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6 min readDec 2, 2016

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O melhor jogo sobre depressão que existe é Okami.

Okami não é sobre depressão, naturalmente. Não existem jogos sobre depressão. Mas Okami é construído a partir da ideia de que você é uma deusa que consegue transformar noite em dia e deve salvar um mundo que, em nenhum momento, vai te agradecer. Isto é, ele vai — tem o contador que aumenta justamente quando você pratica bons atos, como alimentar animais nos campos. Mas todos ainda vão te tratar como um cachorro que, por um motivo ou outro, é capaz de fazer coisas mais ou menos incríveis.

No entanto, tudo que seria incrível demais para um cachorro, como trocar o dia pela noite mesmo, deixa as pessoas estupefatas, confusas até — mas elas nunca vão associar os milagres a você. No fim do jogo, você vai ser capaz de, quando você quiser, mudar a forma do cenário à sua volta e, ainda assim, ninguém liga.

Apesar de existir um mecanismo de recompensa, Okami é construído a partir da ideia de que você deve fazer o bem a todos o tempo inteiro e as pessoas só vão te reconhecer por esse bem quando elas quiserem. No fim, o objetivo maior do jogo é espelhado em cada pequena ação que você realiza: matar o final boss é salvar o mundo tanto quanto alimentar um cavalo; ajudar um senhor na sua colheita de rabanetes é tão salvar o mundo quanto decapitar uma cobra de várias cabeças; conjurar fogo do nada e queimar a bunda de alguém no vilarejo é tanto a prerrogativa de um deus quanto eliminar a escuridão que assola o mundo inteiro.

O sentimento de operar milagres o tempo todo e não poder esperar nada em troca.

Como o objetivo maior do jogo se revela nos menores comandos e o tempo todo, se recusar a conjurar flores atrás de si enquanto você corre se torna se recusar a salvar o mundo; não querer dar nozes para um esquilo, mesmo tendo as nozes e o esquilo estando por perto, é um pecado tão grande quanto falhar na batalha final; não cuidar de um pequeno pedaço do mundo equivale a não cuidar do mundo inteiro dentro do jogo.

Eis porque Okami é o melhor jogo sobre depressão que existe: você sente a pressão de ser um deus, de ter um mundo inteiro para cuidar e saber que essa tarefa vai muito além dos números: extrapola as mecânicas e atinge a sua vontade, como pessoa, de participar dessa responsabilidade. A depressão não é, em Okami, um fato objetivo que o jogo cria, o jogo não é sobre isso — é uma sombra que te persegue a todo momento, um peso muito maior do que o normal para cada pequena tarefa, um pensamento obsessivo, mas rasteiro, de que não vale a pena salvar essas pessoas que não te agradecem. Se você sente que, a qualquer momento e pelos mais variados motivos, não vale a pena salvar o mundo, você está, pelo menos naquele momento e naquele contexto, alimentando uma depressão em Okami.

E é por isso que não podem existir jogos sobre depressão ou sobre absolutamente nenhuma doença ou comportamento específico. Se eles são emulados, eles não partem do jogador. E, se não partem do jogador, não existem — e, portanto, não estão emulados, o que derrota todo o propósito.

Rainy Day não é sobre depressão.

Quando o jogo te convida a escolher o que fazer no dia e existe peso igual entre clicar em cima e clicar embaixo, sendo que o que muda são as palavras que você vai receber depois disso sem nenhum espaço para o jogador sentir qualquer coisa por ele mesmo, ele está discursando sobre si mesmo e nada mais. Rainy Day não leva o jogador para lugar nenhum: ele se apresenta, tenta mostrar alguma coisa, mas só mostra o fato de que está tentando mostrar alguma coisa.

São duas presunções que se contradizem — a primeira, a de que o jogador é uma tabula rasa a quem determinado sentimento, desordem ou comportamento precisa ser mostrado através de um truque formal para que ele compreenda ou sinta qualquer coisa. A segunda, a de que o jogador é não só capaz como também sempre inclinado a extrair sentimentos, comportamentos ou desordens específicas desses mesmos truques formais, como se só tivesse eles dentro de si.

Em Rainy Day, o jogador explora a demonstração da depressão, mas nunca o que quer que seja a depressão em si — percebe, a máxima para escritores “mostre, não conte” não é suficiente para jogos. Nada que se mostre se traduz em sentimento verdadeiro, porque os sentimentos verdadeiros são só do jogador e não há nada que um amontoado de números, palavras e imagens justapostos possa fazer sobre isso. O sentimento do jogo é, portanto, só sobre ele mesmo.

Para que essa demonstração possa acontecer, existe outra contradição interna: a protagonista tem que necessariamente ser um limbo entre personagem concreto e avatar do jogador, mas esse limbo não existe: você não pode desenvolver uma personalidade muito específica, porque isso dificultaria o ideal (absurdo) da identificação, mas, ao mesmo tempo, precisa emular um estado de espírito, porque existe algo que você quer falar — e, portanto, a personalidade da protagonista vira a própria depressão.

Por isso nós vemos frases (igualmente absurdas) como “Uma saia comprida com flores. Mais comprida que meus arrependimentos”, que, por mais contundente que seriam se não fossem um completo despropósito, ainda estão por trás de uma vitrine que você não sabe se era pra te pertencer ou não — e não pertence. A depressão age sobre si mesma e você vai, invariavelmente, cair nela — mas não por seus próprios esforços. São esforços do jogo, que querem te fazer entender algo, mas ignorando os instrumentos que ele próprio te deu.

Isso significa que suas escolhas não estão contingenciadas. Não existe um campo sobre o qual você sente que está agindo e pode, portanto, não agir — se não agir é uma escolha tão concreta quanto todas as outras e é evidenciada pelo jogo o tempo todo com opções do tipo “eu me odeio, vou voltar pra cama”, o que está em jogo realmente? Certamente não é o estado de espírito do jogador, mas uma lógica interna que se satisfaz, atribui consequências arbitrariamente e não transmite nada a ninguém.

Será que é mesmo suficiente retratar? Será que nós vamos realmente elevar o patamar dos jogos, seja em seus temas, em sua forma, em seu alcance — em qualquer coisa afinal — fazendo jogos que não foram feitos para serem jogados, mas sim para apenas existirem e se auto-referenciarem? Retratos são mortos, no fim das contas, e dizem mais sobre o artista do que sobre quem foi retratado. Dizem menos ainda sobre quem aprecia a obra.

Os jogos que melhor tratam sobre compulsão e obsessão nunca serão aqueles que se mostram para o jogador como um retrato desses comportamentos, mas aqueles nos quais o jogador descobre a parcela de obsessão e compulsão que existe dentro de si — o jogador é o começo, o processo e o final de qualquer jogo e deve ser tratado como tal. Como uma pessoa, como alguém capaz não só de empatia, mas também de simbiose com o comportamento estudado. Quem nunca fechou os olhos e continuou vendo peças de Tetris caindo? Não estamos falando aqui de uma capacidade pedagógica dos jogos, é claro, mesmo porque isso seria pender para o mesmo e perigosíssimo lado da condescendência disfarçada de retrato que há em Rainy Day. Estamos falando aqui de compreender que a brincadeira e o jogo já são parte do nosso lado humano — não precisamos extrair nada dos jogos para torná-los mais sentimentais.

Se há algo que naturalmente nos causa emoção, esse algo é brincar. É o fator mínimo para que se estabeleça uma relação entre eu e aquele em cuja pele eu quero entrar. A empatia já é uma experiência lúdica e, por isso, ninguém precisa de Rainy Day.

-Pedro Marques Batista

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