NOT_VIDEO
NOT_VIDEO
Published in
7 min readOct 20, 2015

--

O jogo favorito do meu pai é Half-Life 2.

Não é meu jogo favorito, mas meu pai sempre gostou dos jogos da Valve. Ele participava de um clã de Counter Strike quando eu era menor (tem a caneca e a camiseta do clã guardadas de recordação), sob o nickname de Capt. Zilio. Gostava do primeiro Half-Life e do primeiro Team Fortress, e foi o primeiro a me apresentar Portal, esse sim um dos meus jogos favoritos, quando o jogo saiu (“nesse jogo não tem armas, você precisa usar a inteligência pra passar de uma fase pra outra!”).

Lembro perfeitamente da empolgação dele quando os primeiros trailers do jogo apareceram, meio parecido com a nossa empolgação quando anunciam um jogo que a gente quer muito. Lembro dele me chamando pra mostrar o trailer, porque “agora tem tripóides no jogo, igual Guerra dos Mundos!”, e para mostrar como estavam bonitos os gráficos e como o jogo provavelmente seria muito legal. Hoje em dia a gente entende melhor o que o lançamento daquele jogo significou — ele trouxe para nós muitos conceitos diferentes de como contar uma história por meio de um videogame, mudou completamente a cara dos jogos da Valve e, num geral, foi um jogo que fez história -, mas, na época, nem eu nem meu pai víamos isso. A gente só via um jogo que ia ser muito legal.

Quando eventualmente saiu, Zilio Pai comprou bem rápido. Deve ter comprado uma placa de vídeo nova também, pra ter certeza de que o jogo rodaria direitinho. Lembro bastante das caixas das placas de vídeo, sempre coloridas e brilhantes, parecia que ia sair um brinquedo muito louco dali de dentro; mas nah, só saía uma peça pro computador, e eu ficava um pouco desapontada. Hoje em dia essa pecinha do computador me deixa bem animada, mas quando se é criança as prioridades são diferentes.

Admitidamente, não me lembro muito bem de como foi o jogo na época que meu pai jogou. Lembro do começo, quando chegamos no terminal da cidade e escapamos pela porta dos fundos com ajuda de nosso amigo Barney. Lembro de achar engraçado como Alyx dizia tantas coisas para Gordon Freeman, o protagonista, e ele não respondia nada em troca. O conceito de um personagem que servia como um representante nosso dentro do jogo era algo novo para mim; chamavam a gente pelo nome de Gordon Freeman, então aquele era Gordon. E Gordon era mudo, e Alyx falava e falava sozinha com ele. Era engraçado. Lembro do carrinho que meu pai dirigia às vezes, dosheadcrabs — monstros tão inspirados nas criaturas saídas de pesadelos do filme Alien, que pulavam em seu rosto para sugar sabe-se lá o que. Lembro do pé-de-cabra, arma mais icônica do protagonista. Lembro dos sons de recuperação de vida — ah, aqueles sons! Aquele chiado aliviador, que anunciava que sua energia estava sendo recuperada, é nostalgia pura para mim. Tudo isso era protagonizado por meu pai, e presenciado em primeira mão por mim, sentada na cama ao lado do computador da casa, balançando os pés que não encostavam no chão, prestando atenção em tudo que acontecia.

Assisti meu pai jogar aquele jogo até o fim e, depois que ele terminou, claro que me deixou jogar desde o começo. Meu pai nunca foi aquele tipo de pessoa que não dava acesso àquilo que era importante para ele — se tinha um jogo que ele gostava, ele queria muito que eu jogasse também. Ele insistiu até o fim para que eu jogasse Max Payne quando terminou, e sempre perguntava porque eu não jogava o Metal Gear Solid que tinha comprado pro PlayStation One — “você precisa ser inteligente e se esconder pra passar das áreas, não é só sair matando todo mundo!”. Com Half-Life 2 não foi diferente.

Até que joguei bastante na época, aí cheguei em uma parte em que você precisa ser bem rápido, ou é esmagado por uma grande máquina. Fui esmagada e aquilo me impressionou. Parei de jogar.

Para ser sincera, sempre fui facilmente impressionável por jogos num geral, mais do que filmes ou programas de TV. Se um jogo me assustava de alguma forma, eu não conseguia mais jogar. Alone In The Dark e Tomb Raider jogaram dobermans raivosos logo no começo para cima de mim, parei de jogar. Sonic 1 fazia uma coluna de lava me perseguir num corredor estreito — novamente, parei de jogar. Mas acompanhava esses jogos como a co-piloto do meu pai. Ele não se assustava com nada. Ele conseguia jogar Alone In The Dark sem ter medo dos cachorros. Ele não se assustava com a lava perseguindo o Sonic. Ele sabia como passar aquele chefe difícil do Streets of Rage quando me chamava pra jogar com ele (ele era sempre o loirinho, eu era a menininha de vermelho). E ele não tinha medo da máquina que esmagava Gordon Freeman, o protagonista de Half-Life 2. Ele chegava em pontos do jogo que eu não conseguia, por mais que tentasse; então que melhor jeito de acompanhar a história, senão assistindo ele no controle do jogo?

Minha geração teve muito dessa cultura de “assistir ao outro jogar porque o mesmo não me passava o controle”. Mas comigo nunca foi assim. Fui filha única até os sete anos e sempre fui a prima mais velha; tinha acesso ilimitado aos nossos jogos, e me mantive assim por um tempo mesmo depois do nascimento do meu irmão, enquanto ele desenvolvia coordenação motora o suficiente pra não cair de cara no chão enquanto corria. Eu era a prima com os videogames; era quem tirava o controle da mão dos outros, não por egoísmo, mas por impaciência — esse pulo é fácil, não precisa chegar milimetricamente no canto da plataforma, é só pegar impulso! Era quem passava as fases quando minhas primas mais novas não conseguiam, e era eu quem conhecia os jogos mais legais do emulador (na época, meu pai arranjou um CD com emuladores de vários consoles, e eu passava o dia jogando todos da lista enorme de jogos). E nunca vou esquecer de uma tarde memorável em que passamos na casa da minha avó, jogando Tomb Raider Chronicles seguindo os passos de um detonado que eu tinha impresso da internet. Minha prima lia o que eu deveria fazer, e eu fazia, já que era a mais habilidosa.

No fim, assistia às jogatinas do meu pai, não porque ele não me dava a chance de participar da brincadeira, mas simplesmente por gostar de vê-lo jogar. Meu pai era o meu herói implacável, que amava jogos de um jeito bem parecido como amo hoje. Jogava porque queria saber o que acontecia na história, porque gostava dos personagens, porque achava bonito. Ainda hoje ele é assim.

(Como uma pequena curiosidade, acho meu pai bastante parecido com o Gordon Freeman, só que gordinho)

O tempo passou depois disso. Meu pai já não joga tanto quanto antes, e não assisto tanto às aventuras dele quanto assistia sempre. Recentemente o vi jogando Battlefield: Hardline, e eu e minha mãe nos divertimos rindo da dublagem do Roger. Mas esses momentos são bem mais raros. Agora ele prefere os filmes — todo sábado, ele e minha mãe passam a tarde assistindo a vários filmes, sejam eles alugados, comprados, ou que estejam passando por acaso na TV. Como eu não tenho tanta paciência com filme, não participo dessas maratonas a maioria das vezes.

Estou mais velha, mais madura, menos medrosa. Agora levo duas horas de viagem todos os dias pra ir à São Paulo trabalhar. Sei dirigir, mesmo que apenas faça na cidade onde moro. Saio aos fins de semana. Me viro sozinha.

Foi a minha vez de dar uma segunda chance a Half-Life 2. Já não sou mais tão impressionável com mortes abruptas em videogames, e tenho uma habilidade que com certeza não possuía na infância. Com certeza conseguiria jogar o “jogo favorito de meu pai”.

Liguei meu XBox, abri o jogo e comecei a jogar, me cativando quase instantaneamente, mesmo sentindo falta de algumas coisas sobre o primeiro Half-Life. Sempre tive essa mania de jogar o segundo jogo ao invés do primeiro. É algo meio inconsciente, meio sem querer.

E como eu disse, não é meu jogo favorito. Adorei a experiência, adorei a história, os personagens, o ambiente, e às vezes até me dá vontade de jogar de novo. Entrei na fila das “pessoas que esperam pelo lançamento de Half-Life 3”. Meu personagem favorito é o robô com o nome de “Cachorro” — quem não gosta de um robô com nome de “Cachorro”?

Mas de todas as minhas lembranças sobre Half-Life 2, as mais marcantes — e mais gostosas — sempre serão meu pai entrando na sala domingo de manhã, vendo o jogo na TV e ficando encantado pelo fato de sua filha adulta, formada, de 24 anos, estar jogando o jogo favorito dele. Sempre será ele me chamando pra mostrar os tripóides do trailer. Sempre será eu sentada ao lado dele assistindo ele passar de uma área para outra, sentindo as mesmas aflições e comemorando as mesmas conquistas.

De todos os heróis dos meus jogos favoritos, o maior e mais importante sempre será o meu pai.

Meu Gordon Freeman particular não é mais meu conquistador das aventuras nos videogames. Hoje ele é quem me busca na rodoviária todos os dias, quando volto do trabalho à noite. Foi quem me deu meu primeiro carro, e quem mais me incentiva a dirigir mais, mesmo sabendo que tenho um pouco de receio de dirigir sozinha. Ele reclama sempre que passo muito tempo no computador (jogando os jogos que ele tanto gostava), e que não passo tanto tempo com ele e com a mamãe, na sala, vendo TV. É verdade. Realmente faço isso. Ele se preocupa quando saio para passear todas as vezes, odeia quando chego muito tarde, quando não dou sinal de vida no WhatsApp. Eu o magôo um pouco, pois sempre foi um homem brincalhão, tendo que conviver com uma filha que se leva muito a sério e não aceita brincadeiras, mesmo inocentes, com tanta facilidade.

Gosto de videogames do jeito que gosto por causa do meu pai. É clichê dizer que “meu pai é o meu herói”, mas o que mais ele seria? Uma pessoa que sempre teve alma de herói, que gosta tanto de aventuras que entrou de cabeça na tecnologia que permitia vivê-las mais de perto assim que ela apareceu. E cujo jogo favorito é Half-Life 2.

-Natália Funes M. Zílio

--

--