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11 min readNov 20, 2015

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É só alguém se distrair um segundo que a pessoa mais insegura da sala de reuniões da Square Enix resolve tentar ser relevante e dizer que a evolução natural do sistema de batalha de Final Fantasy XII (que nos possibilitava programar ações com condicionais e, portanto, fazê-lo se jogar “sozinho”) seria um jogo da Zynga e todo mundo acha isso uma bobagem tão grande que sequer contesta, só entram em uma atmosfera condescendente para não machucar os sentimentos do coitado que falou. O raciocínio, porém, foi implantado ali e ninguém conseguiria tirar o elefante da sala. Era tão inane que mereceu ruminações, talvez enquanto os Grandes Empresários que lidam com tudo isso estavam se preparando para dormir, negando suas esposas e colocando seus descansadores-de-olhos em forma de cifrão para poder descansar por duas horas e meia antes de acordar e voltar para empresa, pois é tudo o que eles sabem fazer.

Quando se dorme duas horas e meia por noite a realidade começa a se confundir, como diria o carinha do Clube da Luta, e na cabeça desses caras a ideia de que FFXII se parecia com algo da Zynga passou a fazer sentido, e, ei, os jogadores que pagam sessenta dólares pelo jogo não gostam muito da Zynga, né? “Nós precisamos fazer algo o mais longe possível da Zynga” se torna, com essas duas horas e meia de sono, “nós precisamos fazer algo o mais longe possível de Final Fantasy XII”. E assim tivemos Final Fantasy XIII.

É claro que Final Fantasy XII não tinha nada a ver com a Zynga — o jogo se jogar sozinho te recompensava pelo tempo necessário para conseguir programá-lo para se jogar sozinho, algo que sem a ajuda do GameFAQS era um tanto difícil e desnecessário, além de só funcionar em algumas partes específicas. Se eu trabalhasse na Square-Enix nessa época e dormisse umas oito horas por noite, faria uma promoção que quem conseguisse organizar as Gambits de modo que funcionassem 100% do tempo, em todas as situações, receberia um prêmio, talvez um emprego na minha empresa, talvez um perfume, uma pelúcia de Moogle, meu nome nos créditos do próximo jogo, mas algum prêmio. Talvez Yasumi Matsuno (o diretor original) pensasse nesse prêmio, talvez ele mesmo tenha conseguido programar as gambits, em seu tempo livre, para se certificar de que era possível — e talvez por isso ele tenha sido “afastado” da Square no meio da produção do jogo. É claro, isso são só possibilidades. Final Fantasy XII foi um bom jogo, Final Fantasy XII: International Zodiac Job Edition foi um jogo fantástico, mas shh, não fale isso muito alto, pois aparentemente ele tinha uma “história” muito “chata” para “Final Fantasy” e o “personagem principal” não tinha “personalidade” e o jogo era um “mmo offline”. Não, mas sério, tenta jogar de novo, agora que você é um pouco mais velho. Ou só assiste essa abertura.

Aviso de conteúdo: passarei quatro parágrafos defendendo Final Fantasy XIII.

Mas é, e o XIII? Nossa, é muito bonito, ele. É cacofônico, também, mas só se quisermos. Dá para tirar screenshot de qualquer frame do jogo e emoldurar — não dá, porém, para tirar foto do texto e postar no facebook. Não é que ele seja inerentemente ruim, mas ele só serve para si mesmo. l’Cie, Fal’Cie, essas coisas. Isso não quer dizer nada para alguém que esteja fora do universo do jogo (ou dos jogos, já que é uma “série” dentro da outra série “Final Fantasy”) e talvez esse seja o cúmulo da ficção ao mesmo tempo que é a morte da iconoclastia. Alguém passou anos da sua vida escrevendo todos os aspectos possíveis de um mundo que não existe só para fazê-lo existir, e o completo distanciamento da nossa realidade faz com que se pareça um mundo ainda mais impressionante, embora inútil. Não dá para traçar nenhum paralelo, não há “lição”, é entretenimento puro e simples. Há valor nisso, é claro — embora seja um valor próprio, e não um valor real, e também há a liberdade de tratar de qualquer aspecto sob qualquer prisma, já que não tem como você questionar algo totalmente estranho, que funciona sob regras que você não conhece. A gravidade de Final Fantasy XIII é única, a arquitetura também, a biologia dos monstros nem se fala e nem preciso citar as cores de cabelo. Tudo no jogo é um choque estético, tudo é bonito, tudo é harmonioso e tudo é feito para você olhar e pensar como aquilo ali é muito mais legal do que as coisas que vemos abrindo a janela do quarto — mas o contrário também aconteceria. Se a Lightning olhasse para nós e visse uma pessoa vestindo terno, provavelmente também ficaria fascinada.

Alguns dos outros Final Fantasies eram mais facilmente auto-identificáveis, mesmo sendo em mundos fictícios também. Mas eram alegorias, era fácil de perceber qual seria o comentário em qualquer parte deles, ainda que os inimigos esperassem calmamente seu turno para atacar. No XIII também dá, embora sejam valores mais simples (amizade, companheirismo, etc) mas não é realmente o ponto dele. Caso você queira entender as coisas mais intrínsecas do seu mundo, dá para abrir um menu e ler algumas explicações utilitárias do passado e de suas estruturas, mas isso está lá só por precisar, não contribui para nada. Quando alguém rouba o seu cartão de crédito, você liga pro banco e bloqueia sem se importar realmente com os motivos pelos quais ele foi roubado.

Roubaram o cartão de crédito de todos os personagens do jogo e por isso eles estão sempre correndo, sem ter tempo de parar e cheirar as flores. Por isso o jogo é um corredorzão com ar de urgência e muitos tons de azul. É estruturalmente mais contido e sacrifica alguns floreios por essa urgência, mesmo que nem sempre dê certo — e em uma parte bastante sagaz, quando não é mais urgente, também se perde essa linearidade. Algumas horas para parar e cheirar as flores, se quiser, pois ali os personagens também iriam querer. É humilde, até — eles criaram aquele mundo inteiro, o mínimo que podem fazer em respeitá-lo, né? Em vez de, por exemplo, criar um mundo extenso e interativo e então resolver te dar um salário baseado no seu número de passos.

E também foi o primeiro Final Fantasy desde o VI a mostrar um suicídio na tela (e não um suicídio altruísta, um desesperado) então tem isso.

Fim da defesa de Final Fantasy XIII.

Então, não gostaram do XIII, né, mesmo que lá no powerpoint da apresentação de conceito tivessem prometido que iam amar, já que ele era o contrário do XII. Opa! Volta! Em vez da Square perceber que algumas demografias são literalmente impossíveis de se agradar, ela tentou mais uma vez “se desculpar” e fazer um Final Fantasy “nos moldes clássicos”, o que significava basicamente ter mapas mais expansivos e cidades. Mas já que o mundo todo do XIII estava lá feito e escondido atrás de menus, aproveitaram ele mesmo — mudaram os tons de azul para rosa, porém.

E que rosa, nossa. É muito bonita a capa do Final Fantasy XIII-2, embora eu não consiga entender o motivo. Tem a Lightning nela, mas mal tem ela no jogo — jogamos com a irmã, Serah. Não tem a Serah na capa, o que eu acho legal. O prólogo é com a Lightning e eu me lembro de ter gostado de assisti-lo, embora fosse um filme constantemente interrompido com a necessidade de eu precisar apertar X. Aí entra a Serah, que se veste como uma astronauta (de outro planeta, não terráquea) e acontecem umas coisas que culminam em um cara usando calça saruel, que veio do futuro para dizer que o final do jogo anterior não aconteceu do jeito que lembramos mas, na real, aconteceu sim, só que não lembramos. Eu fui confuso por querer aí, afinal, não gosto do jogo e espero que você não goste também, mas em contexto faz sentido. A premissa, ao menos, faz sentido.

A partir disso é tudo uma grande massa disforme que foi alguns milhões de dólares mais cara que um episódio do Scooby-Doo, embora a estrutura seja a mesma. XIII-2 é uma daquelas cenas em que os personagens entram por uma porta e saem por outra fisicamente impossível, e é essa cena por cerca de trinta horas, se você tiver amor por si mesmo, e umas sessenta, se você for altruísta o bastante. Aí se escolhe lugares e épocas, em que seus personagens (viajantes do tempo/detetives) descem e descobrem o que está acontecendo ali. Há um ar meio Efeito Borboleta que não faz muito sentido visto que existem várias linhas de tempo diferentes, mas podemos mudar alguns eventos para coisas que estão nessa mesma linha, sendo necessário algum desapego para entender como eles selecionam o tempo, ou se há algum Deus que resolveu organizar todas as linhas para si mesmo e apenas si mesmo se organizar.

É inevitável a imagem desse Deus usando números arábicos em suas grandes jornadas universais, colocando em fontes garrafais placas em cima de túneis, com inscrições como “500 AF” e “600 AF” já que em sua onipotência ele saberia que eventualmente passariam por lá duas pessoas vestidas de palhaço e um monstro, buscando como resolver diversas maluquices temporais. Mas é claro que não há um Deus naquele universo, pois se houvesse, em sua infinita sabedoria, ele prontamente o destruiria. Fica a dúvida, então: quem organizou a passagem do tempo? Como os personagens visualizam as escolhas de linhas que eles gastam tantas e tantas horas buscando? Enquanto eles estão viajando entre uma linha e outra tem uma animação bonita com eles voando em túneis com anéis amarelados e diversas inscrições que, com sorte, não querem dizer nada (eu sei que tem essa informação em algum lugar da internet, mas quero acreditar que no máximo tem a transcrição de um link que nos leva para uma loja de perucas) — mas e até chegar nesse túnel? E quando estamos selecionando? Sério, não é um exagero. Eu não me importo com menus em geral e suas abstrações: não me importo com turnos, barras de tempo para se atacar, ou até mesmo com o Sephiroth destruindo o universo completamente mais de uma vez, utilizando o ataque Supernova duas vezes na batalha final de Final Fantasy VII — mas a viagem no tempo (e a viagem entre viagens) é tão essencial para a história do jogo que não é apenas descaso não justificar sua forma física, como me parece também zombaria, como um “ah, se eles engoliram isso tudo até aqui, nem vão perceber”. Em Chrono Trigger havia duas salinhas com teleportes e um velhinho dormindo e era o suficiente: era algo que faria sentido para gente e para os personagens do jogo. Em Final Fantasy XIII-2 não. As prioridades são erradas.

Podemos ver isso pelo fato de que um dos primeiros mapas do jogo é um grande campo com uma cidade no meio, e essa cidade tem umas alavancas, e essas alavancas mudam o clima do lugar, e o clima do lugar faz os monstros do campo variarem, e em um desses climas tem um monstro gigante que está comendo outros monstros, e isso faz com que isso acabe com a biologia do lugar em outro ponto da linha do tempo: não é mais elaborado do que um quebra-cabeça de empurrar blocos em Zelda, mas é muito mais “espetacular” (como em “feito para causar um espetáculo”, não é um elogio). Quanto tempo gastaram nessa situação inteira? Tempo mental, para pensar no puzzle, tempo braçal, para modelar tudo, tempo de programação, para fazer tudo isso funcionar. Custava fazer uma salinha para escolher o ponto de tempo em que se desce? Ou isso não importa, já que é só um jogo? Sim, é só um jogo — não, isso não dá desculpa para ser completamente estúpido. O próprio Final Fantasy XIII original se limitava tanto que praticamente não cometia esses deslizes, por ser impossível errar em um ambiente controlado, mas o XIII-2, que ao menos tem a decência de não ter dois sistemas numéricos iguais no título (Super Mario Land 2: 6 Golden Coins, *arrepio*), erra tanto que parece intencional, parece que fizeram de propósito, só para te lembrar que é, na verdade nunca pensamos tanto assim na logística — mas disfarçávamos bem. Hoje em dia os gráficos são bonitos demais para disfarçar, então para cada decisão burra tem uma cor nova de Chocobo e aí tudo fica bem.

Falando em Chocobos, dá para recrutar monstros para o seu grupo, e eles (não) funcionam como nada que realmente tenha qualquer semblante de funcionamento: servem como um terceiro membro do grupo que, para ser franco, são basicamente habilidades passivas. Dá para colocar pequenos adereços neles como chapeuzinhos ou laços, e dá para fazer eles se devorarem e herdar as habilidades do digerido. É um conceito incrível pelo seu absurdismo — não é um mundo em que monstros brigam entre si, como em Pokémon, é um mundo em que humanos e monstros brigam lado a lado, fazendo com que depositemos a confiança de nossas vidas a gosmas disformes que, por sorte, tinham a habilidade “Cura”. Isso chega num ponto em que o golpe final do jogo, contra o chefe final, que são três dragões gigantes, possa ser dado por uma galinha amarela — ela dá uma voadora em um dragão gigante e não precisa sequer conectar pro jogo assumir que é um ataque válido. O maior herói do jogo, o que impediu, enfim, que o mundo fosse consumido por um paradoxo que eventualmente levaria um personagem a ficar no literal fim-do-mundo, assistindo sua amada morrer repetidas vezes, foi um Chocobo, o que pode levar a uma bela história de superação ou ao maior cigarro do mundo, já que, a fins práticos, também é muito prazeroso e vai te matar por dentro tanto quanto o jogo.

Sobre o que é esse jogo? Ele tem algum propósito? Não tem — ele é um remendo, algo feito pra apaziguar ânimos que foram agitados com o XIII original, e é literalmente só isso. É um utilitarismo, e por isso não tem valor algum. É uma alavanca que não ativa nenhum dispositivo e espera que você se divirta só com a sensação de levar o manete pra lá e pra cá.

Eu ainda não sei o que é a arma da Serah, e não me lembro qual é a arma do Noel, sei que tem alguma a coisa a ver com robôs em uma parte do jogo e em um momento uma cidade é destruída — exceto que não é mais, mas quando voltamos lá, eles precisam criar alguma máquina que utiliza um combustível que está espalhado por todas as eras, em todas as linhas do tempo, e, sinceramente, não é nem a pior parte do jogo. A sua falta de contexto faz com que não pareça tão imbecil quanto o contexto provido pelas partes em que sabemos o que estamos fazendo.

Ele não te faz imaginar como seria (o tempo, o mapa, o futuro, a falta de tempo); ele diz que não é.

É incrível pensar que aquilo é um produto que saiu de uma mente humana, que dorme duas horas por noite e usa descansadores de olhos em forma de cifrão, mas ainda humana e tudo isso só me faz acreditar que no andar mais alto do prédio mais alto do Japão, que é o prédio da Square, tem apenas dois tubos de ensaio: um com o sangue de Hironobu Sakaguchi, um com o sangue de Yasumi Matsuno, e tudo o que a companhia fez com esse jogo era para arrecadar dinheiro em um processo de clonagem que os faria voltar para sua empresa-mãe em prol de, quem sabe, em um futuro distante, criar um jogo que tenha algum significado para uma pessoa normal: que já riu, brigou, ficou doente e tropeçou na rua e que, quando chegava em casa e ligava o Chrono Trigger, sabia que mesmo em uma mapa fora do tempo haveria alguém para te lembrar que aquilo ali era uma experiência agradável.

-Guilherme Alves

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