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5 min readMay 21, 2016

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Eu não me dava muito bem com meu pai.

Suponho que não tenha sido sempre assim. Quando era criança, meu pai e eu tínhamos um ótimo relacionamento. Separado da minha mãe, o via nos fins de semana que eu tinha vontade, que era quase sempre. Mas no começo da adolescência, por uma série de motivos (cuja culpa, que fique claro, foi igualmente dividida), essa frequência de visitas diminuiu e foi criado um vão entre nós dois. Percebendo esse vão, meu pai, um homem extremamente orgulhoso e complicado, me afastou mais ainda ao invés de buscar reconciliação. Ele tinha seus defeitos, e talvez não seja cem por cento apropriado usar esse espaço pra discutir isso em minúcias, mas é possível que eu acabe o fazendo pra ilustrar um ponto.

No começo, o afastamento da minha figura paterna primária me atormentou terrivelmente. Não sabia muito bem como me reconciliar com ele e ninguém da família podia me ajudar, dado que nunca souberam bem como lidar com ele também. Meu irmão passou a ser um substituto, mas não era a mesma coisa. Ele era uma espécie de mentor intelectual, e não a figura paterna que eu esperava, mesmo que eu não soubesse o que eu esperava naquela época.

Eventualmente, não sei se por hábito, auto-sugestão ou o que, não havia mais tormento no meu distanciamento pelo meu pai. Parei de sentir qualquer coisa por ele, boa ou ruim. O encontrei algumas vezes, vários anos depois e em termos melhores. Mas não existia mais qualquer tipo de conexão entre nós. Eu não tinha mais medo de criar um distanciamento maior entre nós falando algo que o desagradasse, qualquer tentativa de conversa parecia forçada. Ele também ficava evidentemente desconfortável nas nossas tentativas de reaproximação. Era como um pai que nunca tinha conhecido. Nós interagíamos, suponho, pela expectativa, de pessoas a nossa volta, de criarmos um vinculo novo, mas não funcionou. Era um estranho pra mim. Vi ele uma última vez, e foi a primeira vez em que me senti fisicamente mais imponente que ele. Foi uma sensação alienígena e inesperada. Ele não estava só velho, mas esquálido e visivelmente cansado da vida.

Seis meses depois ele se matou. Só descobriram o corpo dele uma semana depois. Ele provavelmente não tinha mais ninguém na vida naquele ponto.

Duas coisas me assustaram quando ele morreu. A primeira foi o fato de eu não ter sentido uma gota de tristeza por isso. E eu queria. Muito. Nunca senti, e até hoje me sinto culpado por isso.

A segunda: Minha família imediata ficou profundamente abalada com a morte, o que suponho que a maioria acharia compreensível, especialmente considerando a forma que ocorreu. Mas considerando o histórico dele com meus familiares, esperava que eu fosse a pessoa que mais lamentaria morte. Não, o suicídio do meu pai causou sofrimento profundo nas pessoas mais próximas de mim.

E isso me fez sentir raiva.

Raiva porque ele tinha sido uma pessoa horrível com meus irmãos e minha mãe, raiva por ter decidido morrer como morreu, negando egoistamente uma possível conciliação as pessoas que eu amo, quase um ponto de exclamação concluindo sua longa lista de abusos a elas. Meu primeiro sentimento pelo meu pai, depois de meu afeto não-correspondido por ele que antecedeu minha apatia, foi raiva.

Asura’s Wrath é um jogo especial pra mim.

O protagonista titular, Asura, é uma espécie de deus, membro de um tipo de panteão. Traído por seus companheiros deificados, é aprisionado por onze mil anos e, quando volta, vê uma humanidade escravizada pelos deuses, o que o desagrada. Essa é a premissa que não importa muito. Asura tem uma filha, e esses deuses a mantêm em cativeiro, usando seus poderes para seus fins pragmáticos, pra não dizer moralmente espúrios. Essa é a premissa que importa.

Asura é geralmente considerado um bruto (porque é o que ele é), mas é surpreendentemente tenro com as pessoas que ama, principalmente sua filha. Ele se mostra inapto a mostrar seu afeto, mas esse afeto existe e as dez horas de jogo se certificam de deixar isso evidente. Muitos socos são desferidos e muita gente sai machucada graças a seu afeto transbordante.

O que quero dizer é que existe um conflito central que compele a narrativa do jogo (na verdade existem uns três), mas por mais que o sofrimento de toda humanidade abale Asura e por mais que ele queira ajudar as pessoas, sua verdadeira força motriz é seu instinto paterno. Seu objetivo primordial é salvar sua filha.

Talvez seja apropriado o fato de Asura ser comumente associado à raiva, a raiva nascida da ameaça que outros oferecem a pessoas que ele ama. Raiva essa que, na época, vi como um reflexo da minha própria raiva pelo meu pai por fazer minha família sofrer durante trinta anos.

Raiva é um estimulante surpreendentemente eficaz. Por mais que ofusque nosso discernimento, poucas coisas induzem implacabilidade de forma tão eficiente quanto ela. E Asura é um deus vivo da raiva. A raiva é um sentimento comumente mal visto, o que é compreensível considerando que seja geralmente evocada por motivos inapropriados. Mas as vezes ela é necessária pra nos mobilizar contra a injustiça das coisas. Essa raiva, que ouso dizer, é justificada, é o que torna Asura invencível.

Mas cometi um erro em decidir que minha raiva pelo meu pai era justificada. Ele era uma pessoa profundamente infeliz e morreu sozinho por isso. Minha raiva não refletia a de Asura, visando o bem estar de alguém. Era direcionada a alguém que já tinha morrido e, portanto, absolutamente infrutífera, nascida de uma profunda frustração por não entender porque alguém rechaçou pessoas próximas a mim. Possivelmente meu pai não conseguia demonstrar afeto ou se reaproximar dos outros da mesma forma que Asura não consegue demonstrar afeto ou verbalizar seus sentimentos. Talvez não fosse o caso. Infelizmente nunca vou poder descobrir. Mas o importante é que percebi que essa raiva nunca vai poder ser sanada enquanto for nutrida. Existe raiva justificada e raiva insensata, e ter raiva de alguém que nunca vou poder entender não é sensato.

Na ausência de uma figura paterna firmemente solidificada, formei através de Asura meu ideal de paternidade. A narrativa transmite em seu cerne o dever de qualquer pessoa, como guardião de sua prole ou de outrem que dependa dela, de garantir sua segurança. Só sabia antes que queria ser um pai melhor pros meus filhos do que o meu foi pra mim. Asura’s Wrath é um jogo especial pra mim. Especial por me fazer enxergar o que isso queria dizer.

Como meu pai, e como Asura, tenho dificuldade de demonstrar meu afeto por quem amo. Mas aprendi com um deus-ciborgue-hindu que talvez isso não importe, e que às vezes intenções nobres ofuscam demonstrações tradicionais de afeto. O tipo de figura paterna que quero ser é o tipo que faria qualquer coisa pelos seus filhos. Mesmo que outras pessoas não entendam. Mesmo que a situação pareça opressivamente contra mim, desde que a justiça esteja a meu favor. Possivelmente mesmo que ela não esteja. Como Asura.

Criar uma pessoa é uma coisa complicada. Não existe métrica, ritmo ou rima. Mas existe afeto, e existe o desejo de proteger o alvo de suas afeições. É a única coisa que posso contar em um mundo cheio de pessoas as quais nunca vou entender. Se eu precisar usar de raiva justificada pra garantir que ameaças aos meus próximos nunca se materializem, vejo isso como um objetivo nobre.

-Alexandre Rothier

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