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5 min readApr 29, 2016

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É difícil falar de Dark Souls III sem falar sobre Dark Souls, o primeiro. Quando histórias são contadas, não é sempre que precisamos saber o começo delas para entender o final, mas muito se perde quando o conhecimento não existe. Nesse caso, que é bastante específico, se perde saudade; um calor incômodo que bate entre as costelas vez que outra; então angústia; então um horror absoluto de realização — que é quando “a ficha cai”, dizem. É um trabalho complicado escrever sobre um, sem contextualizar o outro, e contexto é sempre importante. O que ocorre em Dark Souls reverbera no futuro, como um eco deformado, e nos leva a experienciar as mesmas dores de novas formas em Dark Souls III¹.

Podemos resumir que em Dark Souls, o primeiro, como que pelas mãos de um pai bondoso somos guiados pela ponta de nossos dedos magros e doentes por entre perigos e questionamentos. Ele não deixa que restem dúvidas de que toda ação é com um objetivo digno e preciso, e que o resultado final é a única coisa real que importa — dar continuidade à Era do Fogo; extinguir a Era do Fogo. Somos o produto mediano de uma caçada e prisão para impedir que o declínio contagioso da espécie humana aconteça, e então jogados dentro de uma lenda sussurrada pelos cantos como os escolhidos para manter as coisas como elas são. E, dependendo da voz de qual lado dos ombros escutamos, sacrificamos o pouco que coletamos através de massacre para acender o fogo, ou não. É uma escolha consciente e limpa, sempre, mas nunca um sinal de livre arbítrio. Tudo se resume em uma batalha de egos, onde o maior de todos vai prevalecer e seguir a serpente que lhe parecer mais justa, quando na verdade nenhuma delas o é.

O que trazemos do fim de Dark Souls, o primeiro, é que, como todos os demais personagens da história, nunca vivemos, como personagem, para testemunhar as consequências do teatro de marionetes no qual, querendo ou não, sabendo ou não, fazemos parte. Acendemos o fogo e somos arrebatados com nossas forças minguadas a alimentar uma chama morta por mais alguns anos; abandonamos o fogo e somos recebidos como senhor e lorde por todas as serpentes sibilantes, guardiãs de segredos, criadoras de reis. O que segue disso são anos de mudanças, os quais não vemos por um motivo ou outro, e o que existe deixa de existir. E às vezes não porque os tempos de fato se foram, mas sim porque outro escolhido tomou uma decisão diferente, segundos depois da sua. E como podemos dizer qual decisão é a eleita correta, no mundo real?

O que fica, na verdade, é que, independente do que se faça, independente de quantos senhores do fogo e lordes das cinzas se ergam e caiam, todo fogo se apaga; a escuridão sempre chega.

Mas você se sente um herói, e isso é muito humano. Não importa o quão dispensável você seja — seu papel final foi indispensável, para alguém, em algum lugar, e mesmo que toda chama se apague a sua viveu e isso é notável. Somos notáveis. Então renascemos, apertamos new game em um novo título, e nos tornamos alguém que levanta de uma morte indigna porque um sino toca, e não é sequer capaz de segurar a própria humanidade debaixo dos pés. Não é sequer hollow, sequer algo que a raça humana temeu — hollows ao menos tem sua maldição e seu trajeto através da História; unkindleds, o pouco em forma humana que sobrou das cinzas de alguém, não têm sequer espaço para marcas no próprio corpo. Só levantam, seguindo as badaladas descompassadas que ecoam só dentro da cabeça, e fazem o que lhes é dito².

É uma dicotomia complexa, diferenciar o unkindled que levanta do jogador. Independente do quão manipulado você entende que foi lá naquelas centenas de anos atrás, sua contraparte virtual, agora, não tem esse conhecimento. E por mais que você queira agir por conta própria, tirar das articulações as cordas que guiam cada passo, você não pode — vá adiante, unkindled, champion of ash, e reacenda o fogo mais uma vez, traga de volta a glória do tempo dos deuses.

É um trabalho muito bem feito, Dark Souls III. Fazendo você seguir as trilhas tortuosas de um mundo feio e desconhecido atrás de quem realmente tem força para fazer o que você gostaria de fazer, mas não pode. Dizendo que você precisa trazê-los de volta, e ocultando o condicional de vivos ou mortos³ até que você sozinho entende que é isso que está acontecendo. Registrando na sua identidade inexistente o papel de lordseeker, lordslayer, como se isso significasse qualquer coisa. E não existe honra em derrotar essas figuras invencíveis que um dia acenderam o fogo, ou que podem acender o fogo e não o fizeram, ou que simplesmente protegem o mundo de algo muito mais perigoso que o fim de uma era. E quando existe honra, quando você tem o poder de colocar sua espada entre os olhos de algo corrupto, é uma vitória vazia — uma vitória tardia, que não cura tristeza nenhuma. Mas é mais um crânio em cinzas para seu trono, mais um passo em direção ao fim.

E sobre o fim, quando você chega nele, existe uma distância tão grande entre você, como jogador, e você, como o personagem, e o vazio é tão extenso e inexorável que você cede. Você sabe que realmente não importa, isso de acender o fogo ou não. E pior: você sabe que seu personagem, tão grande e sábio dos campos de batalha, não pode se doar ao fogo. Mas ele quer ser alguém, ele precisa ser alguém, e o toca mesmo assim — e uma chama envergonhada toma conta de seus braços, e ele a encara com curiosidade, então orgulho, e senta na beira do fogo primordial, as mãos de encontro à espada retorcida no centro da fogueira. E você deixa, porque as consequências não pertencem mais a ele. Elas são só suas, por muito mais tempo que 50 horas de jogo, muito mais tempo que três ou quatro jogos em uma franquia. E você vai ter que viver e lidar com elas.

¹ Como foi, ou está sendo, para quem nunca colocou a ponta do pé nas águas da franquia, digerir todos os pedacinhos de história que são feitos para nós, que nos afogamos nela?

² Lembro de especular, depois de teasers e trailers, que seríamos maiores dessa vez. Ser unkindled soava como algo grandioso, como algo para poucos. Soava como ter poder e ter importância.

³ Antes de derrotar o primeiro lord of cinder especulei por um bom tempo sobre como todos os Abyss Watchers estariam em Firelink, se só tinha uma cadeira, e se poderíamos conversar com eles como conversamos com o Ludleth.

-Mariana Maciel

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