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5 min readDec 22, 2015

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Eu já disse algumas vezes em textos meus como eu gosto de lembrar da época quando eu jogava o primeiro Monkey Island. A sensação de não saber nem a língua base para entender o que estava rolando ali e ter que imaginar as situações e resoluções de cada uma daquelas coisas era simplesmente mágico. Você dava um peixe, muito custosamente adquirido, para um monstro em uma ponte e ele deixava você passar, revelando ser um cara vestido de monstro. Minha cabeça ia a mil, para mim videogames não tinham limites.

Uma passagem, entretanto, que nunca contei, mas me recordei recentemente, é que quando eu tinha uns cinco anos meu pai tinha um Atari. Todos nós jogávamos, mas minha mãe sempre gostava de embelezar a verdade (defeito que ela leva até hoje), e um dia me disse que ela tinha chegado numa tela do arco-íris no jogo da Florestinha, comumente conhecido como Pitfall entre os mais técnicos. Ela me disse que você escorregava pelo arco-íris e chegava a um pote de ouro.

É claro que ela tinha pegado a ideia de uma das ilustrações do cartucho do Pitfall, mas eu quando criança não tinha dúvidas que aquilo era verdade. O jogo tinha jacarés, dava pra pular na cabeça deles, tinha cipó, dinheirinho, barra de ouro, um bicho demoníaco que ficava na parte de baixo (que nem a pau era um escorpião), uns rolos compressores. Porra, tinha tudo naquele jogo, como não tinha um arco-íris escorregador?

Por muitos anos eu continuei acreditando nessa lenda e em muitas outras que me contavam e que eu mesmo inventava, por que não. Dava pra você levar ácido (sem saber na época que era Grog) até a cadeia de Monkey Island passando ele de uma caneca pra outra, por que não daria pra colocar água na caneca e fazer as flores esquisitas da floresta crescer? Certeza que dava, eu só não sabia como — ou ao menos era assim na minha cabeça.

Outro jogo que me veio à cabeça recentemente foi Beetlejuice do NES. Eu não entendia na época por que tinha um nome tão diferente, mas eu sabia que era do filme “Os Fantasmas Se Divertem”, um dos meus favoritos quando pequeno. Esse era o meu primeiro jogo baseado em um produto licenciado e, tendo visto o filme infinitas vezes, não fazia nenhum sentido. Nada daquilo acontecia no filme, mas aqui e ali eu via algumas coisas que se encaixavam. Tinha um cara com cabeça minúscula e corpão vendendo itens. Poxa, então com certeza devia ter a cena do “Calili Banana” como eu chamava na época. Eram tempos que eu acreditava que se eu não havia visto, não era indício de que não existia, mas que eu não achei ainda.

O tempo passa para todos nós, a gente vai ficando velho, aprende inglês, joga vários outros adventures, se mete com uma dezena de jogos lixos que são baseados em filmes ou desenhos, e acaba aprendendo as regras não ditas por trás de um jogo. Lá pela Triforce no Ocarina of Time eu ainda acreditava um pouquinho, mas depois disso se não acharam é por que não existe mesmo. Não adianta de nada a minha imaginação lutar contra.

Quando surgiu Undertale eu já sabia das regras e já não acreditava mais. Comecei o jogo já com um foco em mente: eu quero fechar esse jogo sem matar ninguém. Era o que a molecada estava falando que era da hora fazer, e eu como estou velho demais pra nadar contra a maré comecei fazendo. Chegando na batalha contra a Toriel me bateu a primeira dúvida: eu tentava fazer de tudo pra escapar da luta mas nada dava certo. Pensei que não tinha jeito e acabei matando ela.

Antes de ela morrer, apareceu uma frase diferente. Após tantos anos sendo moldado por mentiras e descrença nos jogos digitais, acabei tendo a certeza que aquela era a frase onde eu poderia salvá-la. Dei load no Save, fiz a luta novamente e, realmente, ali havia uma opção de salvar a carismática vaquinha.

Como vocês devem saber, essa sequência de eventos leva ao aparecimento do Flowey, te chamando de malandro na cara dura e falando que sabe muito bem o que você fez. Porra, eu sou programador, sei que não é tão difícil fazer isso, mas dizer que eu ESPERAVA isso é bem diferente. Você passa anos salvando um jogo e dando load ao seu bel prazer, e de repente é apresentado a um personagem que sabe que você trapaceou? Naquele exato momento eu me senti na locadora de videogames com seis anos de idade descobrindo coisas e acreditando que infinitas outras eram possíveis.

Undertale é cheio de momentos exatamente assim. Alguns deles mais impactantes, outros mais amenos, mas o criador realmente parece buscar, acima de tudo, te surpreender com as escolhas que você pode tomar dentro daquele universo. Essa formula básica de fazer o jogador acreditar e se assustar com a presença de coisas que na verdade são tão comuns é o que brilha no jogo.

Hoje o mundo é muito pior do que quando eu finalmente deixei de acreditar que tudo podia acontecer nos jogos. Hoje todo mundo é artista, todo mundo é game designer e crítico. Me corta o coração ver a galera tentando diminuir o jogo por um motivo ou outro, ou engrandecê-lo como o melhor jogo de todos os tempos. Nenhum desses jogos que eu citei da minha infância faz parte do rol de Grandes Jogos da Ludoturgia Internacional, mas eles foram importantes para mim. Todos eles me fizeram ver as coisas sobre outras perspectivas, e não saber o que esperar à frente. Undertale conseguir fazer o mesmo, para mim, é um mérito muito maior do que ser nomeado o melhor, e não é a rede social que o apoia que me vai fazer gostar menos dele.

É importante também ver como nós acabamos acostumando a estragar as coisas para nós mesmos. O jogo é praticamente comercializado como sendo um jogo onde você pode fechar sem matar ninguém. Pois os jogos precisam ter um ponto especial para ganharem a atenção das pessoas, ninguém mais consegue simplesmente ganhar atenção dizendo “joga aí, vai por mim”. Imagina como não seria a experiência pura de alguém jogando esse título sem nem imaginar do que se trata? Imagina como não seria eu jogando isso quando criança, sem nem saber falar inglês?

Você consegue virar amigo de todos os chefes, conhecer o quarto de um deles e jantar com outro. Dá pra convencer uma aranha a não te matar, e mudar completamente a ideia do chefão final. Você conversa abertamente com o vilão verdadeiro sobre como melhorar o final do jogo. Dá pra matar tanto bicho que os bichos param de aparecer por que você matou todos. Hoje em dia a internet matou muito da emoção do descobrir e do mistério do desconhecido, mas esse poderia ser o Monkey Island de muita criança por aí.

Diz que tem um fantasma que aparece numa sala de número errado chamado W.D. Gaster. Juro que tem.

-Samuel Hynx

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