Saturno vai perder seus anéis
Crônica
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Era mais um desses shows noturnos gratuitos no Sesc de Bauru. A banda que ia tocar carrega um nome que remete ao natal e toda sua atmosfera: Dingo Bells. A conhecia pela música “Dinossauros”, a qual eu e meu amigo Gustavo não conseguíamos parar de ouvir lá para o meio de 2016.
O show estava se encaminhando para o fim quando uma canção, desconhecida para mim até então, começou a tocar. “Ele não sabe, mas vai morrer / Uma estrela vai cair em seu quintal / Ela já sabe, ouviu dizer / Que somos feitos de poeira espacial”. Uma parcela de quem eu era estava preparada para ouvi-la, enquanto outra nem tanto. Assim que a música acabou, resolvi chamar um táxi para ir embora. Já no carro, falei para o motorista que não fiquei até o final. Ele não havia perguntado nada, mas eu não tinha o que perder mesmo.
Sem eu ter premeditado, ele me explicou que pode ter sido a fase da lua. Que é bom ficarmos atentos a ela, já que, e essas são suas palavras, “a gente nem imagina o quanto ela e o restante do universo tem influência na nossa vida e no nosso sentir”. Eu assenti com a cabeça e dei um sorriso de leve. “Você sabia que eu tenho tatuagem de uma lua?”, e não falei mais. Pode ser que eu estivesse exausta dessa fissura de explicar as paradas aleatórias da vida, que podem ser só isso, aleatórias.
O ceticismo não durou muito. No dia seguinte voltei a querer encontrar algum resquício de sentido em minhas experiências. Depositei meu olhar sobre aquela letra tão curiosa da canção que fez eu agir por impulso, algo que não é muito do meu feitio. “Anéis de Saturno”, o título. Absorver as letras de uma música é de uma beleza particular. O que levou os compositores à elaboração dessa estrutura que não é bem um poema, mas também não o deixa de ser, sempre foi um mistério para mim.
Tentei buscar o significado das duas músicas citadas, e no percurso mais uma veio até mim, como quando um filho perdido no supermercado vai até a sua mãe. “Hoje o céu” era o som, e um dos membros da banda, Diogo Brochmann, me contou que ela propõe a reflexão sobre o que estamos fazendo com nossa vida e o que gostaríamos de fazer caso o céu fosse desabar e o mundo se desfazer hoje.
Os integrantes da Dingo Bells, tendo passado um pouco já dos 30 anos; eu, uma mulher no início da vida adulta; o motorista do táxi, com toda sua sabedoria; a criança, com seu encanto inocente pelos corredores do supermercado; todos nós estamos suscetíveis ao risco de um desfecho. Não só pela vulnerabilidade do nosso planeta — em julho de 2019 um asteroide batizado de 2019 OK passou a 73 mil quilômetros de distância da Terra, mais próximo do que a Lua está da gente — mas pela nossa própria efemeridade.
Qualquer certeza, arrependimento ou plenitude não seria suficiente para enganar a morte. Assim como o cosmos, ela é grande, universal, e nós, pequenos, particulares. O mundo pode acabar e aí ninguém sabe o que será, mas nós como substância física podemos ir embora e o mundo seguir tranquilamente.
Dado os devidos parâmetros de tempo e proporção, é claro, os anéis de saturno, da mesma forma que nós, nem sempre existiram e nem sempre existirão. Recentemente, foi descoberto que eles podem desaparecer em 300 milhões de anos. Também estão prestes a concluir que não foram formados junto ao nascimento do Sistema Solar há 4,5 bilhões de anos, e sim nos últimos 100 milhões de anos.
Os anéis estão se perdendo década após década, por conta da força e gravidade do planeta gasoso que rodeiam. As músicas do álbum “Maravilhas da Vida Moderna”, o primeiro do grupo, também trazem para a nossa realidade mais próxima a noção da perda. Da abstração e reencontros constantes de si mesmo, enquanto nosso corpo é atraído pelo campo da morte até se entregar a ela.
“Pra mim, o significado das músicas tem muito a ver, acho que elas andam juntas nesse sentido. Essa comparação com o grande e o pequeno, o universal e o particular, são questões de talvez avaliarmos nossa trajetória pela nossa pequenez frente ao universo. Ambas tocam no imaginário do espaço, de cometa, de astronautas, especificamente no lance do passado, do futuro, de tudo que já aconteceu no nosso planeta”, é o que diz Diogo Brochmann.
As canções ajudam a entender toda essa temporalidade, embora nem elas sejam poupadas pelo fim.
Caso você tenha interesse em conhecer mais o trabalho da Dingo Bells, no meio da quarentena eles divulgaram um som inédito, gravado em junho de 2019, chamado “Para pra pensar” e que tem tudo a ver com o momento que estamos passando. E, além do “Maravilhas da Vida Moderna” de 2015, confira o segundo álbum da banda gaúcha lançado em 2018, o “Todo Mundo Vai Mudar”.