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13 min readOct 8, 2015

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Em 1996, eu era uma criança que tinha um MegaDrive e fazia aulas de natação em uma academia de bairro: um negócio ainda em fase inicial, pequeno, de família — os donos eram também os atendentes e faziam parte do time de professores. Aos sábados, minha aula acabava às 9h e se eu voltasse correndo para casa, conseguiria pegar Dragon Ball no SBT. Mas eu preferia esperar meu avô sair do trabalho e passar lá pelo meio-dia, daí voltávamos juntos.

A volta representava um bom tempo de qualidade entre nós, mas também havia algo aí: o filho dos donos era um garoto mais velho e deixava o “Super Nintendo” na academia, num corredor que servia de área comum, com janelas de vidro na parede, de onde as pessoas podiam assistir aos seus parentes e conhecidos nadarem nas raias. Meu avô sabia disso e gostava da ideia de eu poder usar o local pra jogar e da possibilidade de eu fazer amigos, então não é como se eu fosse uma criança oportunista.

Havia dois jogos que podiam estar plugados no console: Super Mario World ou Street Fighter II. Quando era o primeiro, aquele era um sábado feliz no qual eu passava algumas horas jogando na segunda memória, que já estava com o jogo terminado. Em alguns meses, eu joguei todas as fases desse jeito, seguindo a sequência — mesmo todas já estando abertas, só entrava na próxima quando passava pela anterior. A única parte que eu perdi da experiência foram os estágios de ativar blocos e essas coisas que já estavam feitas. No mais, isso não impactou negativamente de nenhuma maneira memorável a minha vida.

Mas havia sábados diferentes: os dias em que o dono do videogame estava lá com os amigos, também mais velhos. Eles jogavam “a sério” (na medida em que um jovem dos anos 90 não-ligado à área nem interessado em game design jogava videogames seriamente,) e eu não ousava me intrometer; portanto nesses dias eu sacava um caderno de desenho que tinha na mochila e passava essas horas rabiscando, normalmente as fases que eu me lembrava de World, ou os personagens do Street Fighter com os quais eles se degladiavam. Mas às vezes eu cansava disso e reproduzia as vigas do teto, o bebedouro ou — e principalmente — a piscina. Sendo mais específico, eu desenhava a água da piscina. Melhor dizendo, eu tentava desenhar certo aspecto daquela água.

Desde essa época eu criei uma paixão, até hoje secreta, pela luz refletida nas ondulações da superfície e do fundo da água. O problema é que era um desenho complexo demais para mim: uma paleta de cores resumida, linhas orgânicas e, o que mais me frustrava, era um assunto em movimento. Eu via aquilo como uma enorme teia de aranha branca de espessura variável se formando e disformando a todo segundo sobre a piscina e, mesmo que conseguisse desenhar um “frame” daquilo, não era o suficiente para que eu olhasse o papel e achasse aquilo bom o bastante. Como dizem os jovens de hoje, não parecia uma conquista desbloqueada.

Daí em diante, eu passei a prestar atenção especial a isso sempre que topava com superfícies de água no mundo real ou representadas em pinturas, ilustrações ou desenhos animados. Eu lembro que A Pequena Sereia da Disney tinha um efeito muito incrível desse reflexo e lembro da minha mãe me explicando que aquilo era “feito em computador” e que, um dia quando eu fosse mais velho, eu poderia aprender a fazer. Em parte, isso era para eu não desanimar; em parte era verdade mesmo.

Também lembro de quando a TV Manchete começou a passar a saga Poseidon d’Os Cavaleiros do Zodíaco. Tinha um efeito bem preguiçosinho do reflexo da superfície vista do fundo do mar, mas quando mostrava a Saori orando, apareciam uns grafismos na tela que eram exatamente o que eu queria conseguir.

Ao longo dos anos seguintes, conforme eu evoluía ou aprendia novas técnicas de desenho, ou me via com um novo material na mão, essa continuou sendo uma das primeiras coisas que eu tentava reproduzir. Acho que, em algum ponto, eu consegui um resultado que me fez satisfeito, porque quando eu cheguei lá pelos meus 12, 13 anos eu já não tinha essa obsessão latente e nem me lembrava mais de todas as horas gastas nesses exercícios.

É fácil contar a minha idade porque nasci em ano múltiplo de 10. Então em 2003 eu tinha 13 anos e um empreguinho qualquer que em um ano me permitiu comprar um Nintendo GameCube. Leitor fiel da Nintendo World, lembro até hoje do review que dizia àqueles que só podiam comprar um jogo do cubo em 2002 pensassem seriamente em Super Mario Sunshine, por diversos motivos: bom gameplay, muitas coisas a se fazer, visual que parecia uma pintura digital (“com sombras em roxo, por ser a cor complementar do amarelo”, dizia o review) e porque tinha gráficos de água mais bonitos que Wave Race: Blue Storm.

Nenhum dos motivos listados era: porque Super Mario Sunshine vai ajudar você a entender como projetar videogames é mais uma forma de desenho e isso vai finalmente te fazer seguir pelo caminho que parecia tão misterioso e tentador quando você era criança. Óbvio que o review não dizia isso. Essa não é função do jogo, nem dos jogos, nem dos reviews. Mas mesmo assim, a NW me convenceu a ter Sunshine como um dos meus primeiros jogos do GC, junto a Zelda The Wind Waker. E aí isso que eu falei no começo do parágrafo aconteceu meio que naturalmente enquanto eu jogava.

Na medida em que sentar na frente de uma tela e ficar apertando botões é algo natural.

Mas o “naturalmente” foi porque, sem eu estar conscientemente buscando por isso quando joguei Sunshine, ele me mostrou duas coisas que foram bem importantes para a minha vida no sentido que eu descrevi.

Vou chegar lá.

Eventualmente, a gente topa na internet com trechos de entrevistas com o Miyamoto explicando um processo de criação recorrente na série Mario. Algo como, Primeiro defino o conceito geral do que eu pretendo com aquele jogo (hoje em dia a literatura chama isso de high-concept), depois a ideia do gameplay que possa atingir esse objetivo; depois um contexto e as mecânicas desse gameplay e por último eu escolho qual vai ser o personagem e a ambientação.

Em 2013, eu ainda não tinha lido nenhuma entrevista dessas nem qualquer livro sobre game design. Mas Super Mario Sunshine me apresentou, sem eu estar buscando por isso, o infográfico perfeito desse processo de criação. Eu já havia jogado os três jogos debutantes de GCN numa locadora local que fazia uns serviços meio de lan house com consoles. Esses jogos eram Wave Race, Monkey Ball e Luigi’s Mansion, cada um trazendo seu high-concept e seu gameplay com gimmicks que evidenciava o salto técnico que o 128-bit dera desde o Nintendo 64. Eu não dizia isso dessa forma na época, mas era algo como “Luigi’s é incrível por causa da transparência e feixes de luz projetando sombras; Monkey Ball é da hora a inércia das bolinhas transparentes rolando fluídas, velozes e furiosas; Wave Race tem cenários bonitos que nem na vida real.”

E então lá estava eu, com Super Sunshine em mãos, que é o Mario no qual tudo funciona à base de água.

Tem até um Mario de água.

Eu consigo imaginar o time da Nintendo orgulhoso de como ficou a água em Wave Race Blue Storm; era realmente algo que escancarava o quão poderoso era o novo console. A água estava no ambiente, era o cenário e também a pista de corrida. Então a ideia inicial, o conceito principal ao qual acredito Super Mario Sunshine seguiu, deve ter sido algo como “vamos fazer um jogo no qual deve-se utilizar água para realizar TODA a exploração e puzzles”.

Daí começaram a desenhar as mecânicas do gameplay: uma substância viscosa espalhada pelo mapa, a qual o jogador deve limpar usando água com algo que funcionasse como mangueira; um motor de água que funciona como jet-ski e outro que é um jetpack de água; engrenagens que são ativadas utilizando água como força motriz. Água, água, água.

Por fim, a ambientação: uma ilha tropical, porque aí teria o famoso líquido incolor, inodoro e insubstituível por todos os lados. E o tema, as férias de verão do Mario porque ele é o mascote da empresa, porque a franquia permite contextos versáteis e porque o novo videogame da Nintendo precisa ter Mario cedo ou tarde. Daí coloca-se nas costas do encanador um equipamento que utiliza água para servir de mangueira, motor ou jetpack.

Basicamente, Super Mario Sunshine é isso.

(Tem também umas lulas que você cavalga na água e até o Yoshi foi adaptado à mecânica aquática — ele come umas frutinhas e cospe um suco colorido que corrói certos objetos das mesmas cores. Mas deu que nosso amigo é mais um fanservice do que um powerup como era em Super Mario World e voltou a ser, anos depois, em Galaxy; porque você acaba por se pegar amaldiçoando as missões que te fazem usar o pequeno.)

Daí vem algo que me admirou na época e ainda é um prazer notar hoje em dia, porque para mim é a grande sacada do jogo, só para usar mais termos da publicidade: O HUB é uma cidade turística pela qual se tem acesso aos diversos mundos. E esses mundos parecem estar realmente ali na ilha, digo, você consegue parar nos limites da Delfino Plaza e avistar ao longe os PNGs desfocados representando os cenários — como acontecia com as ilhas de Wind Waker na mesma época, quando ainda estávamos longe, ou como quando subimos na torre de Undead Burg em Dark Souls e já conseguimos ver male-male a entrada de Undead Parish com o dragão em baixa resolução na frente.

Isso para mim representou realmente um salto daquela geração anterior de jogos tridimensionais. O HUB de Super Mario 64 era o interior do castelo. Apresentava tamanho considerável e um mapa coerente na medida do possível. Mas o acesso aos mundos do jogo era mágico, pulando dentro das pinturas que (analisando cientificamente) nos transportavam para os mundos originais nelas representados ou que (metafisicamente) continham em si mesmas esses mundos aprisionados. Ou então (tão metafisicamente que estou quase escrevendo uma poesia para explicar) aquele jogo é sobre a elevação espiritual do encanador conforme aprecia a arte nas pinturas e experimenta sinestesias que o fazem sentir-se pertencente aos cenários ali representados.

(As estrelas seriam as camadas de apreciação artística)

Já em Sunshine, não há desculpa da ficção ou da metafísica para a conexão entre os mundos. Eles realmente (não realmente, mas o funcionamento do jogo nos faz acreditar que sim) estão lá, alocados ao longo da Delfino Island. E a praça central, mesmo não sendo o que na época era Liberty City, dá a sensação de um local real e vivo, com seus habitantes atrás das tendas de frutas ou andando sem ambição do ponto A para o B somente para voltar ao A e voltar ao B, num loop infinito. Mas ainda assim, pareciam cidadãos.

O jogo não simula uma cidade. Não. A sensação não é a de se estar em uma cidade do nosso mundo real na qual, por acaso, está se passando um jogo, como nos atuais jogos de mundos abertos ou na cidade central de Zelda Twilight Princess (Phantom Pain é exceção a essa e a todas as regras); a sensação em Sunshine era ainda a de se estar num jogo que cria, pelas suas próprias regras e lógica de videogame, um ambiente que desperta a ideia de uma cidade em nós pela capacidade inerente ao ser humano de decodificar signos e complementar formas.

O tamanho da Delfino Plaza talvez seja até MENOR do que a extensão do casarão em Luigi’s Mansion, se colocarmos todas as salas lado a lado dentro de um quadrado e em um só andar. Ainda assim, paredes e portas — que também existiam no castelo da Peach — não existem nesse ambiente, o que nos permite pular sobre um telhado e avistar prontamente toda a cidade. Isso, mais a possibilidade de podermos chegar mesmo até qualquer ponto pelas ruas ou telhados, sem corredores que disfarcem loading times, é o que torna o cenário realista de um jeito meio alternativo de se construir realismo — nesse caso, foi o jeito certo.

Isso não justifica, mas amarra bem, por dentro e por fora, função e forma, o fato de o jogo ser temático em vez de uma evolução gráfica completa de tudo que há em Super Mario 64. Não que essa tenha sempre sido a ideia dos criadores. Talvez a falta de tempo de produção tenha forçado o projeto a seguir um caminho limitado, com mundos sempre à beira mar e texturas de grama, areia e água, muita água, em vez de uma paleta de cenários que vai do campo ao deserto e à neve e à lava — no caso há lava no vulcão, afinal é uma ilha tropical.

Afinal, se em Wind Waker foi considerado coerente colocar uma “fase de neve” que é uma ilha de dez metros quadrados coberta de gelo, eles conseguiriam arranjar um jeito de colocar algo assim em Mario, se essa fosse uma vontade importante. Pode ser que a Nintendo estivesse numa fase meio sul-ocidental e tenha decidido definir com esse jogo essa ambientação latina de Mario, que teve seu grande ápice na fanfarra de comemoração de Mario Kart Wii.

Seja por que tenha sido — nesse caso e nesse texto isso não importa –, o jogo funciona, é interessante e divertido sendo assim e é tudo isso também por ser assim. Nos anos 90, Super Mario 64 trouxe aquela nova forma de interação entre jogador e ambiente do jogo por ser tridimensional, que Ocarina of Time depois turbinou, criando um mapa plano, em escala real que cruzamos com o boneco enquanto percebemos a mudança de vegetação. Sunshine cruza essas duas fórmulas, tendo seu mundo central e os adjacentes grandes como um Hyrule Field, subdividindo-se em regiões que maquiam a sensação de se estar dentro de um cubo cheio de polígonos empilhados.

É claro que você ainda está dentro de um cubo cheio de polígonos e às vezes vai perceber isso, assim como uma pintura de um cachimbo não é um cachimbo de verdade e você eventualmente percebe isso. Mas Sunshine conseguiu, na sua época e com o que tinha disponível, trazer aquela mesma sensação de “opa, mas isso aqui é um mundo vivo mesmo” que Super Metroid, Earthbound, Super Mario 64, Ocarina of Time, Metal Gear Solid e Grand Theft Auto III já haviam trazido, cada um a seu tempo e dentro de suas propostas.

Não justificando, mas amarrando as coisas com aquela ladainha sobre minhas aulas de natação no começo do texto, foi essa vaga ideia de uma coerência geográfica que despertou em mim a lembrança da vontade de recriar caráteres do mundo real nos meus desenhos. Eu percebi que o que eu queria com aqueles exercícios infantis era entender e reproduzir, de outro jeito, o mundo, para que eu mesmo depois ou outra pessoa pudesse, apenas pela folha com o desenho, experimentar algo que remetesse à experiência original de contemplação da piscina. A dificuldade então era representar o movimento, porque ilustrações são estáticas mesmo, faz parte da linguagem. Já a animação era uma linguagem mais complexa e, consequentemente, permitia uma representação mais fiel da natureza viva, que era o que me admirava nos efeitos d’A Pequena Sereia e Saint Seiya.

Assim foi que Super Mario Sunshine, com seu mundo coerente e sua água realista abriu na minha mente um espaço no qual jogos começaram a se encaixar como ferramentas ainda mais competente nesse sentido: por serem conjuntos de regras, mecânicas e comportamentos contidos num ambiente virtual, eles possibilitam criar mundos com os quais as pessoas podem interagir. É um apelo maior aos sentidos, porque nesse jogo, por exemplo, você não apenas vê uma pintura da água, como também percebe o empuxo no ato de mergulhar, afundar e ser tragado de volta à superfície; você percebe a consistência do líquido ao esguichá-lo numa parede suja de piche e contemplar a mistura escorrendo até o chão; você sente a força da corrente ao utilizar o jetpack para impulsionar os pulos.

Uma cena que eu sempre me lembro e conto com empolgação quando o assunto é água acontece em Pianta Village (que é facilmente meu mundo menos preferido de todos mas, mesmo assim), estando a ilha toda suja de uma gosma de fogo, que você pode limpar com água — mas você vai para a missão sem o equipamento e deve chegar até ele. O que eu fazia em certas partes, quando caía das plataformas altas, era mergulhar em uma jacuzzi ou em poças d’água, sair e, enquanto a água respingava do Mario, usava essas gotas para abrir caminho na gosma. Isso é muito legal porque a água que pinga do boneco não é uma animação só do boneco, para dar a impressão que ele está molhado — ele realmente está molhado, e a água que escorre se comporta como a água que você usa o jogo todo. De novo, pela mecânica do jogo, você percebe a água como sendo água mesmo, realista não apenas pelos gráficos bonitos, mas pelo seu funcionamento.

“WATER”

Na sequência, Wind Waker finalmente trouxe uma água que parecia mais com a ilustração que eu queria ter feito naquelas manhãs de sábado. Sobre esse jogo, tenho também considerações similares a Sunshine acerca da construção do mundo, pois embora sua dinâmica seja diferente, seu pseudo mundo aberto e a direção de arte também são capazes de nos fazer sentir pertencentes àquele simulacro de mundo — e Wind Waker me ensinou na prática e na época a beleza do que, anos mais tarde, eu descobri serem características do impressionismo e do realismo na pintura.

Curioso que apesar de, na minha memória, o despertar da consciência desse poder dos games (orra) esteja ligado a Sunshine e parcialmente a Wind Waker, a conclusão do pensamento me faça pensar em Mario 64. Essa ideia que originalmente era para ser uma piada, do boneco “entrar” nos quadros e viver experiências oníricas nos mundos das pinturas parece muito com o ato de se explorar um mundo virtual e, pela forma como cada jogo constrói sua imersão, vivenciar experiências como jogador que durante aqueles momentos são reais na percepção.

Como sempre penso no futuro de quem lê, fica a ideia para uma releitura de Super Mario 64 no qual os mundos são acessados não pelas pinturas, mas por máquinas árcade contendo jogos específicos sobre cada mundo. Ou ficaria, se The Beginner’s Guide já não existisse.

Espera, que eu coloquei pinturas e jogos num mesmo nível hierárquico de função estética.

Calma. Volta. Esquece esse texto.

- Caio Oricchio

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