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8 min readApr 25, 2016

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Tem essa parte em Dragon Quest V que você recupera seus filhos oito anos depois de ser petrificado e não poder tê-los visto crescer. A sua petrificação era consciente, o jogo deixa bem claro: você só não podia se mexer, mas tinha noção de tempo e visão para onde quer que te levassem enquanto objeto. Nesse período te vendem como uma simples estátua decorativa em um leilão, e o comprador é um senhor casado com uma mulher grávida. O que acontece aqui é que você, como estátua, no jardim desse senhor, acompanha o filho DELE crescendo, todos os dias da sua vida, sem poder escolher se queria realmente assistir aquilo, sem poder se mexer. Os seus filhos estão crescendo sem os pais em algum lugar do mundo e você está testemunhando a formação de um outro ser. Ele gosta de você, como estátua bonita no quintal. Ele brinca na sua volta.

Eventualmente os vilões do jogo sequestram essa criança (também na sua frente) para ela ser escravizada. Eles estavam sequestrando todas as crianças dali, traçando um paralelo com o nosso Moisés, para conseguirem encontrar o Escolhido e dar cabo dele rapidamente. Como não sabiam onde essa criança nasceria, era mais fácil pegar todas, mesmo. Você, protagonista, também havia sido escravizado por essa mesma galera em uma geração anterior, então consegue entender tanto como jogador quanto personagem o que aconteceria com aquele menino. E só Deus sabe se os seus filhos não estavam na mesma situação. Como eu disse antes, eventualmente você consegue recuperá-los (embora não consiga fazer o mesmo com a mãe [que você escolhe no decorrer do jogo]) e tudo fica relativamente bem. Eles estavam a salvo, te reconhecem como pai devido às histórias de quem os cuidou, e vocês partem juntos em busca da sua esposa.

O problema aqui é que seus filhos não ganharam nenhum level enquanto estavam longe de você — isso eu não sei se é simbólico, gosto de acreditar que é –, então vocês precisam passar um tempinho juntos matando monstros fracos para eles ficarem fortes o suficiente e aguentarem as próximas dungeons. É opcional, na verdade, você sequer precisa usar seus filhos no grupo de batalha, pode usar qualquer monstro que tenha capturado, equipado e ajudado a treinar antes desse período em que foi transformado. Eu quis ajudar meus filhos a crescer, mesmo. Passei algumas horas correndo em volta de uma cidade com “Inn” (um hotel, onde você pode descansar por uma noite e recuperar os pontos de vida e magia) barato, vendo inúmeras noites e dias passarem, pelo sistema automático de passagem de tempo do jogo. Eu não contei quantas noites se passaram, nem o sistema, nem meu 3DS, nem o Super Nintendo contava e nem o Playstation 2, mas quando achei que tinha desenvolvido meus filhos o bastante fui atrás da minha esposa.

Passamos por alguns perrengues e quando a encontramos descobrimos que ela havia ficado dez anos petrificada, dois anos a mais que o protagonista. Passaram-se dois anos desde que as crianças reencontraram o pai, demoraram dois anos para reencontrar a mãe. A noção desses dois anos depende do jogador — se ele foi direto recuperar a esposa após pegar os pequenos, quer dizer que a jornada de um lugar até o outro do mundo durou dois anos. Se, como eu, ele gastou um tempão matando pequenos monstros, esse período durou dois anos. O texto é sempre o mesmo. Serão sempre dois anos.

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Os alemães tem um termo pro conceito de amadurecimento em narrativas literárias: Bildungsroman. Tal amadurecimento envolve uma miríade de coisas, como o real, mas é basicamente o personagem passando pelos conflitos da adolescência através de perdas, reais ou simbólicas, e eventualmente alcançando a paz interna em relação ao que trouxe tais conflitos, também, de maneira real ou simbólica. Em inglês eles chamam de “coming-of-age” (“chegada da idade”), que não é exatamente o ponto aqui, visto que a idade não está literalmente atrelada a esse conceito. A idade é a estética mais próxima a ser associada com amadurecimento, porém, então faz sentido a comparação, só que cai no aspecto do “não é bem isso” mais do que cai no alegórico. De uma maneira ou de outra, Dragon Quest V conta isso sem o protagonista falar nada e todas as suas demonstrações de maturidade serem por agência, ou nem isso — em nenhum momento ele diz nada ou reflete pelo que passou de uma maneira entregue ao interlocutor, o ponto é que (entre outras coisas) o jogo exige que encontremos nossos filhos para continuar, então a vontade dele é essa e, se tudo ocorreu bem, é a nossa também.

O esquema de progressão em um jogo é a forma mais pura de interpretar a vontade de um protagonista, mesmo que a justificativa não seja literalmente dita. Nem o Sonic nem o Mario dizem que querem ir da esquerda para direita na tela, mas é o lado que o jogo exige que a gente vá, na maior parte do tempo, e portanto dá para dizer que tanto o Sonic quanto o Mario querem ir para a direita. Eles podem até continuar no mesmo lugar, parados, até o tempo da fase acabar. Podemos ficar dez minutos girando naquele loop de Hill Top que precisa que você aperte para baixo para quebrar o chão, mas para continuarmos precisamos apertar esse botão na hora certa. O Sonic precisa de você, ali, para ajudar ele a virar bolinha. É o que ele quer por ser o único caminho que ele nos apresenta.

Do mesmo modo, em Dragon Quest V, ir atrás dos seus filhos e subsequentemente atrás da sua esposa é o que o protagonista quer por ser o único modo de desenvolver os eventos que vão se encadear até o fim da história — mas a vontade é sua, e a urgência também é, e mesmo que você vá direto até ela ou que resolva ficar durante quarenta horas no cassino, dois anos vão ter se passado entre um momento e outro.

Pode ser que alguém tenha contado exatamente quantas noites deveriam se passar para totalizar dois anos e feito isso, numa jogada subsequente. Tal pessoa provavelmente errou, já que nada garante que anos durem 365 dias naquele mundo, mas o que vale é a intenção.

Antes de você ser um pai, foi um filho. No começo do jogo seu pai te cura se você fica com a vida baixa, dá muito mais dano nos monstros do que você, mas jamais te impede de tentar ajudá-lo. Não dá para nós, como jogadores, controlar o pai do protagonista. Ele só nos protege enquanto escolhemos “ataque” por ser a única coisa que sabemos fazer e tentamos, em vão, apertar o botão de novo antes do ataque conectar na esperança de machucar mais, como aprendemos em Super Mario RPG e nunca iremos esquecer. Eventualmente você parte sem o seu pai, com uma amiga, em umas aventuras com fantasmas para salvar um gatinho. Ali você aprende que tem que se curar, evitar tomar porrada de bobeira e a escolher as coisas certas no menu, sem a muleta da figura paternal.

(Quando você for adulto, poderá encontrar de novo tanto essa amiga quanto o gatinho. Dá para casar com ela! E levar o gatinho, agora do tamanho de um tigre, para lutar com você.)

A alegoria aqui é que seu pai te cuida mas nunca toma seu controle — ele te aconselha, briga com você, mas você pode fazer o que quiser e sentir toda a dor de um Slime pulando na sua cabeça. Seu pai não nega essa dor, mas te cura, depois. Depois de duas décadas, quando você tem seu próprio filho, descobre que o protagonista real do jogo é ele. Isso não tira sua importância, só aumenta. O destino não é mais seu, é dele, mas cabe a você colocá-lo no caminho certo.

Tem uma parte que você pode voar por aí pelo mundo em um castelo, e logo depois com um dragão. O castelo só pode pousar em áreas específicas, e dá para pousá-lo em um lugar e deixar lá para sempre, se gostar da paisagem. O dragão voa infinitamente em uma direção até você mudá-la — como muitos RPGs da época, o mapa não tem fim, ele é um mundo redondo. Dá para passar horas só deixando o dragão voar se você esquecer o DS aberto, e ele nunca vai se cansar.

Os monstros que podem ser capturados em Dragon Quest V (coisa que o jogo introduziu antes de Pokémon) fazem parte do seu grupo como qualquer outro personagem humano importante: ocupam espaço na batalha, aprendem habilidades novas, podem usar os mesmos equipamentos (dependendo da espécie, é claro), te ajudam, te curam, te dão vantagem e podem receber desvantagens. Não é um sistema muito balanceado e nem é para ser. A chance de um monstro entrar no seu grupo aumenta cada vez que você destrói um da mesma espécie durante as batalhas pelo mapa, e cada um dos capturáveis tem uma porcentagem de sucesso diferente. Daria até para dizer que as chances são aleatórias se não houvessem tabelas no GameFAQs detalhando tudo e dizendo que o Slime Knight é o melhor pro começo do jogo e o Golem o melhor pro final, colocando um King Slime no meio por ele ter uma habilidade que cura toda a vida do grupo inteiro. Por ser um sistema limitado não dá para experimentar muito, mas o mais importante é que no fim do jogo dá para você usar um grupo que consiste em sua mulher e filhos, com os monstros ao fundo, servindo de suporte, meio que como os gatos e cachorros que a gente tem aqui.

A devoção que Dragon Quest V tem pelo conceito de família é muito palpável, e isso faz com que seja um jogo muito bonito, se utilizando de “técnicas” que nunca serão chamadas de técnicas, sendo só predisposições de seus criadores pelo que eles acham que tem valor.

Serem sempre dois anos ali é um erro literário? Ou o erro é de quem não os esperou?

Tem um museu, também, na versão de DS, que serve para você guardar lembranças. Alguns eventos te dão pequenos itens sem utilidade prática, só dá para colocá-los nessas prateleiras do museu. Pode ser que você nunca vá lá e prefira guardar as memórias no próprio inventário, atrapalhando um pouco na busca de itens essenciais — pode ser que nem perceba quando um desses itens serve só para ser exposto e tente usá-los em diversas oportunidades. Os piores vão tentar ativamente buscar novas memórias para encher o museu, que tem um número fixo de espaços, por “colecionismo”. Pau no cu dessa galera. Gente que só escuta Greatest Hits.

Teoricamente, Dragon Quest V faz parte de uma trilogia, com mais dois jogos que se passam no mesmo mundo — IV e VI. A trilogia de Zenithia, é do que o pessoal chama, pois o nome do mundo é o mesmo. Não que importe realmente: ao contrário dos três primeiros, essa não forma um círculo bonitinho, são só umas referências aqui e ali. O V é o melhor desses três e possivelmente o melhor jogo que saiu da mente de Yuji Horii, que agora já é mais velho, já sabe como família funciona em um nível essencial e não num nível de descoberta, como era quando escreveu o jogo. Para as melhores pessoas, Dragon Quest V também será lugar-comum, hoje em dia. Eu espero que seja. Se for, está tudo bem.

Quando nosso grupo inteiro morre, reaparecemos na igreja. O jogo faz uma piada com isso, na cena do casamento: em vez do “até que a morte os separe” ele manda um “enquanto puderem ser ressuscitados na igreja”.

Dragon Quest V não está sujeito à morte. Sempre, em algum lugar, vai existir um cartucho ou um memory card com o save intacto, e toda a família do pai do Herói estará reunida, naquele mundo com o tempo congelado, esperando, se necessário, serem ressuscitados na igreja.

-Guilherme Alves

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