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8 min readOct 28, 2015

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De uma forma mais funcional que etimológica, magia tende a ser como se chama aquilo que a ciência natural de certa cultura não é capaz de assimilar e explicar. Isso vale tanto para a ciência vigente em certa época de determinado povo quanto para o conhecimento que um único ser tem do mundo. Dessa forma, uma bacia cheia de álcool e posta em chamas será magia tanto para um ser humano primitivo quanto para uma criança, devido à incapacidade de ambos em assimilarem que um líquido que parece tanto ser água possa inflamar.

A literatura está repleta de personagens que, para nós leitores, são claramente estudiosos mais profundos e avançados das ciências naturais, mas aos quais os personagens menos instruídos do livro referem-se como mágicos, magos — esta palavra bem interessante por sua correspondência inglesa, wizard, estar etimologicamente ligada a wise e wisdom — ou até mesmo ilusionistas — também interessante, pois coloca a magia como manipulação de elementos, fazendo uso de um conhecimento não difundido, a fim de enganar algo como um público.

Quando o cinema surgiu, a pintura e a gravura já eram formas de linguagens visuais muito bem estabelecidas. Tratava-se de ilusionismo puro: borrões de tinta desferidos sobre uma superfície, manipulados a fim de se criar padrões que nossos olhos e cérebro pudessem reconhecer e traduzir como figuras componentes de uma narrativa. A mídia era o quadro. A essência do cinema consiste em colocar muitos quadros em sequência e, pela manipulação dos elementos nesses quadros e pela velocidade com que são passados diante do olhar, enganar os sentidos a fim de acreditarmos estar diante de uma cena em movimento. É possível que uma criança que nunca tenha visto um vídeo ou um ser humano primitivo se assustem diante de um filme, por serem incapazes de entender como uma tela achatada está mostrando cenas reais em movimento. Curioso, porém, é que mesmo para nós, magos que sabemos como o cinema funciona, a velocidade de sucessão dos quadros continua sendo tão imperceptível aos sentidos que nossa mente, a fim de evitar briga, apenas cede e acredita naquilo como sendo movimento da cena mesmo.

Isso é aquilo a que se chama a magia do cinema.

Quando ICO surgiu, entre 2001 e 2002, os videogames já eram uma mídia com sua própria linguagem e jargões. Mídia com significado de meio, que quer dizer como as pessoas experimentam a peça ou, no caso, como nós interagimos com o que está passando no vídeo. A linguagem que caracteriza os jogos é a mecânica ou o conjunto de mecânicas que o compõe. Nós damos comandos, as mecânicas fazem o intermédio e o jogo nos mostra o resultado na tela. Videogames é isso. ICO é isso.

Nós aprendemos lendo e vendo reviews que Tempo de Campanha é algo importante quando se vai falar sobre um jogo. ICO não é exceção, e o tempo de campanha dele é algo bem importante para a experiência. A média fica entre quatro e seis, talvez sete horas de jogo até os créditos. É possível terminar em uma única sessão, mas os deuses do speedrun entendem que nós precisemos interromper o jogo, fazer algo da vida e voltar para o jogo outra hora, então ICO oferece a mecânica de salvar o progresso, que em 2001 já era bem conhecida, a ponto de não necessitar de explicação sobre seu funcionamento para quem acompanhava a mídia videogames.

(Alguns amigos meus que haviam parado com games na época do NES e Megadrive continuaram usando o termo “salvar” para se referir a “terminar o jogo” até meados da década passada, provavelmente porque em Super Mario Bros., terminar o jogo era sinônimo de salvar a princesa.)

Caso você esteja num futuro ou num passado no qual videogames não existem, mas por algum motivo este texto existe, vou explicar melhor: salvar o progresso é quando você guarda as informações de tudo o que fez até aquele ponto no jogo e pode interromper o programa, desligar o aparelho, sair pra tomar banho, comer, dormir, passear ou trabalhar na vida real e então, quando quiser, ligar de volta o aparelho e reassumir o jogo sem ter perdido o registro do que fez, podendo continuar a aventura de onde parou, como se nada no mundo do jogo tivesse acontecido.

Mas, em ICO, algo acontece.

Logo no começo, pouco depois que o menino que controlamos encontra-se com a menina que nos segue pelo castelo — e, quando não segue, nós puxamos — já nos deparamos com o primeiro de muitos sofás que vamos encontrar, de dois lugares, brilhando como se fossem feitos de um material desconhecido, opaco, mas que reflete toda a luz incidente como um diamante, chamando muito a atenção na tela, até por destoar de todos os demais elementos pouco saturados do cenário. A garota se aproxima do sofá, com o que pode ser curiosidade ou um pedido, e o jogador possivelmente vai dar comando para o menino se aproximar também. Nenhuma dica escrita ou simbólica aparece na tela, mas, por estarmos acostumados aos videogames, forçamos o boneco a encostar no sofá… e ele senta. Quase imediatamente, a menina senta-se ao lado e uma tela aparece perguntando se você deseja “salvar o jogo”. Logo aprendemos que, se quisermos interromper o jogo sem perder progresso, precisamos encontrar um sofá e sentar nele os dois bonecos.

O que acontece em ICO é que, se salvarmos mas continuarmos o jogo, basta mexer no controle para os bonecos se levantarem do sofá. Mas se desligarmos o jogo, quando reassumimos, mais tarde ou dias depois, os bonecos estão dormindo no sofá, a garota com a cabeça recostada no ombro do garoto, descansando.

Mesmo que você não seja um tr00 videogame theorist, essas animações simples e desnecessárias em qualquer videogame são o suficiente para dizer a você que salvar o progresso e reassumir o jogo não são somente salvar o progresso e reassumir o jogo: salvar é colocar os personagens para descansar, voltar ao jogo é acordá-los, é interromper aquele momento de descanso em meio às correrias, lutas e fugas das silhuetas de sombra que vêm atrás da garota durante todo o jogo e que precisamos espantar usando o que tivermos à mão, com uma mecânica de combate tosca e quase ineficaz como os golpes de uma criança são toscos e quase ineficazes.

Não que exista uma barra de stamina que se regenera quanto mais tempo deixamos eles sentados. O jogo é extremamente simples em suas mecânicas, e os dois personagens têm cada um somente dois estados de saúde: o garoto pode estar vivo ou morto, que acontece instantaneamente quando algo desaba sobre ele ou quando ele cai de uma grande altura — fora isso não há barra de danos ou cansaço –, e a garota pode estar livre ou presa pelas sombras que vão tentar arrastá-la até buracos negros no chão e que significam game over, porque no momento em que a soltamos da gaiola no começo do jogo, o menino se compromete a tirar os dois daquele lugar. Isso também resume toda a narrativa do jogo e quaisquer coisas que você descubra além é só interpretação.

Não existir uma mecânica própria em função do descanso dos dois no sofá não somente é desnecessário como, digo com certeza, tornaria o jogo não tão brilhante quanto ele é. Porque isso seria adicionar mais uma mecânica a um jogo cujo conceito maior é ser o mais enxuto possível. Descansar no sofá não é uma mecânica em si, mas um contexto para a mecânica de salvar o progresso, que precisou existir. Mesmo que você não pense nisso academicamente, ao jogar você percebe que isso faz todo o sentido.

Aliás, perceber jogando é que é o mais importante: você não percebe que isso faz sentido porque parou e pensou em como isso faz sentido na ludonarrativa ou no level design ou no minimalismo; você simplesmente assimila aquilo como algo que faz sentido no universo do jogo. O ato se torna mais natural, orgânico mesmo, a ponto de nós salvarmos porque é necessário, mas não sentirmos que estamos interagindo com uma interface, mas sim com uma história sobre duas crianças que estão correndo juntas por um castelo e, eventualmente, ao encontrarem uma área que não aparenta perigo, vão perceber que estão cansadas e vão querer descansar.

Essa contextualização simples e precisa de mecânicas inerentes aos videogames está em tudo que você reparar em ICO. O castelo em ruínas permite obstáculos e puzzles praticamente naturais, que não parecem ter sido montados para o jogador como as dungeons de Legend of Zelda, por exemplo — embora em Zelda o contexto se inspire nas armadilhas de templos egípcios. Os comandos que podemos dar ao boneco da garota, para “vir aqui” ou “ficar aí”, são limitados, mas isso parece óbvio, afinal os dois são crianças que sequer falam a mesma língua. São soluções compostas de clichês, mas tão bem amarrados por um conceito tão incrivelmente simples que, pensando em retrospecto, a impressão ao jogá-lo é de algo tão realista quanto seu contemporâneo Grand Theft Auto III, mesmo ICO tendo um garoto de chifres e uma garota que brilha correndo por um castelo cheio de sombras e sofás.

Isso porque cada mecânica em ICO está contextualizada de uma maneira tão inteligente que, cada vez que fazemos uso delas, acabam sendo a própria forma pela qual o jogo narra a si mesmo. Existem pouquíssimas cutscenes que avançam alguns eventos, mas a narrativa da qual eu falei antes, a qual o jogo se resume, é contada não por textos ou falas, mas por cada ação que o jogador realiza com os comandos, desde cruzar um abismo — primeiro pulando o menino para o outro lado, para então chamar a menina e segurá-la pela mão pouco antes de ela cair — até o ato de salvar o jogo. Toda e cada ação narra a história de duas crianças passando juntas por obstáculos e desenvolvendo entre si uma relação que não necessita de palavras

(só sentir)

Não que ICO tenha sido o primeiro ou o melhor jogo a utilizar o meio como mensagem ou a contextualizar mecânicas de forma inteligente. Quando a obra de Fumito Ueda veio à luz, Earthbound já uma década antes nos ensinara a salvar o progresso ligando para nosso pai para dizer onde estávamos; de forma similar, Metal Gear Solid definira uma frequência do CODEC para reportar nossa posição e status para o log no mesmo ano em que tocávamos notas em Ocarina of Time para fazer o fast travel sem nem percebermos que estávamos fazendo um fast travel. E talvez meu exemplo preferido de todos, Majora’s Mask já tinha nos ensinado seu feitiço do tempo que obrigava a recomeçar o ciclo a cada interrupção necessária (mas o remake perdeu isso, sorry).

Quaisquer outros exemplos que você esteja pensando agora de jogos que não utilizam as mecânicas somente como meio para nos levar até textos ou cutscenes que narram a história, mas sim que utilizam as próprias mecânicas para construir a narrativa e passar a mensagem do jogo, são exemplos de jogos que utilizam ao máximo o que a mídia — como meio — videogames têm a oferecer. Todos os jogos vestem as mecânicas de acordo com o contexto do universo criado em certo nível, mas alguns insistem mais nesse ponto, e isso explica o rebuliço em volta deles. Da mesma forma que a mente permite à pintura ou ao cinema nos enganarem brevemente com nada mais do que borrões numa tela ou quadros se sucedendo em alta velocidade, ICO e os demais bons exemplos, que fazem cada um de nós querermos sair digitando em caixa alta o quanto são bons e todos deviam jogá-los, fazem-nos querer e conseguir, às vezes até sem querer, esquecer que estamos lidando com bonecos de polígono colidindo com simulacros de sofás.

Se um dia falarem em algo como a magia dos videogames, talvez seja isso.

-Caio Oricchio

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