Piscina quase vazia

Crônica

Giovana Valadares
Notícias de um tempo ausente
5 min readSep 17, 2020

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Foto obtida no Unsplash

“Se você quer uma frase direta assim, meu pai morreu por erro médico”, Henrique diz após cerca de cinco minutos do tempo que conversávamos. Sentados próximos à biblioteca da universidade, tínhamos mais um dos nossos diálogos de uma noite de quarta-feira. Dessa vez na terça e combinado previamente.

A história começa quando seu pai, Cláudio, na época que trabalhava com RH, quebra o braço ao tropeçar na alça da bolsa e cair, enquanto saía de uma reunião correndo pra outra. “Foi gravíssimo o rolê, resumo da história, ele tinha artrose no cotovelo direito e inevitavelmente ia perder o braço uma hora, colocar prótese.”

Eles já haviam morado em vários lugares, e, nessa fase, se mudaram para Atibaia, município de São Paulo. Por causa do acidente, Cláudio não podia trabalhar, ficaram um tempo só recebendo seguro do INSS. A relação dos dois era normal até os 12, 13 anos de Henrique, mas foi piorando depois dessa mudança. “Até hoje em dia não consigo entender direito o porquê”, mas, mesmo tendo esses problemas, seu pai deixou dois aprendizados marcantes que ele leva pra vida.

“Primeiro é estudar, sem estudo você não consegue chegar no lugar que você almeja. Ele mesmo era um exemplo porque era louco pra fazer faculdade, mas não tinha dinheiro. Um de seus planos era fazer Direito, lá em Atibaia tinha o curso. Outra coisa que ele me ensinou também é sobre profissionalismo, de trabalhar certo e fazer o seu.”

Após o acidente, as coisas foram ficando difíceis. Claudio começou a trabalhar vendendo piscina, trabalhou em uma distribuidora de alimentos, e, depois de uns 4 anos, conseguiu um emprego na área de RH novamente, em uma fábrica. Em 2013 ele já tinha feito 7 cirurgias, até que veio essa última.

“Foi uma besteira que aconteceu na verdade”, expressa Henrique, dando um trago forte no tabaco que fumava.

Seu pai caiu dentro da piscina de casa. Com ela quase vazia. “Aí fudeu o joelho dele, e precisou fazer uma cirurgia pra arrumar.”

Ele não quis tomar raquianestesia, que é a injeção de anestésico local, e sim a anestesia geral. O que não esperavam é que ele tivesse uma reação alérgica a ela. “Ele já tinha tido uma vez na verdade, a sorte foi que minha mãe tava do lado, aí já chamou os enfermeiros e já o salvaram, em 2007 eu acho, quando ele fez a primeira cirurgia do braço.”

E aqui é onde entra a parte da falha médica. Cláudio, com 47 anos, era obeso, e não estavam conseguindo entubá-lo. Sua garganta fechou e não conseguiam fazer o que deveria ser feito, que é a traqueostomia — abrir um buraco na traqueia e enfiar um cano — e nisso, ficou 45 minutos sem oxigênio direito. Quando finalmente o entubaram, já era tarde. A família ainda ficou esperando por uma semana a melhora.

“Na época eu já tava na faculdade, tava indo pro 2° ano de biologia, aí quando contaram a história, eu já sabia. Das duas, uma: ou ele ia morrer, ou ele ia sobreviver, mas com várias sequelas. Eu já sabia, provavelmente ele ia ser um vegetal. No máximo, ia ter uma função cerebral mínima, ficar de cama o resto da vida. 7 minutos já é o suficiente pra você matar várias partes do cérebro.”

“Aí fui bem cético e racional, parei, pensei, mano, é isso. Eu perdi meu pai. A pessoa que eu conhecia. Ele pode voltar, não vai ser a mesma pessoa, ou ele pode morrer. E aí quando eu perdi ele mesmo, foi uma situação estranha. Porque ao mesmo tempo que eu fiquei mal pra caralho, tipo, porra, perdi meu pai sabe, e aí, o que vai acontecer? Tô começando a minha vida agora, tinha 19 anos. Entrei na faculdade, ele tava animado, foi assim o melhor ano, em anos, que a gente teve. Nem era porque eu tava longe, mas é que quando eu voltava, a gente conversava bastante. Foi estranho, pois ao mesmo tempo que eu tinha essa percepção, eu sabia que não tinha o que fazer.”

Duas ou três semanas depois, Henrique voltou para os estudos. Cláudio morreu no final de janeiro, e no meio de fevereiro ele tinha aula. “Não deu pra ficar muito tempo com a minha família, quando vi eu já voltei, tava fazendo as coisas. Um lado que acho que também foi bom, foi o apoio da minha família inteira. Todo mundo apoiou, o pessoal tava com medo de que eu não ia voltar pra faculdade. Eu falei, mano, jamais, ele que me estimulou muito, ele que falava: você vai fazer universidade pública. Ele que me incentivou, que foi atrás de cursinho pra mim, pagou. Então eu fui, voltei, fiz até mesmo um intercâmbio, continuei minha vida.”

Hoje em dia ele ainda tem a mesma visão daquele ano, de que a morte faz parte de um ciclo e, infelizmente, às vezes ela pode ser precoce. Em relação à falha do médico, sentiu muita raiva sim. “Eu faria esse procedimento, sabe. Não sou formado em medicina, na época nunca tinha aberto um animal e eu sabia salvar ele. Eu fiquei assim, mano, tá tirando né? Sei que é foda ficar 48 horas num plantão, sei que não é legal, mas foda-se. Seu objetivo é salvar vidas. Uma coisa é não querer fazer uma cirurgia extremamente delicada no cérebro, outra coisa é não abrir um buraco na parte mais externa do corpo. Isso que foi o mais foda.”

Eu também quis entrar na questão espiritual, sobre reencarnação, vida após a morte, assuntos que me causam muitas dúvidas. Henrique foi direto, sem enrolação: “Eu não sei o que tem depois da morte, e é isso, ponto final. Não sei, não dá pra saber.”

Ele diz que já teve muita curiosidade para saber, mas que quando chegar a hora vai descobrir. Então, nessa parte, não afirma que acredita, e tampouco que não acredita. Particularmente, ele nem pensa nisso, acha que é algo pra depois. Sua mãe foi um tempo no centro espírita, por um ano e meio depois da morte de Cláudio, e falou que ele não estava feliz com o que aconteceu, mas estava tranquilo pois sabia que todo mundo estava encaminhado.

Henrique não tem certeza de que isso é real mas queria que ele estivesse aqui. “Aí entra aquele ponto né, talvez ele esteja vendo, talvez não. Não sei, mas eu faço as coisas pensando que ele tá. Fica um pouco contraditório em relação ao que falei antes mas eu gostaria de ter uma experiência assim, no centro espírita, pra entender, trocar uma ideia com ele.”

“Não diria melancolia, mas eu tenho saudades. É um ciclo, o organismo vai morrer, ele deve morrer na verdade. Não abruptamente, mas… Não sei se é uma defesa sabe, não sei se é colocar muito forte isso para se defender para não ficar mal, não sei. Aconteceu um evento da vida, então é fazer o melhor com o que eu tenho. Não tenho meu pai, faz falta, faz falta pra caralho, mas sei que ele tá muito feliz, por tudo que eu já conquistei. Estou seguindo as coisas que ele me ensinou, e to aprendendo sozinho também”, finaliza o biólogo.

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