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10 min readFeb 18, 2016

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Pelo que eu venho notado com certa surpresa, o mundo brasileiro dos video jogos sempre foi (pelo menos até o final dos anos noventa, aparentemente) mais parecido com a videogamesfera do Reino Unido do que dos Estados Unidos. Uma semelhança mais óbvia é o fato da SEGA ter sido muito maior por lá do que nos EUA, como em nossas terras tropicais, mas outro fato interessante é que a cena de jogos de computer lá, de 8 e 18 bits era bem razoável, e por aqui também tivemos certa proeminência de PCs estranhos antes do padrão MS-DOS se consolidar de fato. Um dos resquícios arqueológicos que me fez entender um pouco melhor a selva tecnológica dos computadores mais lado B como Commodore, MSX, Amiga e sei lá mais o que, foi uma loja de informática que claramente já não estava mais em sua idade de ouro que tinha perto da casa de uma das minhas avós. Em meio aos então já ultrapassados computadores, havia uma estante dedicada a jogos de PC, foi lá que eu e meu irmão compramos três títulos sem saber muito o que esperar, mas um já prometia ser mais forte do que os outros. Eram eles: The Chaos Engine, DreamWeb e Dark Sun: Shattered Lands. Dos três apenas o último, Dark Sun, não tinha sido criado originalmente para a plataforma Amiga.

Quem se dedicou aos jogos de computador antes do luxo das portas USB, das placas aceleradoras 3D, das cadeiras gamer, do consumo do ovo ser considerável saudável e costumava comprar a Revista do CD Rom da editora Europa, sabe que nem sempre tudo dá certo. Pegos no entre safras dos sistemas operacionais, muitos jogos sofriam com o problema de, apesar do computador que tentava rodá-los ser consideravelmente mais potente do que o necessário, um tipo específico de memória virtual no DOS não era bom o bastante. Quem já passou por isso sabe que era necessário muitas vezes fazer um disco de boot, programar uma sequencia de códigos básicos em um disquete, para que o computador ligasse em um DOS mais zoado, mas que conseguia rodar o seu querido joguinho. E nem sempre funcionava, eu só fui jogar The Chaos Engine muitos e muitos anos depois por exemplo, provavelmente baixado de um site de abandonware e através do Dos-Box, que acaba com os problemas de memória virtual e clock speed (esse segundo era responsável por fazer alguns jogos rodarem rápido demais para serem jogados). De qualquer forma, os outros dois jogos, DreamWeb e Dark Sun, foram muito queridos por mim e meu irmão durante muitos e muitos anos, o segundo mais do que o primeiro por causa de outra paixão que compartilhávamos — o mundo maravilhoso do Dungeons & Dragons, que o generoso coração do velho adolescente (ele já tinha 36 anos quando inventou esse negócio) Gary Gygax nos trouxe.

Lançado em 1991 como suplemento para a o Advanced Dungeons & Dragons segunda edição, o famoso AD&D, Dark Sun é provavelmente o mundo de RPG que eu mais gosto. Nos apresentando um cenário desértico pós apocaliptico, meio Duna meio Mad Max, onde metais como ferro e cobre são tão raros quanto ouro e prata, o cidadão comum tem acesso a poderes psiônicos e os maiores aglomerados humanos (considerando aqui também anões, halflings, elfos, mulos, meios-gigantes e Thri Kreens [imensos louva-deuses bombados de quatro braços]) se encontram sob a rígida casta de cidades-estado comandadas por reis-magos (nada como os do novo testamento), meio parecidas com uma mistura da Roma imperial com o sistema social e sacerdotal dos Maias. Distante da ambientação de RPGs que até os japoneses seguem meio à risca, de uma Europa fantástica do período medieval tardio, povoada de unicórnios e dragões e monstros das mitologias nórdicas e gregas, a ideia da criação de Dark Sun foi evitar trabalhar com essas referências, criando um mundo de monstros que não se situam dentro desses pontos conhecidos, confortáveis, que o mundo da fantasia costuma nos apresentar. O resultado é um mundo desconhecido, mais assustador do que o clichê batido de horror em outros mundos de D&D como Ravenloft.

Nós não eramos familiarizados com o universo do Dark Sun quando compramos o jogo eletrônico. O mundo que mais haviamos visitado no RPG de mesa, embora no meu caso jogado muito pouco, era o do Forgotten Realms, que embora bem construído não se afastava em quase nada do padrão fantastico europeu — mundo esse que alguns anos depois ira absorver durante muitas e muitas horas da minha vida em frente ao computer no primeiro Baldur’s Gate.

Até Dark Sun: Shattered Lands, eu havia entrado em contato com dois tipos de RPGs de computador: Rogue, o original, que pouco tem a ver com a alcunha que o eternizou de fato nos Roguelikes de hoje em dia, que tinha no 286 da minha irmã; e os típicos dungeon crawlers que o jogador é colocado em imensos labirintos onde, por causa de uma dolorosa torcicolo e aguçado sentido de navegação, ele só pode virar nos quatro pontos cardeais enquanto procura o próximo orc para matar. Eu nunca havia visto um RPG eletrônico onde você controla vários personagens ao mesmo tempo e enxerga tudo de cima, com tanta atenção para as regras do D&D como iniciativa e ordem de turnos e rodadas, THAC0 (kkkkk) etc. Dark Sun: Shattered Lands era tudo o que eu esperava de um jogo eletrônico de RPG.

Depois de criar um grupo de até quatro personagens, você estava pronto para entrar no mundo de Athas — mais especificamente na arena da cidade-estado de Draj, onde o insano rei mago de nome impronunciável (Tectuktitlay) e a população ensandecida estão vendo de camarote você ser jogado sem muita cerimônia contra um grupo de monstros, logo após você assistir um mago meio hippie (os magos hippies são importantes no universo de Dark Sun) ser eviscerado por um inseto gigante com garras quitinosas. Como um escravo gladiador, essa será sua rotina diária: acordar. dar uma volta na área reservada para os escravos. arrumar briga com seus iguais. e voltar para a arena lutar contra monstros cada vez mais assustadores e poderosos. A partir dos diferentes personagens que você conhece na senzala dos gladiadores, algumas possibilidades de fuga lhe serão apresentadas: ajudar um dos servos a desbloquear a mente hAqUiAdA pela magia de uma escrava que tem acesso a uma chave que pode significar a sua fuga; organizar uma operação conjunta com um grupo de gladiadores rivais para dar o fora dessa lixeira; ou simplesmente descer o cacete no guardinha que te leva pra arena, despertando a fúria de todos os envolvidos na organização dos jogos gladiatoriais e lutar seu caminho todo sem muita cerimônia ou enrolação. Essa multiplicidade de soluções para os problemas vão permanecer através do jogo, e eu não consigo pensar em nada na época em outro jogo eletrônico que me permitisse abordar de tantas maneiras um mundo hostil que se apresentava à minha frente com tantas histórias paralelas, que eu podia tentar entender ou simplesmente descer o cacete em todo mundo.

Após a fuga da senzala e de um sistema de esgotos povoado por homens-rato com seus próprios problemas, o jogador — após o mandatório quiz de controle de pirataria que ainda era bem utilizado na época, onde um dragão se materializa magicamente na sua mente para perguntar (QUAL A QUARTA PALAVRA DA DÉCIMA LINHA NA PAGINA QUINZE DO MANUAL MEUS AVENTUROSOS AVENTUREIROS? ELA COMEÇA COM ‘W’) -, você sai para o que hoje costumamos chamar de mundo aberto, mas à época era mapa mesmo que chamávamos. Sem um objetivo claro, o seu grupo está livre para vasculhar as diferentes regiões e morrer para que monstro quiser nas diferentes áreas abertas ou masmorras variadas que você pode encontrar. Depois de algum tempo uma missão mais ampla se esboça quando você encontra a vila de Teaquetzl formada por ex gladiadores, onde um shamã doidão enxerga em você O ESCOLHIDO (não deixa de ser um RPG, né). Seu objetivo maior no jogo é defender a vila de Teaquetzl de um iminente ataque do exército da cidade de Draj, pronto para acabar com essa putaria de você ser livre e não dançar ao som da música do louco rei mago Tectuktitlay.

O jogo tem muitos bugs, que inclusive impedem o término de algumas missões paralelas. Ele também mostra sua idade na música midi bizarra, que soa como uma banda de krautrock formada exclusivamente por percussão abafada com toalhas cobertas de areia, um baixo desafinado de uma corda, um piano de brinquedo e uma flauta de pã. Tirando isso, o aspecto visual do jogo, mesmo com suas animações minimalistas de sei lá, 3 frames por ação (estourando), é verdadeiramente impressionante. Os diálogos são muito bem escritos dentro do universo bizarro de Athas, e suas escolhas de fala são variadas e interessantes. Por vezes você se perde no texto ao conversar com um fantasma que imagina estar em uma era há muito passada. A ambientação, e a narrativa que ela traz consigo, mostra algo muito mais interessante aos meus olhos do que por exemplo Fallout 4, título que nos leva ao oculto legado de Dark Sun: Shattered Lands, amplamente ignorado sabe-se lá por quais escusos interesses.

Vamos direto ao ponto: Dark Sun: Shattered Lands é o elo perdido entre os velhos jogos de RPG de computador, melhor personificados na coleção Gold Box (Pools of Radiance, a série Krynn), e o jogos do Infinity Engine (Baldur’s Gate, Planescape: Torment).

(Apenas uma digressão: se você achou curiosa a velha loja de computadores onde eu comprei Dark Sun: Shattered Lands, você precisa ler [em outra ocasião] a história de quando eu comprei Baldur’s Gate no Mappin de um vendedor que não queria que eu levasse o jogo.)

A noção de ver de cima o mundo fantástico do Dungeons & Dragons nunca antes tinha sido apresentada de maneira tão clara, e grande parte do apelo dos jogos subsequentes se dá nessa visão tática do combate por turnos que se desenrola no mesmo cenário que você está explorando. Fórmula que funcionou muito bem também nos dois primeiros jogos da série Fallout, tendo sido o segundo publicado pelo mesmo estúdio responsável pela série Baldur’s Gate. O que Dark Sun: Shattered Lands fez foi resolver visualmente como organizar um mundo onde tantos agentes individualmente se comportam com o intuito de exterminar o bonequinho inimigo. Vale notar que o jogo é de 1993, apenas um ano depois de Dune II ter inaugurado a fórmula do jogo de estratégia em tempo real, e um ano antes de UFO Enemy Unknown (conhecido como X-Com: UFO Defense em lugares menos civilizados do planeta) nos apresentar uma batalha tática cabulosa em turnos. Esses dois jogos são amplamente reconhecidos dentro de seus gêneros, coisa que não acontece tanto com Dark Sun: Shattered Lands. Talvez o que se esperasse do gênero do RPG ocidental de computer à época, fosse tentar ir para lugares não visitados antes, o que de fato aconteceu com a série Fallout, ao menos no quesito da ambientação moderna com armas de fogo, explosões nucleares e vacas de duas cabeças. O que acho é que Dark Sun: Shattered Lands apareceu em um período onde os fãs de jogos eletrônicos de RPG ocidental já seguiam uma fórmula certa e o RPG japonês ainda não havia de fato fincado sua bandeira no ocidente. Chrono Trigger demoraria mais um ano até ter ser lançado, Final Fantasy VII, o jogo responsável em grande parte por consolidar o JRPG no ocidente, seria lançado em 1997. Não existia um público mais amplo pronto para ser iniciado nos jogos de RPG, coisa que Dark Sun poderia muito bem ter feito com sua interface fácil de usar, bem diferente da grande maioria dos jogos de RPG de computador à época que praticamente pediam para você ler o manual inteiro antes de começar. A interação com o ambiente através do mouse que muda de ícone de acordo com a ação executada pelo botão esquerdo, bem parecido com muitos jogos adventure da época, permitia você olhar, conversar e atacar coisas distintas, aumentando em muito a possibilidade de interação com o ambiente e os personagens na tela. Era tudo apresentado de maneira visualmente agradável e consideravelmente simples. Quase todas as histórias paralelas eram memoráveis, digo quase todas pois algumas não são possíveis de serem terminadas até hoje (estou falando com você área da lava, seu LIXO). Algumas regiões parecem só apenas lugares desenhados, esperando apenas alguém vir visitá-las e resolver os problemas locais, mas, bem, eu não lembro de nenhum jogo que tenha resolvido esse problema desde então (se é que é um problema).

Houve uma sequência para Dark Sun: Shattered Lands, em Dark Sun: Wake of The Ravager, o que era de se esperar, já que fazer um engine desses e não aproveitar nem para uma sequência seria osso. Não joguei quase nada desse jogo, mas pretendo algum dia, quando estiver aposentado, vendo as crianças brincarem no jardim. Um terceiro e ousado título foi Dark Sun Online, jogo quase impossível de saber grandes coisas através da internet, mas imagino que fosse algo parecido com Ultima Online no engine do Dark Sun. De qualquer forma se Dark Sun: Shattered Lands fez pouco sucesso, seus sucessores menos ainda, mas não é preciso apertar demais os olhos para enxergar como ele foi responsável pelos futuros jogos de RPG de computador em terceira pessoa tanto quanto Ultima Underworld e Daggerfall foram responsáveis pelos RPGs ocidentais em primeira pessoa. Se você gosta de jogos como Pillars of Eternity e a série Baldur’s Gate ou Icewind Dale, recomendo fortemente dar uma olhada no mundo de Athas, que em seus desertos escaldantes, abismos pedregosos e fauna hostil, vai te mostrar um mundo fantástico apresentado por um prisma único e distante da trilha batida da fantasia europeia.

-Pedro Moreira

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