Laranja com sal

Conto

Elisa Dias
Notícias de um tempo ausente
5 min readAug 3, 2020

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Eu passava todo dia do lado daquela fazenda, e todo dia namorava as laranjas naquele bando de árvores carregadinhas enfileiradas. Era bonito de ver e o cheiro me matava, mas nunca tive a cara de entrar e pegar alguma coisa, mesmo porque a moto fazia muito barulho e diziam que o dono da fazenda era ciumento com as laranjeiras — diziam no caso o meu primo Valério dos Santos Silva, filho de Jacinto e dona Vilma doceira. Valério era um homem vivido e provavelmente já tinha roubado muito mais fruta que eu nessa vida, além das cocadas que sumiam da venda de sua mãe. Se ele disse que o homem era bravo é que era mesmo, eu não tava pra contestar.

Semana passada eu voltava do trabalho e minha moto quebrou. Eu sou do controle de qualidade em uma fábrica de laticínios, mas isso não quer dizer que a gente não finja umas coisas aí, vira e mexe dá problema e a gente toma esporro e faz as coisas tudo errado para não perder o emprego, se a culpa é nossa a culpa é nossa. E às vezes nem é. Mas eu voltava do trabalho, saio umas cinco da tarde porque se não a estrada fica muito escura e é melhor não, e essa quinta-feira da semana passada a minha moto resolveu que não funcionava no meio do caminho. Ia escurecer e eu resolvi voltar a pé que lá não tinha sinal de celular que pegasse e eu nem tentei por isso.

As árvores pareciam maiores agora que eu ia bem mais devagar olhando para elas, e dava para escutar o barulho do vento nas folhas e sentir a areia batendo no corpo porque fazia tempo que não chovia — caíram uns três ciscos no meu olho nesse dia. Uma hora cheguei na fazenda de laranjas, tinha umas muito grandes olhando para mim enquanto eu olhava para elas com a boca toda aguada de quem não tinha tomado café no serviço crente que ia chegar em casa na hora normal. Todas aquelas laranjas sorrindo, eu sorri de volta e fui tentar pular a cerca, achei muito oportuno aquilo tudo. No fim não pulei porque era cerca elétrica, mas tinha um lugarzinho com um buraco e passei de fininho por baixo. É um limite muito certinho para você murchar a barriga sem estufar o peito e conseguir passar. Entrei plena na fazenda com uma sacolinha no bolso que achei na mochila, pensando se dava para ter overdose de vitamina c mas sem me preocupar muito, e achei uma árvore boa de subir com uns galhos baixos mais grossos. Nunca fui muito boa em subir em árvore mas o cheiro não me deixou pensar e acabou que eu subi mesmo e peguei uma sacola de laranja docinha, comi uma no pé mesmo.

Não deu dois minutos que eu terminei de comer escutei um barulho de tiro e já desesperei, pensei que não ia ser possível eu morrer chupando laranja no pé, era ridículo demais. Até o socorro chegar já ia ter dado tempo de eu morrer umas três vezes, isso porque não tem trânsito vindo para esses lados, não sei nem porque as pessoas acham que na cidade tem mais acesso a essas coisas, é tudo meio igual se tirar os prédios do caminho de qualquer forma. Primo Valério não falou nada de levar tiro, vai ver ele queria que eu morresse mesmo, mas melhor não pensar nessas coisas. Saí correndo e tropeçando em direção ao buraco para sair do terreno mas cheguei respirando tão forte que a barriga e o peito subiam e desciam descontrolados, tive que me concentrar muito e nesse meio tempo tomei um tiro atrás da coxa, e depois de tomar uns três choques consegui sair para a estrada.

Tiro é um negócio que dói não importa o que te atirem, mas bala de sal é um negócio a mais de dolorido. A coxa ardia e eu dei umas mancadas mas fui seguindo com medo de o dono-maluco-da-fazenda vir atrás de mim com a espingarda sem saber se ele achou que eu era bicho ou ladrão, o que não deixa de ser eu acho. O céu tava um azul meio claro meio escuro de depois que o sol vai embora, e no fundo tinha um barulho de canto de cigarra muito alto, parecia um coral fazendo a trilha sonora da minha caminhada manca até a cidade (que ia demorar mais ainda). Coloquei a mão na perna, não tinha sangue mas o roxo que ia fazer ia ser a obra de arte abstrata da desgraça que é levar um tiro de sal, talvez ficasse até um negócio bonito mas dá para viver sem.

Fora a parte artística, cheguei duas horas mais tarde que o normal em casa com um saco de laranjas enquanto ainda mancava um pouco. Antes de tomar banho fiz um suco para deixar gelando e o resto larguei na parte de baixo da fruteira, mas acabou que eu de tão cansada dormi sem tomar o suco. No outro dia comi tanta laranja que acabei no pronto-socorro por causa de dor de barriga, com um enfermeiro me enfiando a agulha no braço para tomar soro depois de eu já ter demorado muito mais tempo que qualquer pessoa para sentar na poltrona descascada. Do meu lado um homem mais velho que eu reclamava de mau jeito na coluna:

— Mas esse analgésico é muito fraco, eu tenho hérnia de disco, você sabe como isso dói?

— O senhor tem que esperar mais um pouco pra fazer efeito, não é tão instantâneo assim não.

— Se eu soubesse disso tinha tomado o remédio em casa. — Dava para sentir a decepção dele, mas não fiquei com dó porque simpatizei com a enfermeira.

O homem saiu sem dor e raivoso quando seu soro acabou, e eu perguntei para a enfermeira se ele tinha dito como machucou a coluna. Ela falou que foi correndo atrás de um ladrão de laranjas.

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Elisa Dias
Notícias de um tempo ausente

Mineira, jornalista não-tão-praticante, amante da gastronomia de todas as avós e de conversas especialmente ordinárias.