NOT_VIDEO
NOT_VIDEO
Published in
8 min readJun 17, 2016

--

Quando no começo não existia nada e de repente duas partículas de qualquer coisa que existam no nada se colidiram e deram origem a tudo, já deveria estar claro para quem fosse existir no futuro a insignificância das coisas. Que a inconsistência de existir algo no nada — quando nada existia, e de conhecimento geral não sabermos de onde esse algo que existe do nada veio — não deveria ser motivo de indignação. Questionamento sempre, indignação dificilmente.

Cada um de nós, como seres humanos de polegares opositores e massa cinzenta razoável, de queratina maleável sobre as orelhas e queratina geralmente rígida nas extremidades dos dedos, significa absolutamente nada. E isso deveria estar claro desde a explosão das coisas, desde antes de existirmos como pontinhos de gosma na água e decidirmos que era uma boa ideia deixar mitocôndrias viverem dentro do resto que hoje chamamos de célula. Uma insignificância tão tremenda no grande esquema das coisas que o zoom out daquele vídeo sobre o livro do Carl Sagan nem começa a representar.

Quando você se for, nada vai mudar; quando o presidente dos Estados Unidos se for, nada realmente vai mudar; quando aquele cara que faz várias cirurgias plásticas para deixar as pessoas falsamente mais jovens mas verdadeiramente mais felizes se for, nada vai mudar. O Sol (que é de uma pequeneza extrema, que também não muda nada) vai continuar sua rota de expansão e eventual implosão; Nibiru vai continuar sua rota de translação errática de Netuno ao infinito; as Plêiades vão continuar habitadas por sabe-se lá que alienígena espírita as pessoas andam acreditando ultimamente; Centaurus A vai continuar parecendo poeira espacial ao invés de uma galáxia gigantesca. E nada disso vai durar muito tempo, porque as coisas mudam por si só, sem realmente fazerem diferença também.

E é com essa compreensão que olhamos inversamente para tudo que representa nada e conseguimos notar o quão bacana e especial nós na verdade somos. Uma civilização gigante sem motivo nenhum para existir, pensante, com potencial criativo infinito, com força de trabalho infinita, com capacidade para ferir e amar igualmente infinitas. Sem poder nenhum em decidir o curso das coisas no universo, mas ainda assim poderosa o suficiente para decidir o curso das coisas na sua própria curta duração, e deixar para os próximos seres de curta duração um registro preciso de sentimentos e criações e lições, cruas e polidas até uma suposta perfeição. Uma responsabilidade enorme de deixar uma herança relevante e exata, não necessariamente positiva ou negativa, para os outros seres pequenos, que também deverão deixar sua herança de forma exata. E os planetas vão continuar girando e as estrelas explodindo do nada para o nada, e nenhuma dessas ações pequenas vai realmente significar alguma coisa nesse esquema simples de aparecer e desaparecer. E cada segundo dessa herança de ações e criações vai ser o mais importante para todo mundo que, no momento em que essa herança é inclusa no lugar comum das memórias, é afetado por ela mesmo sem saber. Qualquer um, de você ao presidente, pode levantar os geralmente cinco dedos da mão e contribuir com o que vai para frente.

E foram alguns desses seres humanos, já que nosso caso de estudo específico é na Terra, por enquanto, que pegaram e jogaram para o espaço (metaforica e literalmente falando) tudo que veio a se tornar uma exploração do nada, englobando uma infinidade de civilizações que também não influenciam no nada, e por isso são tão ricas e tão reconfortantes quanto ao significado de ser, e criaram Mass Effect.

Mass Effect é um produto, como todos os significados que a palavra produto pode ter. Ele foi criado para preencher um nicho de mercado, que vou fingir entender como funciona e dizer que havia uma demanda lá nos idos de 2005. Galera que criou o jogo, lá da Bioware, tinha um histórico secular de produtos digitais sobre longas aventuras épicas recheadas de história e ramificações, com costumização de estilo de jogar plena, sempre focados em mundos medievais mágicos e derivados. O espaço a fronteira final é quase como uma extensão do mundo medieval mágico no imaginário humano; trocamos magia por tecnologia, trocamos criaturas místicas por alienígenas; o resto é um amplo parque de diversões. Então sair de Neverwinter Nights e embarcar na Normandy explorando quinhentos planetas de mako é um passo evolutivo mais do que natural.

O ser humano é um organismo em constante evolução. Pegamos coisas que existiram vinte minutos atrás, jogamos fora a maior parte, agarramos a pequena parte mais inútil e absorvemos como algo supostamente produtivo. Reproduzimos aquilo que pode ser repetido, isolamos aquilo que é único e unitário. Como espécie somos uma desgraça, mas como criaturas analisadas de forma individual podemos ser grandes, contribuir grande, trazer relevância ao que é num geral e em sua totalidade irrelevante. É isso que a arte representa, geralmente: não o melhor do ser humano, mas sim o mais relevante, seja ele bonito ou feio. E a arte se torna produto quando é consumida, assimilada (com grande parte jogada fora ou não), reproduzida, recriada. E Mass Effect é um produto: do seu tempo; de valor cultural e histórico dilatado pela atenção que recebeu, por todos os lados; humano, que contém humanos e pessoas e culturas que humanos acham que podem estar por aí, só esperando para serem descobertas. Então você vai lá, consome o produto, se torna um produto, e as descobre — como eu as descobri.

Existe uma missão muito clara quando você pisa pela primeira vez na Citadel, como menino Shepard ou menina Shepard, com muitas armas ou muitos poderes mentais, com um passado terrível ou não: aprenda a se mover, e mova-se para a direita. E você se move para a esquerda e o jogo diz “muito bem, tem gente aqui na esquerda também e eles tem tantos problemas quanto qualquer um na galáxia. Resolve aí, ou só vá embora.” Você não é único na Citadel, nem ela gira em torno do que você faz ou não. Você não é único da galáxia, e por mais que nessa ópera espacial toda você saiba que vai ser especial eventualmente, o fato é que todos são, no fim das contas. E ninguém gosta muito de você, nem dessa espécie cheia de pele e gordinha que veio da região Sol num geral. A grande pegada da coisa toda que faz você andar e falar Mass Effect é a associação intergaláctica entre não só você, o jogador, ser novo naquela situação, como também a sociedade Humana também não manjar muito daquelas culturas, daqueles “alienígenas”, das maquiagens e roupas e costumes que não batem muito com o que aprendemos em casa. Então não é só você descobrindo tudo — são todos. Uns reagem bem, uns reagem mal, e no fim das contas quem representa toda raça humana é você, reagindo bem ou mal. Essa responsabilidade toda se torna uma bola de neve gigante mais tarde, dando brilho ao ópera do termo ópera espacial, mas Mass Effect, o primeiro, é mais sobre o espaço. O Espaço, o Sideral, e o espaço que as coisas ocupam; que as pessoas ocupam e querem ocupar; todo aquele resto que ocupa espaço demais; o espaço ocupado de forma errada, com intenções erradas, que ninguém tem coragem de apontar porque parece muito certo.

Eventualmente você precisa ir atrás da entidade do mal, aquele que faz todas as coisas erradas da Via Láctea, em uma missão iniciada em uma noite sombria, atrás de um um homem sombrio com propósitos sombrios. Ninguém acredita que ele é tão mal assim, sendo conselheiro do sultão e tal, mas os olhos metalizados sem expressão e as escolhas estéticas duvidosas não deveriam enganar ninguém. É bastante curioso, na verdade, como é óbvio quando alguém está errado em Mass Effect, quando alguém é mal caráter e na soma das coisas morto por dentro, manipulado, mas os grandes poderes não enxergam porque está tão do lado deles, tão “ele é um de nós”, que apontar para o lado e dizer “cara, não é bem assim” acaba sendo apontar para si mesmo. E cabe a uma das espécies mais duvidosas da comunidade intergalática provar que o cara do seu lado está errado sim, e você também na verdade, e olha quantas coisas vocês colocam em risco por não querer furar a bolha de superioridade em que se colocaram.

Mas isso é menor, isso é ruído de fundo, porque nesse meio tempo entre atirar em uns bonequinhos e brincar de detetive espacial para provar que o bonitão é do mal, você pode parar tudo e explorar planetas de mako. Você dirige no planeta, encontra uns escombros, atira em minhocas gigantes com o canhão acoplado no carro, às vezes nem nada disso. Você e seus companheiros de viagem caminham pro cenários desolados, pequenos acampamentos de pesquisa abandonados, grandes cidades tão antigas quanto a história. E por mais que seus trajes espaciais sejam construídos para repelir poeira ao invés de atrair, e mesmo que ao voltar pro mako e então voltar para a Normandy tudo seja pressurizado e higienizado de novo, os planetas continuam existindo nas substâncias que compõe cada um. Ao tocá-los, vocês se tornam um com a galáxia.

O conjunto de tudo que faz Mass Effect ser o que ele é, no fim das contas, te atinge com força e cria no seu âmago tantos sintomas de Síndrome Pós-Avatar que é surpreendente ninguém ter tatuado de forma definitiva as marcas coloniais do Garrus ou enchido os cabelos de concreto para parecer uma Asari. Gostar ou desgostar daqueles que fazem parte da sua tripulação é um pra um com o quanto sua Shepard vai saber lidar com eles ou não. Mas você vai gostar, num geral, e então seu relacionamento dentro da Normandy é o equivalente a uma república de estudantes que não usam drogas nem ficam acordados até tarde. Você, junto com todos eles, representam o melhor e o pior de cada uma de suas sociedades, tudo que foi empilhado no conhecimento geral e que formam quem vocês são desde crianças até agora, adultos e militares atirando em coisas que se mexem. Você se torna não só um com a galáxia, mas um com sua nave, um com as pessoas de sua nave. Você torna a humanidade una com todas as outras espécies que, por ao menos um segundo, mantiveram contato com essa raça específica que tem polegares opositores e massa cinzenta razoável, de queratina maleável sobre as orelhas e queratina geralmente rígida nas extremidades dos dedos. E todos os volus e turians e krogans e asaris e hanars e salarians e elcors reconhecem como parte de sua comunidade os humanos, mas, mais importante que isso, você como humano reconhece todos eles como uma parte de si.

Mass Effect, o primeiro jogo da trilogia, termina com uma batalha épica contra um vilão cartunesco e a revelação de um vilão ainda maior, talvez mais cartunesco ou não, permitindo que outros jogos fossem enganchados na sequência. Mas o que importa nessa batalha é que, logo depois, você precisa deixar todos os seus amigos partirem. Você passeia, em sua mente, pela Normandy uma última vez. Eventualmente você sabe que vai voltar, que ela estará lá para receber seus pés virtuais cansados e sua mente real pronta para mais viagens no espaço. Mas nesse momento no tempo e espaço ela está, e sempre estará, vazia, como um ninho muito apertado que de repente se despede de todos os seus habitantes. Independente de quanto tempo você esperou pelo outro jogo, o que tem um número dois no nome e avisa que contém todas aquelas coisas que você se importa e quer de volta, dói deixar para trás uma vida inteira. E mesmo que nada disso importe, mesmo que seja só um jogo, você também não importa, por ser só um humano. E nessa vida de estatísticas que vivemos isso com certeza é algo que nos define, e no fim das contas Mass Effect fica, como muitas outras coisas ficam, e cria manchas na história que a humanidade nunca vai se livrar. Quer ela tente ou não.

-Mariana Maciel

--

--