Objeto perdido
Crônica
Eu estava angustiada e, como uma boa viciada em doce, me movi até o mercado perto de casa para comprar chocolate. Na volta, passei ao lado de um casal que andava de forma sutil e devagar. A jovem, com um rabo de cavalo bem alto prendendo os cabelos castanhos, chorava e colocava as mãos na boca, enquanto o rapaz ao seu lado gritava “Você não pode falar isso, seu pai tá bem. Seu pai tá bem!”.
Não pude ouvir o resto da conversa, mas eu me enxerguei nela. Foi mais uma armadilha em que me meti. Espero que o pai dela tenha realmente ficado bem. Desconhecer o enredo da história dessas pessoas me dá a possibilidade de passear pela minha imaginação, mas também pelos meus traumas.
Precisei lidar com a morte muito cedo e, em termos práticos, escrever sobre
isso vem me ajudando em uma nova concepção sobre como é o luto, o que ele já causou e pode causar em mim em um futuro próximo ou distante. Entendi que ele não necessariamente seguirá qualquer ordem ou terá fim e que ele acontece ainda que eu não o enxergue de forma nítida.
Mesmo não ignorando esse processo durante todos esses anos, posso ter trocado figurinhas com ele às escondidas, ou ter agido de maneira a digeri-lo vorazmente para não ter mais que olhar na sua cara. O desassossego era demais para alguém que insistia em agir normalmente. Rompimentos da vida se sucederam mas ainda assim eu precisei continuar vivendo.
Sigmund Freud, o pai da psicanálise, dizia que quando alguém por quem desenvolvemos um afeto vai embora dessa dimensão, nós perdemos um elo significativo entre nós e o “objeto” amado. E, por mais que ocorra a ruptura física, a existência desse objeto perdido continua se prolongando na psique.
A partir daí, um trabalho subjetivo começa. Lembranças emergem, mas logo a realidade potencializa a ideia de que o objeto não existe mais. Ele não foi extraviado, ele se perdeu para sempre. Sem reembolsos. E é necessário que façamos a escolha de manter ou não o direcionamento psicológico a esse objeto, cumprindo a tarefa lenta e dolorosa do luto.
Ainda que eu tenha tomado essa decisão, o contato com o mundo externo pode ser cruel. Ele nos fragmenta e nos reconstrói a cada instante. Amanhã posso me deparar com um jogo de tabuleiro semelhante ao que minha vó me deu quando eu era mais nova, ou, daqui 15 anos ouvir alguma música que meu pai deixava tocando no rádio do carro enquanto me levava para a aula de balé.
Situações traiçoeiras que rompem o automático. Relacionam o objeto perdido a uma sensação, nos levando a evitar certos contextos ou aceitar que na verdade o objeto só se transformou em algo diferente. Cabe a cada um que passa pela perda acolher e cuidar dessa convicção.
Desvendar esse espaço da minha consciência se tornou uma espécie de missão secreta. Que agora não é mais tão secreta. Longe de procurar respostas sublimes, me aproximo cada vez mais de uma meditação fundamental das infinidades do tema dentro de uma existência finita.
Quanto à minha vivência, não sei se a minha cura absoluta, propriamente dita, se concretizará. Em consequência do luto, que pode ser tanto um adolescente inconveniente quanto um mestre sábio e assíduo, procuro sinais de consolo, cobrindo a ausência com meus dizeres cálidos ou meus silêncios voluptuosos.
O que me sobra é o meu destino e o presente, que apesar dos tormentos e riscos, me conduz a momentos especiais como este exato segundo em que você me lê.