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7 min readJan 15, 2018

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Quando uma obra é criada, ela (independente da vontade do autor) adquire caráter informativo. O alcance dessas informações dispostas pelo conteúdo é volátil, contudo, sua contaminação (quase) sempre extrapolará os limites do próprio universo da obra, atingindo também o universo de seu criador. Há casos em que a falta de informação faz-se necessária para compor a ideia que o autor deseja passar, enquanto noutros a informação ultrapassa os limites da própria obra e torna-se responsável por criar uma noção generalizada sobre um aspecto qualquer, tendo esta noção a capacidade de definir a maneira pela qual enxergaremos tais elementos a partir de então.

Pense em orcs, e em como todas as representações destes seres posteriores a Tolkien carregam traços muito próximos. Não é que todos os orcs sejam maus, grosseiros ou apresentem ausência de ambições, apenas é a forma com a qual estamos acostumados a percebê-los, derivada de um autor específico, para qual tal forma de utilização tinha um valor narrativo necessário. Orcs, as criaturas, vêm a serem exploradas por abordagens diferentes da de Tolkien, contudo sua ideia foi a que se manteve no imaginário do público.

Vampiros e zumbis possuíam também uma definição singular perante o público, que acabou se fragmentando devido a uma pluralidade de releituras do mito. Desde então, você não sabe se a pessoa pensou na Kate Beckinsale usando preto, no Christopher Lee, ou talvez no William Marshall, quando pergunta a ela “qual a primeira coisa que vem a sua cabeça quando você pensa em vampiro?”.

O raciocínio anterior foi realizado somente para se chegar à conclusão de que nunca temos uma noção concreta de qual seria o trabalho de um detetive. Salvo os profissionais, todo o rol de informação construída a respeito desse trabalho parte de informações acumuladas no imaginário coletivo, aliado ao nosso, e se pararmos pra pensar bem é assim com todas as profissões, com todas as coisas que não tangem nossa existência diária. E as obras, sejam elas filmes, livros ou jogos, acontecem nessa lacuna, decorrente da incapacidade de imaginarmos acontecimentos paralelos e múltiplos em relação à nossa existência. Quando apaixonados, podemos tentar imaginar como foi o dia da outra pessoa, reproduzir mentalmente (visual também, suponho) todo mínimo detalhe inútil, essa representação possuindo valor unicamente devido aos valores nutridos por quem imagina. Durante o processo, entretanto, é impossível não se alhear ao ambiente e às próprias percepções no momento da criação. O processo criativo exige distanciamento entre autor e realidade que o cerca, tendo ele que submergir na própria criação, e acabar por desligar-se quase que completamente de sua realidade. Tal sensação é abraçada pelo receptor, que, quando sugado pela obra, também perde a noção dos elementos que o cercam. Cada obra é um universo distinto disposto a tragar qualquer um que se disponha ao sacrifício de ser devorado por seu conteúdo, um acordo silencioso, que pode ser quebrado a qualquer mínima desatenção, retornando conosco à realidade, ainda que por pouco tempo, resultado do fato de não sermos capazes de perceber realidades simultâneas. Entender o sistema de L.A Noire é importantíssimo para conseguir bons resultados no jogo. Isso pode ser dito sobre qualquer jogo. Compreender seu sistema permite superar os desafios propostos, concedendo sequência a narrativa, encaminhando-a para o fim, objetivo proposto pelo jogo e acatado pelos jogadores. Entender o sistema de direção ou tiro também tem sua importância, mas o que te leva pra casa no fim do dia com a sensação de dever profissional cumprido acaba sendo a investigação. Ser um bom investigador, então, dita a dinâmica do jogo, afinal de contas você (Cole Phelps) é um detetive, e apesar da profissão ser bacana para nós de início, descobrimos ser um processo longo e muitas vezes monótono de recolher todas as pistas e realizar interrogatórios. Felizmente, ocasionalmente ocorrem crimes menos misteriosos cuja única solução será perseguir, atirar, prender os elementos (que nem sempre acontecem nessa ordem), acabam sendo mais divertidos e representam uma chance de ser herói, algo importante para um Cole em começo de carreira.

A ambientação de um elemento específico também tem importância para definir seu comportamento. Se pensarmos no caso dos detetives, e datarmos nossas representações de detetive para uma época específica, como o fim do século XIX, perceberemos personagens mais ligados à lógica, que desvendam casos complexos através de raciocínios puros e análises dedutivas que eliminam, com ajuda de todas as provas disponíveis, todo o raio de hipótese possível, chegando somente numa única, e óbvia devido à impossibilidade escancarada de todas as outras hipóteses, que viria a ser anulada por uma prova específica vista somente pelo detetive de raciocínio acima da média, não sem algum esforço. Mas, ao ambientar detetives na década de 40, a estética (pode ser considerada estética?) noir transformou a atuação dos detetives, que diante do caos de cenários incompreensíveis utilizam da força como forma de eliminar algumas das hipóteses.

Quando interrogamos com Cole nos surgem três opções após a resposta dos investigados: true, doubt e lie. Existe uma intersecção bem grande e visível, embora ela só apareça com o tempo, entre você e Cole. Você controla as ações de Cole, mas não seu pensamento, então interrogar no jogo consiste no exercício de tentar calcular a imprevisibilidade do comportamento que Cole tomará a partir da decisão escolhida pelo jogador no momento. Qualquer uma das opções escolhidas resulta em diálogos um segundo atrás inimagináveis: você pode acreditar em alguém que diz a verdade e ficar por isso mesmo; você pode acreditar e reafirmar sua confiança na informação verdadeira de alguém e ela lhe dizer mais coisas; você pode acreditar na mentira de alguém e ver as belas expressões faciais do jogo trabalhando enquanto a pessoa tenta não rir do detetive otário que acreditou (ou fingiu acreditar) numa resposta com muito pouco sentido; há como acusar alguém de mentir, nesse caso você deve apresentar prova que sustente a argumentação, caso contrário o acusado, sempre ciente dos direitos que sua constituição lhe confere, pode se virar de diversas maneiras, algumas hilárias, outras nem tanto, contra você. O terreno movediço normalmente se encontra na dúvida. Quero dizer, você vai acabar tendo alguma dúvida, mas Cole não — ele é binário. Sempre que duvida de algo, o tutorial do jogo já nos indica que ele na verdade não acredita, contudo carece de provas e não tem como acusar formalmente.

É aí que você saca que Cole não é você, não se trata de um mero totem de interação. Ele não depende do jogador nem o contrário e, apesar de controlarmos suas ações na maior parte do tempo, viramos, durante breves segundos, reféns de seu temperamento diante dos interrogados. Você nunca sabe como ele irá duvidar, principalmente porque a dúvida não existe pra ele, mesmo que exista pra você e, existindo ou não, não temos como saber como Cole irá pressionar as vítimas em busca da verdade — fazendo um comentário capcioso acerca da coerência da história; talvez gritando com uma testemunha; pressionando as mãos violentamente contra os braços e chacoalhando todo o corpo; ele pode até mesmo ser gentil e perguntar como se realmente tivesse uma dúvida. A questão é que não sabemos a melhor maneira de fazer uma menininha de oito anos dizer a verdade quando está mentindo, não sabemos nem por que ela mente, e isso normalmente varia de menininha pra menininha, algumas preferem que gritem com ela pra falar a verdade, outras se calam pra sempre e fazem você achar Cole o maior idiota do mundo por não esclarecer sua dúvida e gritar com uma criança que acabou de presenciar um crime.

Quando o interrogatório do jogo funciona você, na maioria dos casos, não liga pro método. Mentira, você liga sim. Acredito que um dos méritos do jogo ao separar você de Cole é criar um personagem com uma personalidade própria, fazendo com que se jogue através de Cole e apesar de Cole. A Rockstar soube trabalhar um enredo que não precisa adicionar um pano de fundo especial para o personagem adquirir uma personalidade, ela é formada durante o jogo, através de cada decisão que ele toma a sua maneira.

Desejei que Cole fosse menos babaca com alguns parceiros bacanas, mas estava lá só guiando o carro enquanto ele dizia coisas que escapavam a minha atuação e, mesmo podendo bater o carro e matá-lo, sempre que retornasse aquele ponto as mesmas coisas seriam ditas, vindas de um personagem de palavras e opiniões fortes.

Considero L.A Noire um dos melhores jogos de guerra que já joguei. Mesmo se tratando de um pós-guerra, o desenrolar de alguns acontecimentos surge devido a decisões travadas no passado bélico. Vemos Cole, um veterano de guerra, alguns de seus companheiros de pelotão, como suas vidas seguiram após a guerra, algumas promessas quebradas, e como decisões tomadas por cada um lá, nesse passado, afetaram seu futuro. Mais uma vez vemos fora de nossas mãos o controle de decisões do personagem. Ele muda seu comportamento, e algumas de suas ações são alteradas pelo choque com o passado- é perceptível, é estranho.

Próximo ao fim o controle muda para um conhecido de Cole, Jack Kelso, cujo comportamento é diferente. Fazer as coisas através de Kelso soa diferente, ele possui pouca importância se contarmos o tempo que levamos para conseguir interrogar, compreender e se acostumar a Phelps, logo a história avança e chega ao desfecho. Citar o desfecho aqui não tem importância, pois ele vale pra refletir a jornada, sobre como uma mecânica foi capaz de personificar tão bem um personagem, e sobre como, quando lidando com videogames, somos tão capazes de estar e não estar no controle ao mesmo tempo. Chutando uma bola segurando o analógico pra esquerda numa inclinação de 38 graus, o chute sai na tela com uma inclinação de noventa à esquerda e você pensa que isso não devia estar acontecendo, ou quando você erra uma curva que tinha certeza que não deveria ter errado, e jamais teria errado caso estivesse no mundo real sob influência da sua própria física.

Cole segue por moldes parecidos, com exceção de que não se pode culpar suas ditas falhas por erro evidente entre a minha realidade e a realidade do jogo, ainda que todas suas ações no jogo estejam escritas e premeditadas ele tenta, e consegue, agir como um humano, não se trata de um erro, mas como um humano específico, sob condições e pressões ímpares tomaria aquelas decisões, com esta entonação de voz e esta expressão facial. Não se pode culpar Cole por querer ser humano demais, opondo-se ao pragmatismo do qual nos acostumamos a adquirir sentados com o controle na mão buscando apenas se divertir por horas, circunstâncias simplesmente diferentes.

-Mario Cardoso

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