NOT_VIDEO
NOT_VIDEO
Published in
8 min readApr 30, 2019

--

Estamos em Green Hill Zone e um senso de busca nos incita. Inicialmente, para o reconhecimento junto de Sonic, o Ouriço, do que está acontecendo naquele cenário. Porém, na medida em que nos deparamos com outros seres daquele local, atinamos que o que era uma busca meramente exploratória junto de Sonic é, em verdade, uma busca destinada ao próprio Sonic. Quero dizer, assim que nos damos conta de que Sonic representa uma ordem de ser que se distingue, embora nunca totalmente, não só das máquinas, mas também do que descobrimos sustentar nuclearmente essas máquinas, os animais, percebemos que ele se destaca das demais existências do entorno como alguém dotado de autonomia. Sendo o único capaz de estabelecer sua finalidade naquele cenário, mesmo que apenas no nível da construção da consciência conforme busca algo, descobrimos Sonic como incumbido de uma missão que de início parece ser heróica — resgatar os animais subjugados –, mas que se mostra mais profunda conforme construímos um sentido para os acontecimentos.

Ao que permite a ideia de uma missão “heróica” de Sonic é preciso opor uma consciência “vilanesca”, que engendra a subjugação dos animais e que se torna, após o reconhecimento, o buscado. Ao mesmo tempo, as máquinas “buscam” a Sonic, não por si, mas pela determinação externa da outra consciência, que as faz caçadoras de inimigos. Constitui-se um choque de intenções, onde os animais subjugados são determinados, em seu movimento no mundo, pela programação das máquinas que se utilizam de seus corpos para subsistirem. Com efeito, também os animais se distinguem na ordem das existências na natureza das máquinas, pois essa determinação externa lhes é forçada, e eles não obedecem unicamente às regras da mecânica — há algo nos animais da ordem da espontaneidade e que permite considerá-los como dotados de uma essência vital própria, não meramente mecânica. Trata-se de um fim interno, que obedece às leis da ordem dos seres animais, mais do que às leis da ordem da matéria, e esse fim lhes foi cerceado por uma instrumentalização externa. Desse modo, outra camada da missão de Sonic surge: faz sentido que Sonic reaja às máquinas não só porque lhe ameaçam fisicamente e subjugam os animais, mas também por se mostrarem instrumentos de desregulação da ordem natural.

É preciso pensar em Sonic como um ser capaz de se aperceber dessa irregularidade, representando para si o mundo como algo além do reino dos seres em que se situa, o qual se constitui justamente pela possibilidade de ter como parte de sua ordem de ser a capacidade de pensar a finalidade do todo. Assim, Sonic é animal, por ser um organismo vivo dotado de espontaneidade e certos fins naturais, como a auto-preservação e talvez a procriação, e é também máquina, por possuir um corpo que se submete a certas leis mecânicas, mas passa a ser mais essencialmente um tipo de ser que expressa uma consciência na e da natureza, por ser capaz de reconhecer finalidades, isto é, sentidos para suas ações e para as dinâmicas gerais do todo — é antropomorfizado.

No fim do terceiro ato do cenário, confirmamos o que já prefigurávamos: a instrumentalização do reino da vida tinha por origem outro ser dotado de capacidade de idealização de uma finalidade, Robotnik, a causa determinante esperada para o que, diferente do animal, não tem fim natural em si. Com efeito, o embate com ele se configura necessário não só pela ameaça que Sonic sente e que a nós é transmitida pela sonorização e pelo recurso ao imaginário das lutas contra os chefões que o próprio jogo “Sonic”, no passado, ajudou a definir, mas porque Sonic, como animal antropomorfizado, e não como um humano, expressa em sua própria figura a missão dada a ele pela natureza. E a esse simbolismo se acresce a distância com o natural que a dependência do aparato voador e a grande bola de fim destrutivo que o aparato ancora nos faz intuir, ao surgir Robotnik. Mas não creio que seja esse o único grande conflito que Sonic enfrenta em Green Hill Zone. Robotnik é um vilão reconhecidamente fácil de derrotar, no nível das batalhas, e a desordenação que ele instaura não é irreversível — pelo menos não no idílico cenário em que a jornada de Sonic tem início. Há um outro elemento da natureza, ainda mais passivo que as máquinas, que causa uma certa dissonância no ouriço sônico: os minerais. E é à parte do que constitui sua própria consciência, e não uma outra, que Sonic deve se opor.

A ordenação da natureza pode dar a ver uma certa harmonia que é identificada pela contemplação de sua dinâmica e pelo modo como sua finalidade total, a partir das finalidades diversas, se mostra — Sonic, para ser dotado da consciência dessa finalidade, precisa de uma capacidade de contemplação dessa harmonia que parece própria às faculdades figurativas da imaginação e da sensação. Enquanto a contemplação da harmonia gera um agrado subjetivo que podemos chamar de sentimento de belo, o conteúdo sensório gera um interesse corpóreo, que seduz pelo prazer imediato, e que pode gerar efeitos capazes de afetar fortemente a sua faculdade próxima, mais produtora do que receptora, que é a imaginação — e assim, podemos ver uma gênese da fantasia nesse movimento do êxtase, ou mesmo no terror, que quer se prolongar além do objeto sensório. A partir disso, é interessante pensar como os anéis de ouro que Sonic acumula no decorrer do reconhecimento e do descobrimento das camadas de sua missão, já no primeiro ato, devem gerar nele o mesmo aprazimento que em nós, quando vemos seu brilho e forma, ouvimos seus agradáveis barulhinhos metálicos, e somos levados a pensar numa recompensa decorrente do acúmulo — recompensa que de fato vem, na forma de uma vida extra, mas também na forma da fantasia, ao final do ato: eis que temos um anel gigante diante de nós, uma representação hiperbólica da atração que os anéis acumuladas geraram em Sonic. A fundição do ouro acumulado que se torna um portal capaz de nos engolir. Fazemos Sonic saltar ali, e vemos que essa entrega à atração hiperbólica nos leva a um terreno da fantasia: uma região que se projeta sobre a existência em forma de visões surreais. Nessa região, reencontramos a ignorância inicial: — algo se busca aqui? Nosso controle é bem menor, o cenário é mais dinâmico do que nós desta vez, e o que reconhecemos são aqueles mesmos anéis cujo efeito em nós e em Sonic (aqui não se distingue jogador e personagem) nos levou até ali, e que acabam por levar também ao movimento, apesar da insegurança. A partir de um momento, vêem-se os “Goals”, coisas que parecem ser armadilhas, com “STOP” inscrito em esferas que alternam suas cores entre vermelho e branco — “Há algo de mais interessante aqui, então…”, somos levados a pensar. E de fato há: lá está, no centro de tudo, protegida por gemas maiores, uma joia — que ao pegarmos, revela-se Esmeralda do Caos. É curioso que um objeto do reino mineral, a mais passivamente determinada de todas as ordens aparentes da natureza, guarde em si a possibilidade do desembocamento da atividade pura, na vontade eternamente atuante sem finalidade externa ou interna, que é o caos. Ora, mas não é análoga a isso a fantasia gerada pelo êxtase sensorial causado pelas interações com os anéis, mesmo que em menor medida? Considerando isso, aquilo que pareciam armadilhas se tornam passíveis de serem vistas como portas abertas pela razão para que Sonic pudesse se salvar desse estado patológico das faculdades e retomar sua finalidade autônoma que ao mesmo tempo é a finalidade que a natureza lhe dispôs para que a pudesse reconhecer e ser sua consciência.

Sonic enfrenta dois inimigos que representam o caos, externo e interno, e que em certa medida se interligam: um é Robotnik, que por uma finalidade própria busca dissipar as relações harmônicas e diversas entre os reinos naturais, subjugando tudo ao reino do mecânico a não ser a sua própria vontade. O vilão se utiliza de uma distorção dos âmbitos físico e orgânico da natureza, criando uma desarmonia que quebra a organização do todo bem disposto do mundo. Outro, diz respeito à relação que a consciência de Sonic estabelece com aquilo que lhe causa sensações de agrado, e que acaba por gerar nele uma certa desarmonia interna que leva a uma fantasia que se dirige ao caos mental como uma desregulação da consciência do próprio Sonic através de uma ganância extasiante — o que de certa forma é também um modo de uma determinada região de um todo mental subjugar as demais, quebrando a organização do todo equilibrado da consciência de Sonic e impedindo sua ação interna e externa.

Mas até onde é possível levar essa segunda parte da interpretação? Até onde o leitor aceitar que as Esmeraldas do Caos possam, de fato, ser consideradas como elementos de uma fantasia, e não como objetos concretos e mágicos no mundo do jogo. Com efeito, lá para frente, quando se possui já algumas, podemos começar a pensar que esse ímpeto fantasioso que busca o caos e luta contra os “Goals” da razão é de fato inofensivo para a poderosa mente de Sonic e ele deve desfrutar de pontuais escapes em sua jornada. Subverte-se todo o apontamento moral da coisa. Fica, então, o apelo para que alguém desenvolva uma interpretação renascentista do organismo em Sonic, The Hedgehog, já que ela possibilita que se pense a magia sem contradições, ao contrário dessa visão moderna biológica e idealista com a qual trabalhei.

Falando em contrapor a modernidade, não deixa de ser impressionante para mim que, vividas essas experiências, nosso Sonic vá parar em um cenário onde outro mineral é o centro, a Marble Zone, que nos remete à antiguidade. Porém uma análise deste cenário em relação com essa descoberta da luta subjetiva em torno da Esmeralda do Caos, da forma como gostaria de a realizar, não faz sentido agora que seus problemas lógicos já foram expostos — recorro, então, ao sentido sempre possível na poesia, particularmente nesta Pequena ode mineral, de João Cabral de Melo Neto:

Desordem na alma
que se atropela
sob esta carne
que transparece.

Desordem na alma
que de ti foge,
vaga fumaça
que se dispersa,
informe nuvem
que de ti cresce
e cuja face
nem reconheces.

Tua alma foge
como cabelos,
cunhas, humores,
palavras ditas

que não se sabe
onde se perdem
e impregnam a terra
com sua morte.

Tua alma escapa
como este corpo
solto no tempo
que nada impede.

Procura a ordem
que vês na pedra:
nada se gasta
mas permanece.

Essa presença
que reconheces
não se devora
tudo em que cresce.

Nem mesmo cresce
pois permanece
fora do tempo
que não a mede,

pesado sólido
que ao fluido vence,
que sempre ao fundo
das coisas desce.

Procura a ordem
desse silêncio
que imóvel fala:
silêncio puro.

De pura espécie,
voz de silêncio,
mais do que a ausência
que as vozes ferem.

-R.F

--

--