanos pratica o jejum ritual, do amanhecer ao anoitecer], o que geralmente acontece porque é o mês inteiro, somos dispensadas. Não são só mulheres menstruadas que não podem jejuar e rezar, mas também as grávidas, quem acabou de dar à luz, se a pessoa estiver doente ou se tiver relações sexuais. No Ramadã e durante o período menstrual não devemos fazer sexo. O jejum é de tudo, devemos focar apenas em Deus. Quando a menstruação acaba é necessário compensar os dias de jejum que perdemos, porque é uma prática muito importante para os muçulmanos.

Sobre não fazer sexo no período menstrual, eu sempre aprendi que é porque é um período de mais vulnerabilidade, em que devemos nos resguardar de tudo, e é um período de impureza. Não quer dizer que a mulher é impura ou suja, mas que está passando por uma fase de impureza. Apesar disso, não devemos ficar longe dos maridos, para quem tem. Há quem diga também que a mulher não deve cozinhar quando está menstruada, mas isso não é aplicado na minha família.

Atualmente, acho minha relação com minha menstruação boa, mas claro que dá para melhorar. Há alguns meses comecei a acompanhar algumas meninas que falam de ginecologia natural, plantar a lua e essas coisas no Instagram e acho muito legal, mas ainda não coloco em prática. Única coisa que eu fiz de diferente esse ano foi comprar uma Mandala Lunar para acompanhar meu ciclo e estou amando. É muito bom para se entender, entender seus sentimentos, o porquê você está agindo de determinada maneira. Conhecer seu corpo é importante para tudo.

Eu sigo as regras impostas para as mulheres menstruadas no Islã, mas já quebrei também, em alguns momentos. Não me culpo porque todo mundo erra em algum momento. Cada mês é uma tentativa diferente de ser melhor”.

Como a própria Juliana disse, os muçulmanos são alvos de muito preconceito e informações falsas sobre sua religião. O fato de as mulheres serem “obrigadas” a se resguardarem e cobrirem é um dos aspectos mais criticados do Islã. Apesar disso, uma boa parcela das mulheres da nova geração questionam essa visão e afirmam que isso não é um instrumento de opressão. O machismo, na verdade, é parte da sociedade em que vivemos como um todo, e não só de sua religião.

“Eu não me sinto mais oprimida do que nenhuma outra mulher brasileira só porque sou muçulmana. O Brasil e o mundo em geral é extremamente machista e perigoso para nós, não é algo exclusivo das religiões. Como eu disse, na minha família nós somos bem abertos e as mulheres são tratadas como iguais. Muita gente usa a religião como desculpa para ser machista e menosprezar as mulheres, mas isso é interpretá-la mal. Não vejo nenhuma das regras como uma forma de nos oprimir, mas concordo sim que há coisas machistas e, como eu disse, eu não aplico tudo que a religião manda porque vivemos outros tempos.

Acredito que é extremamente necessário ter mais líderes mulheres na nossa religião para trazer um olhar e uma perspectiva feminina que é bem rara atualmente. Isso não significa que eu não goste dos líderes homens, é apenas porque acho necessário termos cada vez mais mulheres no poder em todos os aspectos da sociedade. Só assim conseguiremos diminuir e, eventualmente, acabar com o machismo, seja na religião, seja na política e na sociedade em geral.

Se um dia eu tiver filhas, quero criá-las da mesma maneira que fui criada. Meu objetivo é conversar com elas da mesma maneira que minha mãe sempre fez e abordar os assuntos tabu desde pequenas, com naturalidade. Não quero que elas cresçam com nojo de sua própria menstruação ou sem conhecer seu próprio corpo, como aconteceu com várias amigas minhas. Ninguém nasce com esse tipo de tabu, as crianças só desenvolvem isso por causa da criação. Por isso, quero que as minhas, sejam meninas ou meninos, cresçam livres desse tipo de sentimento.

*nome trocado a pedido da entrevistada

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Maria Clara Serpa
Nosso Sangue

Jornalista formada pela PUC-SP com experiência em jornalismo de moda, beleza, estilo de vida e redes sociais.