Garrafa de vela

Conto

Elisa Dias
Notícias de um tempo ausente
4 min readAug 22, 2020

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“O inferno são os outros” — Jean-Paul Sartre

Arte: Luiz Cardoso

Joanne não entendia aquele povo todo que andava em volta do quarteirão, mas gostava das velas. Mamãe sempre nos levava juntos para a procissão, para que eu a vigiasse enquanto todos rezavam e caminhavam lentamente. Ela costumava se comportar, agora já sabia que devia ir ao banheiro antes de começar a reza e deixava para fazer perguntas depois que tudo acabava. Mesmo assim a procissão era um mistério na sua cabeça:

— Mas por que a gente sempre dá a volta no mesmo quarteirão?

— Ah Joanne, esse quarteirão é mais perto da Igreja, é mais fácil pra guardar as imagens de novo depois.

— Mas todo mundo já sabe como é a imagem, não dá pra imaginar em vez de levar toda vez?

— Olha, as imagens representam a caminhada de Jesus até o lugar que ele morreu para nos salvar, então temos que sempre respeitar, rezar por ele e por nós. E na Igreja essas imagens são muito poderosas.

— Credo, mas como ele salvou a gente se a gente não existia ainda?

— Ai Joanne, quando eu falo da gente eu quero dizer que ele salvou todos os filhos de Deus, incluindo você e eu.

— Mas eu achei que eu era filha do papai e da mamãe, onde é que Deus entra nisso?

Nesses momentos eu sempre fingia que ia fazer alguma coisa e fugia, pois não sabia como fazê-la entender, mesmo porque na sua idade eu também não entendia — era menos curioso e não tinha o irmão mais velho para perguntar. Mamãe nunca teve paciência para as perguntas, para ela não tinha o que questionar, mas Joanne era criança e, mesmo ficando quieta durante toda a procissão, ela se entretia mesmo era com a garrafa da vela. A gambiarra era boa: colocava-se a vela na parte de dentro da tampa de uma garrafa cortada, e o corpo de plástico verde protegia a chama do vento. Mas em mãos espertas isso servia a outros fins; Joanne não ligava para as rezas, para as rendas na janela, para os terços balançando na mão dos fiéis, pois o importante era conseguir queimar toda a borda da garrafa cortada até o fim das orações. Ela ia girando a vela para derreter o plástico, bem devagar porque o cheiro de queimado irritava as senhoras rezadeiras. Quando nos dispersávamos da multidão e íamos esperar o fim da missa na praça ela colocava ainda algumas folhinhas secas para queimar no cotoco de vela que restava.

Certa procissão Joanne sumiu no meio da via sacra, rezei meia ave-maria de olho fechado e quando abri de novo ela tinha evaporado. Mamãe ficou desesperada, e enquanto me xingava sussurrando para não atrapalhar a reza começou a se enfiar nas filas de pessoas em busca da fujona. Revistamos o cortejo todo e no fim o padre teve que anunciar no microfone que Joanne estava desaparecida há aproximadamente dez minutos. Os fiéis mal começaram a procurar e escutamos Dona Lurdes gritando lá ao fundo que a havia encontrado: estava no final da praça, sentada e chorando ao lado de uma pitangueira em chamas. As rezadeiras ficaram horrorizadas:

— Meu Deus do céu, ajude essa menina!

— Ai se é a minha filha, Deus me livre!

— Ela saiu do caminho divino, Jesus amado…

Ninguém se importou em perguntar se Joanne estava bem, ou como ela havia conseguido colocar fogo numa pitangueira. Eu a conhecia muito bem e sabia que a brincadeira com a vela tinha ido longe demais, mas os boatos se espalharam tão rápido quanto as folhas queimadas da árvore, e logo já se afirmava que ela tinha sido desviada. Os olhares na rua eram assustados e julgadores, e mamãe teve que criar o costume de levar minha pequena e confusa irmã à missa todo domingo para ser benzida. As crianças não eram autorizadas a brincar com ela na escola, e logo Joanne ficou conhecida e malvista por todos da cidade.

Dois meses depois mamãe teve um surto, esfaqueou Joanne e se matou em seguida. Não cheguei a ver a cena, mas me lembro dos gritos e de vovó lavando o sangue do chão da cozinha com um balde depois que a polícia foi embora. Em seu enterro, acendi cinco velas e as coloquei em garrafas cortadas, do jeito que fazíamos nas procissões. Quando o plástico terminou de queimar, plantei uma semente de pitanga no quintal dos fundos de casa e nunca mais voltei à igreja.

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Elisa Dias
Notícias de um tempo ausente

Mineira, jornalista não-tão-praticante, amante da gastronomia de todas as avós e de conversas especialmente ordinárias.