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5 min readSep 13, 2017

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No quintal da segunda casa que sempre tive, um lugar que sempre teve cheiro de jambo misturado com sabão em pó, tinha uma cachorra. Lassie era pequena, preta e sempre ficava nesse quintal na casa dos meus avós colocando apenas a cabeça para dentro da grade da cozinha, já que o buraco era pequeno demais para ela passar. Eu não tenho uma memória antes dela existir, mas tenho de quando ela parou de existir. Lembro que ela havia tido pequenos ataques cardíacos nas semanas anteriores; lembro que foi a primeira vez em que vi meu irmão chorar na vida; lembro como ficou a casa sem ela estar lá.

The Last Guardian começa com uma criança, mas é narrado por um adulto. É sobre um homem que tem memórias de infância com um bicho.

É curioso como memórias funcionam.

De uma maneira bem funcional: é algo que acontece e o seu cérebro decide que aquilo é relevante o suficiente para ser guardado. É uma forma imensamente simples e frágil, mas não somos mais do que elas são. Não somos mais do que as nossas memórias criadas por experiências, que se tornam elas próprias novas experiências quando nos ajoelhamos, reorganizamos, reanalisamos e reconsideramos o que cada uma realmente representa para nós. Essas são as mesmas memórias que nos fazem acordar todos os dias sabendo quem somos, do que gostamos e do que não gostamos. É nelas que reside o sustentáculo do subjetivo. São milagres que acontecem o tempo todo e nos modificam o tempo todo. Um passo além do ajoelhamento seguido de escavação pessoal de cada um de nós sobre nossas próprias memórias está a interação com memórias alheias. Coisas que surgem num diálogo ou na leitura de um livro. Quando interagimos com memórias de outros buscamos também nas nossas paralelos e associações. Um espaço de contato que pode abraçar tanto o real quanto o fictício.

The Last Guardian venera a beleza dos animais. Por isso, inclusive, ele começa te relembrando da existência deles nos primeiros momentos do jogo mostrando desenhos e depois caminha, aos poucos, para desenhos de animais míticos. Ele quer mostrar que a experiência que você está para ter não será boa apenas porque o Trico é um bicho que não existe, mas porque ele é um bicho. Quando vocês dois estão no poço e o garoto começa a tentar se comunicar com o ele, o jogo mostra que ele precisa de você. Você precisa remover as lanças do corpo dele, procurar comida e, se quiser, fazer carinho também. Você ganha a confiança dele aos poucos e ele também ganha a nossa e vai aprendendo conosco; nos imitando; reconhecendo quando chamamos e quando damos comandos e a relação toda se forma por meio disso. Mesmo assim, ainda terão momentos em que você grita e aponta, e talvez ele não consiga nem entender o que você está querendo, então ele te olha estático como se esperasse algo a mais de você. Isso é imensamente familiar. Tão familiar quanto ver o Trico enfiando apenas a cabeça por um buraco que é pequeno demais para ele passar.

Memórias, né?

A relação com o Trico é algo que não pode ser sentida na observação. Não adianta ver alguém jogar para tentar entender, do mesmo jeito que ver todos os dias pela janela o seu vizinho sair para passear com o cachorro não te faz sentir como é ter um cachorro. Existem alguns vitrais de olhos pendurados por todos os lados e ele morre de medo deles. Não é um medo que nós conseguimos entender, já que os vitrais não são repugnantes ou sequer fazem algum mal. Eles só estão lá parados, são combinações de cores e reflexos e isso assusta o Trico de um jeito que o deixa paralisado. Você não entende os motivos do medo dele, mas entende que ele tem medo e isso é mais do que o suficiente para você querer destruir aquilo para que ele fique melhor, como quando tem relâmpagos durante uma noite chuvosa e você acode a sua cachorra que tem medo deles. Não há porque culpar o Trico pelo seu medo dos olhos ou pelos momentos em que ele não entende o que você quer que ele faça. Assim como os bichos, ele é uma beleza mágica que nós aprendemos a tratar como natural por estar diretamente ligada à nossa experiência no mundo. É um milagre por si só, assim como outros bichos também são. Assim como a Noah também é agora por trazer felicidade de novo para aquele quintal, simplesmente por existir nele.

The Last Guardian começa com uma criança, mas é narrado por um adulto. É sobre um homem que tem memórias de infância com um bicho; é feito por um homem que tem memórias de infância com bichos. Memórias que, por mais que eu tente transmitir por meio desse texto ou por um vídeo, nunca serão o equivalente a ter vivido. Talvez então seja inútil tentar falar delas; talvez seja inútil tentar descrever o que acontece em certos momentos. “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”, não é? Não sei. Talvez o que eu queira aqui é que essa transfusão de memórias toda que ocorreu ao entrar em contato com The Last Guardian também continue existindo por meio desse texto — espero que sim. O homem contando essa história ainda lembra muito bem de como foram todos os momentos com o Trico (estamos vivendo essas memórias, afinal). Eu também ainda lembro muito bem dos meus. Ele pode até deixar de existir quando eu desligo o videogame, mas ainda continua vivo em outro lugar. Talvez por isso, às vezes quando a minha cachorra me olha estática por alguns instantes, eu consiga ver um pouco do Trico nela também.

-Fellipe Anderson Mendes

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