A arte do consumo

Modern Sound e o Rio de Janeiro que não existe mais

Nelly Kruczan
MeuRio
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4 min readDec 1, 2017

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A música I Am a Rock, música de Paul Simon, lançada em 1964, já dizia: “eu tenho meus livros e minha poesia para me proteger”. Como o personagem recluso do clássico folk, eu também tinha um refúgio. Escondida por baixo das grandes camisetas pretas de bandas de rock, matava todas as aulas possíveis para me enfiar entre as gôndolas da Modern Sound. Com um exemplar da Bizz debaixo do braço, passava horas namorando CD’s raros, LP’s e biografias. Ninguém me incomodava e eu não incomodava ninguém. Era como um templo, onde cada um congregava com a música à sua maneira.

Grandiosa, parecia ainda maior para alguém do meu tamanho. Ficava no coração de Copacabana, na Barata Ribeiro entre a Figueiredo de Magalhães e Santa Clara. Inaugurada em 1966, chegou a dividir seu espaço com o Cinema Bruni, mas Pedro Passos, o dono, comprou a sala em meados da década de 90 para ampliar a loja, algo que mais tarde viria a se provar um prejuízo bilateral para capital cultural de Copacabana.

Pedro Passos (Fonte: O Globo)

Era uma das mais importantes lojas de música do Rio de Janeiro. Além de contar com um acervo musical raro e impecável, vendia também equipamentos de som, instrumentos musicais, ingressos para shows e memorabilia de bandas. Como se já não fosse charmosa o suficiente, o Allegro Bistrô, que vendia uma deliciosa feijoada, abrigava também acolhedores shows de jazz que descambavam em jam sessions de cair o queixo, com improvisações de músicos anônimos ou renomados, convocados para participar do tour musical entre o café e a conta. Imaginar Leny Andrade dando uma palhinha depois do almoço pode parecer surreal, mas acontecia. Porque subir ao palco da Modern Sound não era um favor, mas uma homenagem. A quem frequentava e ao que proporcionava para o cenário musical nacional e internacional e para o bairro.

Trocando uma ideia sobre essas e outras memórias com o músico e amigo Daniel Vilares, ele contou que não tinha um puto no bolso quando se mudou do condado da Barra da Tijuca para Copacabana e, como muitos, ia à Modern Sound só para bater um papo com Elvis, atendente do departamento de vinis e patrimônio afetivo máximo do lugar. Saía da loja e comprava seus discos em outros lugares, já que altos os preços inviabilizaram o consumo. O primeiro de diversos sintomas que levariam ao encerramento prematuro das atividades em 2010, com uma dívida acumulada em R$ 3,3 milhões.

A pirataria, os devices portáteis que tocavam a pirataria que a gente baixava e os serviços de streaming, permitiam — e ainda permitem — um consumo mais barato, rápido e acessível da música. A tecnologia engoliu e trucidou o mercado de mídias físicas, que nunca conseguiu se reinventar, em uma única mastigada. Sobram hoje apenas algumas estantes em megastores como FNAC e Saraiva vendendo CD’s do Padre Marcelo Rossi por R$9,00, e as pequenas lojas do Centro da Cidade, que lutam bravamente contra a especulação imobiliária.

A Modern Sound sobrevive hoje através das lembranças de seus viúvos, que se encontram pelo menos uma vez por ano e na página do Facebook, resgatando a trajetória da casa, celebrando os momentos inesquecíveis que aconteceram lá e toda a bagagem cultural que Pedro conferiu ao bairro.

Copacabana, por sinal, é o bairro dos viúvos. Dos 19 cinemas que cá existiram um dia, restaram apenas o Cine Joia e o Roxy, os outros viraram lojas de departamento ou foram demolidos para ampliar a selva de pedra que é o Rio de Janeiro. O teatro Villa-Lobos, na Princesa Isabel, foi consumido pelas chamas em 2011 e nunca foi restaurado. Suas ruínas estão mal escondidas por tapumes, uma lembrança constante da morte cada vez mais rápida dos ambientes que abraçavam a arte.

Ruínas de uma era gloriosa (Fonte: Jornal do Brasil)

Minha casa respirava música e eu respirava junto. Quando a agulha tocava a bolacha, sentia um arrepio que ia da pele à espinha. Era paixão. Coisa de louco, já que ainda sequer sabia do que era feita ou de onde vim. Podem desabar com todos os centros culturais do mundo, porque paixão não tem CEP, dívidas, contas pra pagar. Paixão não fica obsoleta, tá no sangue e só morre quando o coração da aquele último sopro de resistência. E descansa.

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Nelly Kruczan
MeuRio
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