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9 min readJul 11, 2016

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Perguntaram pro rapaz polonês, cujo jogo estava concorrendo ao prêmio de Melhor Jogo do festival, que jogos ele considerava os melhores de todos os tempos. Os outros concorrentes estavam na mesma mesa e falaram de jogos como Chrono Trigger, Monument Valley, Ziggurat e Overwatch, sempre em um tom meio descontraído, meio envergonhado — os caras não queriam ali se esfaquear em público, gritando que a Bloody Tears de Dracula X Chronicles é a melhor Bloody Tears ou que Sonic nenhum presta, então se limitaram a falar jogos favoritos de um jeito mais íntimo ou jogos que estavam jogando bastante no momento.

(Pode ser, como pode não ser, que eles não citaram nenhum desses jogos e eu estou só projetando minhas opiniões neles. O mesmo serve pras coisas que eles não disseram e que diriam se estivessem gritando ensandecidos, coisa que, aliás, eu gostaria muito de ter visto)

Mas a resposta do rapaz polonês foi bem diferente. Chegou na vez dele, ele começou a falar que não conseguia eleger um ranking desse jeito porque não era nem assim que ele via videogames. O que mais deixava ele animado não era jogar um jogo excelente, mas pegar um daqueles CDs que vinham com revistas e que tinham algum múltiplo de Uma Traulitada de jogos shareware para Windows, abrir um ao acaso e não ter a menor ideia do que aquele jogo se tratava, descobrindo como ele funciona. Mesmo que o jogo não fosse bom. Especialmente se não fosse bom. Aí ele citou um jogo que tem um lugar especial no coração dele, jogo esse cujo nome eu não vou lembrar, e voltou a falar que não conseguiria fazer um ranking.

O jogo desse moço se chama SUPERHOT. É um jogo de tiro em primeira pessoa no qual o tempo só se move quando você se move — basicamente um simulador de Akemi Homura, exceto que os inimigos, em vez de bruxas coloridas, são modelos simples feitos de rubi (são cristais vermelhos. São rubis) e as salas são todas brancas. SUPERHOT parece um jogo shareware, mas ESPERE!!! Eu não digo isso na maldade. Muito longe disso. Ocorre que muitos jogos desses que vinham em CDs de 500, 1000, 2000 jogos eram um conceito que se estendia por várias fases e esse conceito carregava completamente o jogo: todo o visual, som e mesmo as próprias mecânicas eram simplificados para enaltecer alguma coisa maior por trás, na esperança de que ver o desenrolar dessa coisa maior vendesse o jogo, instigasse o jogador.

Eu lembro que o saudosíssimo 600 Jogos para Windows azul tinha um jogo chamado Bad Toys 3D. Era um jogo quase igual Doom, mas você matava brinquedos maus. E era isso: tinha brinquedos maus e era 3D. Nenhuma explicação é dada ou mesmo pedida por você, porque não tem o que explicar. É como se aquele protetor de tela de labirinto 3D do Windows que você achava que jogava com 5 anos de idade, muito como achava que ia conseguir publicar sua página feita no Microsoft Publisher usando o discador Ibest (até descobrir que na verdade ia ter que usar o hpg ou o kit.net), fosse realmente jogável. E SUPERHOT é exatamente assim — um conceito de jogo revestido de jogo. Eu ficava vendo o pessoal jogar no evento e todo mundo morria, porque todo mundo era ruim e ninguém ali assistiu Madoka, e resetava pro próximo. Sem cerimônia alguma, o jogo recomeçava.

Não sei na Polônia, mas aqui jogos assim eram um troço muito frustrante. Porque você queria ver mais, queria ver até onde o conceito ia, mas ou você não tinha internet em casa ou não conseguiria jamais enviar a importância de 5 dólares por carta registrada pro exterior (porque seus pais jamais deixariam, mesmo que você tivesse 5 dólares, você usar a conta de banco deles pra realizar transações financeiras com estranhos pela internet!!! Como também não deixavam você pegar nada do frigobar do hotel nem tomar água gelada no restaurante. Todas essas restrições soam idiotas hoje em dia) pra receber o jogo sabe-se lá também quando. Aí todos esses jogos e conceitos viravam uma grande frustração: você pode fazer 35 a 0 no primeiro quarto do Bulls x Jazz no NBA Live 98 Demo, mas nunca vai ganhar o campeonato.

Nesse contexto, fazer mais de 35 a 0 é que se torna o jogo — você quer trabalhar aquele conceito até a última gota possível dentro dos limites que uma demo ou uma versão shareware pode oferecer. Você quer pegar aquele jogo completo-porém-incompleto na sua frente e fazer dele seu parque de diversões, mesmo que isso não esteja previsto no jogo final. SUPERHOT, por exemplo. Se estivéssemos em 2000, mais ou menos, e eu tivesse SUPERHOT em um CD de 7 bilhões de jogos, eu em algum momento ia tentar jogá-lo “em tempo real”, quer dizer, correndo o tempo todo. Não é a ideia, mas e daí? Versões menores de um jogo ou provas de conceito têm esse particular: a angústia de o jogo não se completar dá lugar à angústia de fazer o próprio jogo dentro daquele pedaço.

Eu já tinha jogado Winged Warrior II Shareware naquele mesmo 600 Jogos para Windows azul e gostava demais do jogo. Você é um boneco que tem um canhão em um braço e carrega uma espada no outro, quer dizer, você é uma mistura de X e Zero e tem que lutar contra aliens que estão fazendo sei lá o quê, sei lá onde. A introdução dele tem uns baús de dinheiro e uns arqueiros que pagam muito pau pra você, como arqueiros sempre fazem porque arqueiros nunca fazem nada em jogo nenhum, te mostrando o caminho até o rei. O rei fala “derrota os aliens lá, serião” e você embarca em uma jornada pro Planeta Vermelho, onde outros aliens pagam pau pra você e falam que tem ainda outros aliens, que não pagam tanto pau assim pra você (mas pagam sim), fazendo não sei o quê não sei o que lá e que é pra fazer a rapa. Quando você explode uma base cheia de barracas, a versão shareware do jogo termina e você é convidado a comprar o jogo.

(Não tenho ideia do que acontece no primeiro Winged Warrior, mas só se foi muito insano pra literalmente todo mundo do universo visível pagar pau pro cara incondicionalmente)

Eu queria demais comprar o jogo, mas isso era um sonho distante e por isso eu alimentei a esperança de que se eu fizesse alguma coisa meio diferente, tipo, sei lá, matar todos os bichos ou acertar a senha do cara que pede a senha de primeira, eu ia destravar a versão completa do jogo. Não alimentava com muito afinco, na verdade, mesmo porque não tinha muito comportamento pra mudar no jogo — nada que não seja o próprio Winged Warrior se mexe e os monstros nunca dão respawn, então o jogo tem uma quantidade fixa de experiência que você pode ganhar e dinheiro que você pode acumular. Então minhas investidas de tornar o jogo algo meu meio que pararam por aí.

Em outro CD, o Más de 2.000 Juegos da Data Becker, eu achei o Winged Warrior III Shareware. Eu fiquei o próprio fã de Girls’ Generation esperando o comeback à meia-noite do dia 1º de Janeiro (isso se repetiu muitos anos depois, mas, ao contrário de I Got a Boy, Winged Warrior III não foi a maior decepção da minha vida) e fui lá jogar. Winged Warrior III segue bem o mesmo esquema e inclusive se passa no mesmo planeta, mas tem duas coisas importantes:

  • Tem uma área de treino com aliens que dão respawn quando você pede pro maluco que é o dono da sala de treino pra dar respawn nos aliens
  • A versão shareware termina com uma luta contra o Nova Knight, que tem 40000 de vida. O chefão antes dele, um caranguejo que já é difícil pra cacete, tem 3000.

Claro que não é pra você ganhar do Nova Knight. É pra você perder dele, falar OLOOOOOOOOOOOOOOOOOCO, ver a demo acabar e querer muito ver o que acontece depois e tal, até porque o cara te promete uma luta quando você estiver mais forte. Como se ele quisesse ser derrotado por você, mas INFELIZMENTE certas pessoas não colaboram. Se estivéssemos em Winged Warrior II, você não teria muita escolha. Era comprar o jogo e é isso, porque não teria como ganhar mais níveis pra ganhar a batalha impossível.

Winged Warrior III, no entanto! Winged Warrior III tinha esses soldadinhos que eram seus aliados e você podia treinar com eles quantas vezes você quisesse. Eles davam, sei lá, 25 de experiência e 10 ouros cada um. Apareciam quatro por vez, aí tinha que pedir pra aparecer mais.

Em determinado momento, a experiência necessária pra passar de nível fica maior do que 100000. E eu não estava nem aí. Quem sabe, se eu ganhasse do cara de 40000 de vida, eu não destravaria a versão completa do jogo?

Ah, mas deixa eu esclarecer. Eu não fiz isso na hora. Demorou muito tempo, porque eventualmente eu perdi essa versão shareware, talvez antes até de eu ter a ideia de grindar que nem um jogador de Tibia pra ganhar uma luta impossível. Como eu nunca fui pra frente nem no Winged Warrior II nem no III, a história do Winged Warrior nunca me foi contada e, com isso, o resto da história quem contava era eu.

E vou até confessar que o Winged Warrior foi minha grande power fantasy — deve ser até hoje, porque meu sonho é ter aquela espada de rubi dele (não é de rubi. É só vermelha. Vim a saber depois que espadas de rubi seriam particularmente ineficientes, porque quebrariam fácil. Quem liga). Acho que o raciocínio é mais ou menos assim: se ele não tem história e eu só tenho acesso ao conceito dele, eu posso me apropriar desse conceito e usar como nome de usuário do fórum sobre Emma Watson. Ou na criação de personagens de RPG. Ou mesmo na hora de brincar de fazer música pela primeira vez.

Eu cheguei a inventar pro meu irmão que existia um Winged Warrior IV e que ele era online. Não me pergunte por que eu fiz isso. Não foi nem pra contar vantagem, porque eu disse expressamente que não joguei, só vi em algum lugar da internet, um negócio meio vago. Eu tinha esse hábito. Uma vez eu disse pros amigos da escola que tinha ouvido falar que no Midtown Madness 2 dava pra atravessar o oceano (de carro) e chegar até a ilhazinha no horizonte de San Francisco e que lá tinha uma bomba atômica, que explodia (ao entrar em contato com seu carro). Acho que o fato de eu não atribuir a mim mesmo essa história era o que dava credibilidade a ela, fora, lógico, o completo desconhecimento por parte de todos em relação a como carros, oceanos ou bombas atômicas funcionam.

Mas acho que meu irmão nunca acreditou nessa história do Winged Warrior IV, porque ele é esperto e deve ter notado que não faria sentido lançar um MMORPG grátis (ou tão grátis quanto se pode ser) baseado em três jogos com história. Além disso, como eu ia jogar o IV sem nem ter terminado o III?

Aí um dia, muitos anos depois dessa história toda e dessa mentira, espero eu, ter sido enterrada na memória de todos os envolvidos, eu comprei o Winged Warrior III. Eu não queria nem terminar o jogo — só tinha na cabeça que eu queria muito derrotar o Nova Knight. Fui seco nos soldadinhos pebinhas e olha, pode contar umas boas cinco horas ininterruptas de matar quatro, pedir mais, matar mais quatro e pedir mais.

É que só a ideia de “ganhar a batalha que não dá pra ganhar” já é tentadora o suficiente. Eu compartilho do sentimento do moço polonês do SUPERHOT — quando você abre um jogo e não tem ideia do que tem nele, você instintivamente procura o espaço discricionário no qual você também se torna uma força dentro do jogo, alguém que foi confinado dentro de um lugarzinho pequeno e vai chutando as arestas pra ver até onde elas vão. E isso é uma experiência que não te permite fazer rankings, porque tudo depende de você e não é culpa de ninguém se não tem nada escondido ali.

De certa maneira, é muito mais gratificante subir até o topo do mundo, olhar pra baixo e só ver cinzas do que ter algo lá extremamente bonito, feito especialmente pra quem conseguiu subir. Porque se só tem cinzas, significa que ninguém preparou nada, você fez algo fora dos limites, fez algo que não era para fazer ou que não precisava fazer — mas você fez e só você fez.

Ganhar do Nova Knight dá 0 de experiência e 0 de dinheiro.

-Pedro Marques

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