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6 min readJul 4, 2016

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Fragile Dreams é um coração pulsante preso pelas amarras da convenção de checklists que um jogo precisa preencher para ser considerado um jogo que honra o uso da palavra jogo. Caso o objetivo atual fosse pegá-lo como tal, colocá-lo na mesa cirúrgica das análises, lhe dar uma nota de letras e números em ordem decrescente, com certeza poderíamos afirmar que ele faz jus ao seu nome. É um programa frágil, que você precisa pegar com cuidado com as duas mãos e ainda assim, caso respire muito próximo, pode perturbar partes importantes — e então você tem um sistema de batalha travado, uma esquemática de câmera falha, uma história que se despedaça depressa quando analisada por ser menos pretensiosa do que deveria ser; e aí controlar seu personagem se torna pesado, atacar é uma ação truncada, manejar seu inventário é cansativo. O problema da análise cirúrgica, feita com mãos de assepsia perfeita e máscaras de algodão no rosto, é que o paciente não está acordado. Não existe uma voz que fala sobre si, olhos que indicam mentiras sobre si, um cérebro enorme de informações. Porque o paciente pode ser frágil e a cirurgia pode ser falha, mas ele ainda existe. E o que existe nele é importante. Como jogo, o mérito de Fragile Dreams nunca esteve em ser um produto, mesmo sendo, e sim em ser uma memória. Ele escorre dos dedos não por ser quebrado, mesmo sendo, mas por ser efêmero. É bonito vê-lo chegar, mesmo que com menos pretensão do que deveria ter, e partir deixando mais do que leva consigo.

Ele, o jogo, nasce da hipótese de um sobrevivente, sem nenhuma perspectiva ou esperança de durar mais de cinco minutos do outro lado da porta, resistir à vontade de deitar e morrer e sair pela tal porta e encarar sabe-se lá o que o espera. E ele tira do umbigo essa esperança não porque viveu o que havia antes, mas por não ter vivo nada de coisa nenhuma. É uma expectativa de que as coisas eram diferentes antes, e de se alimentar do que havia antes — mesmo sem conhecer — e que as pessoas de antes eram muito melhores, e quando essas pessoas forem encontradas vai ser como se o mundo nunca tivesse acabado — mesmo sem saber como era esse mundo antes, só o conhecendo por relatos de quem esteve lá. Esse personagem — um mix de inocência pré-adolescente que nunca vai sequer passar pela adolescência de fato porque o mundo te faz envelhecer tão rápido, aprender a sobreviver ou morrer tão depressa, que não existe mais tempo para as fases passarem como deve ser — é tudo que nos liga do começo da história, da ideia de que o mundo acabou, até o meio da história, da certeza de que tudo acabou, até o fim da história, onde de repente ainda existe alguma coisa. Fica subentendido que é a possibilidade de sobreviventes, na alta torre vermelha no horizonte, que faz com que seja possível resistir à perda e ao nada do fim do mundo e bater de frente com todos os fantasmas, literais e imaginários, que forem aparecer pelo caminho.

Existe uma beleza especial nesse fim do mundo. Menos “e a natureza retoma o que o homem um dia roubou”, mais “essa marca é a última marca do homem no universo”. Todos os carros abandonados e parques de diversões desativados, todas as casas meio destruídas pelo tempo e os museus vazios de portas trancadas. Toda uma sequência de herança e evolução arranhada no tempo por um último ato, uma última dança, uma última criação. Todo futuro arrebentado pela decepção de uma única pessoa. A beleza do fim do mundo é muito verde e vermelha, com o céu aprendendo novos níveis de luz aos poucos, com recordações desgastadas descartadas por todo lado, prontas e ansiosas para serem coletadas e registradas mais uma vez — uma última vez. Logo na abertura, que vem depois de um trecho de jogo misto de tutorial e exposição, abrem a caixa do enredo e despejam sobre você uma paisagem vazia e uma sensação de escolhido, de ser único, que na verdade não existe. Não é possível ser único, ser especial, quando não existe comparação — porque não existe mais ninguém para comparar. Quando as coisas se desfazem e acabam — porque elas sempre se desfazem e acabam -, o que sobra é um amontoado de lembranças e pessoas meio confusas com o que acabou ou por que acabou. Alguns querem entender, outros querem ajudar, outros comemoram em silêncio que o fim chegou. Mas ninguém entende mais sobre o fim além daquele que ainda vive dentro dele, e, ligado ao cordão umbilical do que um dia existiu, tira sustento das poucas coisas que um dia foram — ou pior, que poderiam ter sido. Por mais que estejamos habituados ao conceito do apocalipse, esquecemos como ele não é, jamais, sobre o fim do mundo, mas sobre quem deixou de existir quando esse mundo acabou.

Você segue a história, explora os cenários, e entende que o que poderiam ser seres humanos são só um amontoado de recordações e arrependimentos, só uma sombra do que eram antes do mundo acabar, só uma página borrada de desejos que não conseguiram abandonar e por isso não conseguem partir. As armações de concreto visíveis das casas abandonadas marcam a passagem do tempo. Os gatos magros de rua que se submetem a um pouco de contato com você, humano e estranho, por meio centímetro de carinho e um pouco de comida, marcam um tempo ainda mais cruel. E então você chega aos poucos seres humanos (ou equivalentes) vivos, quando se pode usar o adjetivo, tão machucados pelo decorrer de uma história sem eles que não conseguem sair da repetição de padrões que os faz mais NPCs do que pessoas reais. Mas eles são pessoais reais, e você, não só personagem como também jogador, vê as pessoas reais neles.

A história real, a história que grita de verdade, é sobre eles. Você, Seto, o quem controlado por um wiimote e um nunchuck com conector meio enferrujado, não tem muita personalidade além de “poxa vida, que triste estar sozinho, quero tanto um alguém”. O jogo como jogo em si realmente é um checklist de ação e reação, o enredo real que embala o jogo é uma pilha desnivelada de combates e química entre estilos. Mas a alma verdadeira, a dignidade, o conflito que fica em você depois de ver os créditos, está nesses NPCs negligenciados, que deslizam pelo enredo como colunas de sustentação de um prédio — extremamente importantes, mas tão primários que acabam tidos como óbvios e não como essenciais. Eles são narradores de sua própria tragédia, são os alicerces da narrativa de um futuro invisível e um passado triste — e são pinguepongueados como objetivos de missões a se cumprir para avançar um pouquinho mais e terminar logo a história para colocar em uma lista. Você encontra uma AI conselheira do tamanho de uma mochila, mais humana do que qualquer humano ainda vivo; você encontra um androide que baseou sua vida inteira em histórias em quadrinhos e quer ser um pirata; você encontra uma lembrança viva, revivendo e remoendo dia após dia como o fim do mundo destruiu sua cerimônia de casamento. E eles são seus amigos, nesse caminho, mas nenhum deles dura para sempre. Nenhum deles é realmente o humano que você realmente procura; nenhum deles faz realmente parte do mundo que você faz, ou quer fazer, parte. O que é injusto, porque nenhum deles, na verdade, deixa sua vida por querer. Eles só deixam.

O sentido da viagem está em não ter memórias e buscar criá-las, mas a única coisa que realmente se encontra, no final, é o que um dia pertenceu ao outro. Quem já partiu deixou suas mensagens escritas em tinta invisível nas paredes. Existe um humano que você realmente procura, é claro, mas a história vai além disso, e nem deveria ser sobre isso. Ela não é sobre você (apesar de falar com você, para você, apelar para quem você realmente é), ou nosso quem controlado por botões, nem sobre essa pessoa que você realmente procura. Ela distorce a noção de tempo, de espaço, de que o fim do mundo é sobre quem sobreviveu a ele. O fim do mundo em Fragile Dreams não está nos cenários e nos vários tons do céu, o coração não está em quem vaga. São as sombras que ficam, não em quem as encontra, mas em quem as desvenda em terceira pessoa. Sobre a mãe que morreu no terremoto antes de conseguir alcançar a filha; sobre um fã que nunca mais vai poder ouvir seu show favorito no rádio; sobre um casamento ensaiado que nunca aconteceu; sobre uma menina que é muitas. A verdadeira beleza do fim do mundo começa e termina rápido, em quem o joga, e o real final da história nem é tão importante assim. As lembranças que ficam são.

-Mariana Maciel

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