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9 min readOct 19, 2015

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A parte mais legal de qualquer relacionamento amoroso é o flerte de antes mesmo de o relacionamento começar. Está aí meu atestado de imaturidade — pode espalhar aos quatro ventos que eu ainda sou menino, menino moleque, e não sei lidar com minhas próprias expectativas sobre as pessoas. Deve ser verdade.

Mas não venha me dizer que não existe algo de especial naquela parte do seu dia em que você lembra de uma conversa que teve com uma pessoa e sorri porque sabe tudo o que ela realmente quis dizer, assim como sabe tudo o que você realmente quis dizer. E não só você — a pessoa também sabe; seus amigos sabem e os amigos da pessoa sabem.

Só que ninguém pode dizer, porque isso quebra a mágica. Quem confessar primeiro, perde — aquela coisa toda. Essa brincadeira, de fato esse passatempo de intencionalmente nos asfixiarmos uns aos outros e a nós mesmos com um amor não-confirmado é um prazer pelo qual eu acreditaria que todos passam pelo menos uma vez na vida, no mínimo porque só precisa de um jogador para criar a situação inteira sem o consentimento ou mesmo a ciência de todos os outros envolvidos.

Eu descobri como brincava disso em um bate-papo na internet (pode continuar rindo), em um site sobre Digimon (mais risos, por favor). Bate-papos têm toda uma liturgia, né. Uma ordem dos acontecimentos necessária quando se conversa com alguém. Aliás, tinham, porque hoje ninguém mais usa e a liturgia foi toda transferida para o Tinder. Acho. Em todo caso eu não conhecia o ritual (quer tc? qtos anos? de onde eh? como vc eh? vamo pro reservado? tem msn?), tanto que nem mentia minha idade. Então, quando vieram conversar comigo, eu fui a pessoa mais besta de toda a internet, o que pareceu agradar a contraparte. Perguntei o Digimon favorito dela, ela perguntou o meu, perguntei se ela também não achava o T.K. um completo pau no cu, ela perguntou se a Kari também não era. Eu disse que meu personagem favorito era a Mimi e que tinha que sair. Duas informações completamente não-relacionadas, mas ambas verdade.

Esse bate-papo tinha um mural, coisa que o da UOL não tinha e eu senti falta quando migrei. Ao sair do bate-papo e ir para esse mural, vi lá uma mensagem: “pra qm eu tava tc agora: entra amanhã dnv q eu vou ser a personagem q vc + gosta”. Bom, provavelmente não era isso que dizia, exatamente. Mas era por aí. E eu não sabia se era pra mim, mas acreditava e, principalmente, queria acreditar que era pra mim. Não era que nem desejar aos céus que a gata te tire no amigo secreto da sala ou mesmo que ela te chame para o aniversário dela, porque você está lidando com o imponderável. A mensagem era diferente, mais real do que isso, a sensação de que havia um esquema e eu estava nele. Quando, no dia seguinte, eu praticamente sequestrei o computador e a internet discada para entrar no bate-papo, tinha lá uma Mimi, a quem eu perguntei se era a moça do dia anterior. Para todos os efeitos, era. É tolinho isso que eu estou contando, mas a sensação era bem nova para quem tinha oito, nove anos.

Bom, eventualmente eu briguei com a menina e deixei uma mensagem de desculpas no mural, à qual ela nunca respondeu.

Muitos anos depois eu fui na casa de um amigo, amigo esse que é um mago das pequenas causas e traficante de experiências terríveis — como jogar P.T. em grupo e me expor como o medrosão que eu sou ou me colocar pra jogar Journey de madrugada e me expor como o chorão que eu sou, tudo isso também na casa dele — e ele me ofereceu Catherine. No sentido de “você joga aqui, até acabar”. Isso porque ele sabe não só que eu tinha interesse no jogo, mas que eu sou o tipo de pessoa que frequentava bate-papos. De fato, entre a famigerada pizza do Robert e contos eróticos ruins, eu comecei e terminei Catherine. Peguei o final bom da Katherine com K, o que, na formalidade do jogo, mais ou menos significa que eu, pelo menos naquelas circunstâncias e no que se refere aos personagens daquele jogo, fui um homem responsável e leal.

Pena que esse amigo e mais um viram que tipo desprezível de pessoa eu posso ser, mesmo dentro dos limites formais da monogamia e do bom comportamento. Aliás, justamente por estar dentro deles é que eu me tornava uma pessoa pior.

De alguma forma, entrar em bate-papos e interagir com pessoas que eu não podia ver me tornou o tipo da pessoa que acha que existe subtexto em tudo. O tipo da pessoa que acha uma catarse quando tem duas pessoas conversando em uma roda, achando que estão falando secretamente de algum assunto com metáforas cada vez mais absurdas, até o ponto em que uma olha para a outra, ri e pergunta se estão falando da mesma coisa. Mesmo que eu não seja uma delas, embora seja ainda mais legal quando eu sou. Esse apreço foi útil quando eu namorei pela primeira vez, porque aproximadamente dois segundos depois de eu começar a namorar minha melhor amiga me chamou no canto e disse “bom, eu gosto de você e gostava esse tempo todo. Mas sua namorada é da minha sala e não pode saber. Ninguém pode saber, pra não atrapalhar”.

Isso eu posso dizer que foi um baque. A partir daí, por bem vários meses, a gente conversou em código quando estava em público. Eu me sentia terrível porque, na verdade, todo mundo sabia — menos minha namorada — e, não muito lentamente, toda conversa nossa passou a ser uma espécie de flerte, mesmo quando não era, dado o tanto de significado escondido que a gente imprimia nas coisas que a gente falava. Isso gerou muita confusão e muito problema adolescente. Eventualmente a gente brigou bastante e eu terminei com minha namorada, aliás não nessa ordem.

Como esse meu amigo conhecia essa história (ninguém aguenta mais essa história) ele sabia que quando a Catherine me mandasse uma foto eu ia, sim, sucumbir e ir no banheiro olhar. Ele sabia que eu ia dar corda para as mensagens dela, para em algum momento me arrepender, apagar tudo e responder como o bom comportamento aconselharia. Eu quero muito acreditar que todo mundo faz isso, mas Catherine expôs — pra mim mesmo e para meus amigos — esse processo horrível que é flertar consigo mesmo antes de flertar com outra pessoa, especialmente quando não se pode. E ser exposto dessa maneira foi curioso porque, a partir de determinado momento, toda hesitação para fazer uma escolha, toda vez que eu dizia o que a Katherine queria ouvir, era automaticamente vista como falha de caráter minha e/ou flerte com a Catherine. E, de fato, era. Eu sabia, a Catherine sabia, meus amigos sabiam, os caras do bar sabiam.

Mas eu juro que não é como se eu quisesse que o Vincent e, por ser quem estava nos ombros dele, eu traíssemos a Katherine. Eu joguei visual novels demais para não me importar com os sentimentos e me afeiçoar a garotas fictícias especificamente desenhadas e programadas para te fazer se sentir mal como ser humano.

Eu faço um caso bem grande de visual novels serem jogos, ou, ao menos, mais próximas de jogos do que de livros ou de filmes. Eu usar “jogar” agora foi de propósito e eu acho que flertar tem muito a ver com isso. Tem algo de lúdico nessa história toda de escolher um desenrolar de eventos — ou, mais importante, achar que estar escolhendo — baseando-se em uma pessoa e no que ela vai achar de você. Sei que isso é mais de conteúdo que de forma, mas em todo caso é o que está aí. Catherine não é Steins;Gate, mas me causou reações não assim tão diferentes no que tange “agir no jogo, não segundo o jogo, mas segundo a pessoa dentro dele”.

Quero com isso dizer: quando eu respondia às mensagens da Catherine, não estava preocupado com o resultado formal daquela ação (representado por um contador que ia de vermelho para azul, de diabinho para anjinho, de Catherine para Katherine), mas com o que a senhorita Catherine ia achar da resposta, se ela ia responder, se ela ia achar que eu estava indo muito longe, se ela sabia do que eu estava falando, se a Katherine ia descobrir.

Pior.

Eu não sei se você é desses de, quando está aguardando uma mensagem, checar o celular de cinco em cinco segundos, mesmo sabendo que ainda não chegou mensagem nenhuma. Bom, eu sou. Aparentemente, eu sou. Ao menos em Catherine, eu fui. E não foi nem eu que notei — foram meus amigos, que insistiam que, se não tinha notificação, é porque não tinha mensagem mesmo e que eu estava parecendo um doido e um idiota checando um celular dentro de um jogo freneticamente só porque tinha uma gata me acelerando.

E isso é óbvio, mas na cabeça de quem assina atestados de imaturidade, não importa muito. Esse deve ter sido o momento em que eu mais me senti moralmente nu na frente das pessoas na vida — meu comportamento obsessivo estava sendo não descrito, mas demonstrado e sem meu conhecimento. Se fosse um celular de verdade, seria um comportamento perdoável, afinal, pode ser que, em algum momento, de fato chegue o iconezinho de mensagem sem aviso prévio. Mas, em Catherine, não. É só um jogo.

Mas eu juro! Não é que eu estivesse apaixonado pela Catherine ou já não soubesse mais a barreira entre o jogo e a realidade. Ao contrário — estava apenas jogando, e emocionalmente investido no jogo. Mas acontece que Catherine se joga não através dos botões que se aperta, mas através de todo o espaço e o tempo invisíveis à formalidade do jogo, passando pela intimidade do próprio ato de jogar.

E a verdade é que jogar é uma coisa muito íntima. A maneira como nós fazemos as coisas é bastante peculiar e não notamos que o é até que um estranho nos aponte. Por exemplo: depois de treinar por anos no Winning Eleven, você e algum amigo se enfrentaram pela primeira vez e chegaram à disputa de pênaltis. Aí você descobre, espiando o controle dele de canto de olho, que ele esconde o controle embaixo da camiseta em disputas de pênalti. Você pergunta por quê (esquecendo que, com isso, se entrega, admitindo que estava tentando roubar) e ele responde que não sabe, assim como não sabe por que joga o controle para a esquerda quando quer virar para a esquerda em um jogo de corrida. Catherine apenas usa isso que nós temos de tão íntimo e que não faz parte da estrutura formal do jogo a seu favor.

Não posso deixar de citar que a, abre aspas irônicas, parte jogável, fecha aspas irônicas, de Catherine me fez passar tanta vergonha quanto as partes em que eu ficava no bar muito mais tempo que o necessário só para ver se eu ia receber mais uma foto ou ter mais uma oportunidade de mentir para a namorada. Mas subir na escada gigante com espinhos e necessidade de boa leitura espacial é, em sentido estrito, uma formalidade — ou você passa ou não. Ali, nos sonhos do Vincent, eu estava passando vergonha por como eu era. No bar, eu estava passando vergonha por quem eu sou.

Não só isso como a última fase foi jogada às, sei lá, onze horas da noite e todo mundo estava de saco cheio de me ver morrer em determinada seção. Então eu entrei em estado de fluxo. Estado de fluxo é esse conceito bonito de game design, mas não só do game design, que indica o momento quando você passa a fazer uma tarefa sem pensar, respondendo automaticamente aos estímulos que te são dados. Se você é desses (filhos da puta) que acreditam no conceito de reificação da consciência, é tipo reificação da consciência, só que reaça. Em todo caso foi o que aconteceu comigo, de modo que eu fiquei bom em subir escadas e puxar os blocos certos do nada. Isso gerou aplausos dos meus amigos — pena que a última é a única fase em que existem caminhos, um certo e um errado. E eu peguei o errado. Mas ei! Deu tempo de voltar, o que significa que eu estava bom mesmo naquilo de tanto marretar na cabeça o jeito de jogar.

Estou dizendo isso porque desempenho é uma coisa que melhora e dá para ver, mas lembra que eu falei sobre como tudo que eu fazia nas mensagens passou, não tão lentamente, a parecer derivado da vontade de flertar com a Catherine tentando ainda manter, dentro das regras do jogo, o relacionamento com a Katherine intacto? Mesmo quando não fosse exatamente isso? Pois bem. Confiança só se perde uma vez e eu devo ser uma pessoa horrível de namorar ou conversar em salas de bate-papo. Pelo menos, é isso que meus amigos acham. Eles têm toda razão.

-Pedro Marques

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