A moça das bolhas

Crônica

Abreu Ferreira
Notícias de um tempo ausente
4 min readAug 20, 2020

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Foto por Matthew Henry, obtida no Unsplash.

Eu voltava do trabalho quando vi a moça das bolhas pela primeira vez; estava sentado à janela, olhando distraído para o mundo exterior, quando alguém sentou do meu lado.

“Licença”, disse uma voz feminina.

“Toda”, respondi, e me virei para sorrir. Mas não foi isso que aconteceu; quando vi a dona da voz, não fui capaz de disfarçar meu espanto: era uma moça jovem, mas com a pele crivada de pequenas bolhas enormes, como que prestes a explodir. E se aquilo fosse contagioso? Preferi não arriscar. Passei o resto da viagem encolhido contra a janela, segurando a respiração. Com a única rota de fuga obstruída, perdi meu ponto de descida; tive de esperar ela descer num ponto muito distante, para só sair no seguinte. Esperei mais meia hora para pegar o ônibus que vinha no sentido oposto para, enfim, chegar em casa.

A partir daí a moça das bolhas parecia me perseguir. Dia sim, dia não, quando eu voltava do trabalho, ela me entrava no ônibus, sempre na mesma parada. Mas, depois do perrengue do primeiro dia, aprendi minha lição. Passei a ficar sempre em pé no ônibus, apoiado na barra. Quando a moça das bolhas embarcava, eu esperava ela se assentar em algum canto, para então me deslocar para o mais distante possível. Nunca mais me sentei, mas também nunca mais perdi meu ponto.

O ruim era quando o ônibus vinha lotado, pois isso limitava as opções de fuga. E num dia o ônibus veio tão lotado que, se você deixasse cair moedas no chão, o mais sensato seria desistir delas. Se você se agachasse para pegar, era capaz que você, também, se perdesse para sempre no meio da infinidade de pernas.

Nesse dia fiquei preso logo depois da catraca, incapaz de avançar. Estava chegando o ponto onde a moça das bolhas embarcava, e eu sofria por antecipação. O ônibus parou e ela entrou, vestindo uma regata que deixava os ombros cheios de bolhas à mostra. A moça das bolhas transpôs a catraca e, de alguma forma, encontrou espaço na massa de gente. Ficou colada em mim, seu ombro esquerdo encostado em meu peito, sua cabeça a centímetros do meu nariz.

O ônibus entrou em movimento, e o tranco empurrou a moça das bolhas contra mim. Ela precisou se apoiar em meu tronco para não cair.

“Desculpa”, ela disse, com um sorriso encabulado.

“Tudo bem”, eu disse, embora não estivesse. Virei a cara para o outro lado. Aturei a situação por três paradas, em que só duas pessoas foram capazes de entrar no ônibus, até que uma corrente de ar penetrou uma janela aberta, carregando o pólen que se desprendia das copas das árvores.

A moça das bolhas fez uma careta violenta, e não foi capaz de mover as mãos a tempo de aparar o jato de muco: espirrou. Aquele foi o meu limite; a empurrões e cotoveladas abri espaço onde não havia, galgando a multidão até a porta mais próxima. No ponto seguinte saltei do ônibus e marchei até em casa.

Naquela noite eu tomei dois banhos bem tomados e fui dormir, ao que me parecia, de consciência limpa.

Ao subir no ônibus, voltando do trabalho, mostrei ao motorista duas notas de dois reais para pagar a passagem.

“Deixa aí”, ele disse. “Não vou tocar nessa mão não.”

Depositei as cédulas no caixa e no processo vi minhas próprias mãos, repletas de bolhas. Tentei esfregar, mas, quanto mais esfregava, mais elas cresciam e se multiplicavam.

“Passa logo”, ordenou o motorista, ignorando minha aflição.

Atravessei obedientemente a catraca e procurei onde sentar. O ônibus estava bastante cheio, de forma que só encontrei um lugar vazio. Quando me aproximei, a senhora do assento vizinho ocupou o lugar com sua bolsa. Entendi o recado e continuei andando. Acabei em pé, no fundo do ônibus, apoiado na barra. Mas as pessoas à minha volta começaram a se levantar de seus assentos e a se aglutinar mais para frente no ônibus. Preferiam ficar em pé a estar perto de mim.

Sentei-me em um dos assentos recém-esvaziados, me sentindo muito sozinho. As bolhas não paravam de coçar e se espalhar. Elas escalavam meu tronco, subindo pelo meu pescoço. Eu as unhava, tentando arrancá-las, mas isso só as deixava mais obstinadas. Começaram a invadir meu rosto, deformando minhas feições, obstruindo minha vista. Em breve eu não teria mais rosto.

Então acordei num salto, em minha cama empapada de suor. Corri ao banheiro para ver no espelho. Eu ainda tinha um rosto liso e não achei nenhuma bolha em meu corpo, mas isso estava longe de ser um alívio.

Alguns dias depois, quando voltava do trabalho, a moça das bolhas entrou no ônibus, no ponto de sempre, e sentou na janela mais à frente. Levantei de onde eu estava e me aproximei dela.

“Licença”, eu disse.

Ela me olhou com seus olhos grandes e bonitos. De repente eu vi uma moça, cujas bolhas eram apenas um detalhe. Talvez fossem mesmo contagiosas. Não importava.

“Posso sentar aqui?” perguntei.

Ela anuiu, sem esboçar muita reação, e encostou a testa na janela, olhando alguma coisa lá fora. Me sentei. Às vezes eu espiava ela de esguelha, tentando decifrar no que ela pensava. Eu queria pedir desculpas, mas teria vergonha de explicar o porquê. Não que ela precisasse que alguém lhe explicasse algo. Ela já devia saber bem até demais.

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