Porque não devo mais comprar rosquinhas às duas da tarde de um domingo

Conto

Elisa Dias
Notícias de um tempo ausente
4 min readJul 20, 2020

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Ilustração por Gleisson Cipriano

Se alguém me perguntar se preciso de ajuda eu vou achar muita audácia. Ressaca forte não combina com cheiro de padaria nem com gente te julgando por você estar de camisola às duas da tarde, e ai de quem fizer cara de dó para cima de mim. É, ninguém te prepara para a meia-idade e para esse tipo de coisa, mas a vida às vezes exige umas rosquinhas e você não tem muito o que fazer.

Minha mãe dizia que os “enta” é um caminho sem volta — como se a volta fosse possível de alguma forma — mas entendo onde ela quis chegar, principalmente depois de ser chamada de tia por uma menina de vinte anos na fila do pão. Tudo bem que você é jovem mas não venha jogar na minha cara que eu poderia ser a sua mãe.

— Três pães por favor, dos mais branquinhos.

— Não gosta deles crocantes não?

— Eu pedi brancos, não murchos — resmunguei sem saco.

— Mas os mais morenos é que são gostosos… — o atendente deu uma risada de cafajeste. Eu não tava boa nem para forçar um sorriso.

— Eu gosto dos brancos, e se você falar que eu to sendo racista com um pão eu vou embora sem comprar.

Não, eu não sou uma pessoa grossa, só não tenho paciência com gente engraçadinha no meio de uma dor de cabeça ridícula. E já fui melhor nessas coisas, mas a verdade é que talvez eu esteja virando aqueles estereótipos de velho ranzinza, o que fura a bola do vizinho que caiu no quintal com um sorriso maléfico no rosto.

Lembro (não sei como) de escolher um bolo para comprar, dessa vez de fubá com erva-doce. Não sei por que, mas o fato de eu não fazer bolo é o ápice da indignação da minha família, não sei mesmo, eu odeio bolo, mas a minha sobrinha adora e aparentemente se a mãe faz não é a mesma coisa, esse papinho mixuruca de comida de vó, tia, sei lá. Eu não acho que vá fazer qualquer diferença na minha vida saber fazer o raio do bolo, na minha última tentativa esqueci do fermento e falei que era brownie, todo mundo acreditou e comeu feliz da vida. Talvez eu devesse começar a fazer só brownies, ou falar que faço e comprar na padaria que nem eu faço com bolo.

Enfim, minha cabeça dói. Com cinquenta e tantos já dá para ir na padaria de camisola sem pensar que está passando muita vergonha e comprar rosquinhas sem medo porque deve ser pra algum filho, mas isso só se você for uma pessoa resolvida. Eu achava que era até perceber José Jorge em frente à pilha de queijos do outro lado da padaria.

Misericórdia, eu nunca estou preparada para cumprimentar um homem desses sem parecer uma adolescente nervosa, e cá estou eu de camisola jurando que não ia ver ninguém num dia desses a uma hora dessas na padaria. Ele olha para os queijos por tanto tempo, analisando todos os motivos para comprar ou deixar de lado, queria eu virar um pedaço de camembert e aparecer na cozinha de José Jorge. Na circunstância atual talvez eu esteja mais como um gorgonzola fedido, mas há quem goste. E também não sei por que penso nessas coisas ainda, nessa idade sexo só serve pra suar e cansar, ninguém se empenha como antes. A pele já não é mais a mesma, a boca fica seca rápido, os filhos deixam a barriga da gente toda esquisita e molenga, cada pinta que você acha é um câncer e eu não vou listar a coisa toda, não tenho paciência. O negócio é que é uma raridade isso dar certo, principalmente para uma cinquentona solteira. Ele vem em minha direção:

— Boa tarde, Jane, como vai? — Um sorriso muito agradável de quem não bebeu na noite anterior.

— Ah… vou meio ruim de ressaca, sabe como é.

— Éé, eu vi no instagram da Vânia, vocês tavam animadas hein!

— Você tem instagram agora? — A Vânia tem essa péssima mania de postar coisa estranha nossa.

— Meu filho fez pra mim, ele disse que o facebook não tá com nada e agora é o instagram que tá bombando.

— É eu ouvi falar, mas ainda não tive ânimo o suficiente pra fazer o meu. — Ele falou “tá bombando”? Eu não sei nem definir o nível de breguice de quem fala uma coisa dessas.

— O ânimo tá complicado mesmo — ele riu debochado — Mas no fim não faz muita diferença, não é mesmo?

Ele acenou e foi para a fila de pagamento. Quando se virou para o caixa fui para a frente do ventilador, Deus que me perdoe. Como pode, uma conversa de um minuto e José Jorge descobre a minha versão louca da camisola de que eu já não tenho muito orgulho, é o bastante para um dia que não prometia nada. Decido ir embora e largo os pães, o bolo e as rosquinhas porque esqueci a carteira na estante da cozinha.

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Elisa Dias
Notícias de um tempo ausente

Mineira, jornalista não-tão-praticante, amante da gastronomia de todas as avós e de conversas especialmente ordinárias.