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4 min readOct 24, 2018

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Um quarto corresponde a cada uma das quatro partes iguais em que pode ser dividido um todo (eu, você). Um quarto é uma divisão de tempo, como a quarta parte da hora, ou a quarta parte de um minuto, ou a quarta parte de uma vida. Um quarto é a posição número quatro de uma sequência, e aquele em quarto lugar não sobe ao pódio. Um quarto é um cômodo ou divisão da casa no qual se dorme.

Dormir é cair no sono, adormecer. Dormir é descansar, desfrutar do sono. Dormir é estar em repouso, e também é estar sepultado. Dormir é ter existência, apesar de não manifestar tal existência. Dormir é ser esquecido. Dormir leva ao processo de sonhar.

Todos temos um quarto, ou o que consideramos um quarto. Somos feitos de quartos. Eu (você) sou eu, sou meu pai, sou minha mãe, sou a quarta parte que me compete a doar a quem julgar digno. Eu (você) sou o cômodo no qual os monstros dormem, as lembranças existem, as tristezas são esquecidas. O um quarto das quatro partes da minha vida passou, mas os outros três quartos ainda podem vir, e são bem-vindos. Meu quarto, o cômodo, é no qual estou sepultada, e no qual durmo. E sonho.

Mas sonhar é alheio ao quarto, e é alheio ao dormir. Sonhar é a memória resgatando imagens, cheiros e sons de coisas que podem ter acontecido, ou não, e se não aconteceram é porque poderiam acontecer, ou não, porque se você entende que elas aconteceram talvez seja verdade, mesmo sem ser. O sonho suga do entorno o contexto da vida e o replica, como da vez que sonhei com tartarugas quando passava um episódio de Franklin na tv, ou quando sonhei com a morte enquanto cortavam a grama do lado de fora, ou quando sonhei com a chuva quando cuidava de um filhote de gato que não sobreviveu a noite. O sonho replica, mas também transforma.

O sonho é curioso e toma conta da realidade. Nem uma, nem duas, mas incontáveis vezes me forcei a dormir para poder voltar para aquele sonho, esse específico que me dava não necessariamente o que queria receber, mas sim supria algo que não imaginava querer. O sonho é feito de referências e desejos escondidos. O sonho conta a história, sem saber como contar, nem para quem contar, e assim se torna mais precioso do que se estar acordado.

O quarto em Yume Nikki conta uma história palpável: não quero sair do quarto, não importa o que aconteça; não existe mais motivo para sair da cama, porque tudo que existe no quarto já foi explorado infinitas vezes; o mundo do lado de fora da janela é o mesmo de sempre, tem as mesmas cores, e ainda bem que está lá fora. Resta então sonhar, até descobrir como sair do ciclo de ausência que o quarto se torna.

Então Madotsuki dorme. Madotsuki também sonha. Madotsuki, digna de seu nome, é a janela pela qual enxergamos o sonho, filtrado pelo caos metódico da sua consciência e sua memória de, talvez, criança.

O sonho em Yume Nikki não nos diz nada. Existe um acidente de carro; existe uma cidade de moradores encapuzados; existe pessoas se divertindo, e a exclusão dessa diversão; existe uma casa, distante e eterna, em que o sol nunca se põe; existe uma escada que nunca acaba; existe uma nave espacial; existem aliens, ou não. Entre um lugar e outro você passeia a passos módicos coletando objetos (efeitos), e às vezes esses objetos podem afetar outro lugar ou um, então você anda mais e coleta outros objetos, até que todos estejam coletados. Há mais lugares sem objetos que com; você não precisa conhecer todos os lugares para ter todos os objetos.

De forma clínica, não demora nem quatro horas para preencher a lista de objetivos do jogo, se você souber pra onde ir. Mas seus olhos não vão permitir que tudo seja feito rápido, porque na camada sob a camada sob a camada do que é refletido pra você através de Madotsuki de um lugar para o outro é tão inesperado, tão agressivo ao pensamento, que é necessário parar. Às vezes acordamos do sonho não porque queríamos, mas porque a válvula de escape estoura e precisamos respirar. E ao acordar temos o quarto, imutável, como uma âncora.

Âncora é aquele que protagoniza o telejornal durante a emissão de notícias para os telespectadores, sendo um meio o mais imparcial possível para informação e reflexão do mundo. Âncora é aquele que protege, que ampara, que fixa o que antes era sem rumo. Âncora é aquilo que afunda, seu peso sendo tão grande que não é possível levantar com a mão, e que, se não for bem medida, afunda consigo tudo que estiver na volta.

O mistério de Yume Nikki não é para ser resolvido. Não é um desafio a interpretação do jogador, nem está aberto a discussões sobre o que deveria ter sido ou não. A anonimidade do desenvolvedor e do personagem deixam clara a imutabilidade dos pixels, das ações em reações, dos movimentos, do sangue e vômito em tela. Interpretação de sonhos é para charlatões de turbante. Somente sonha-se.

Mas talvez exista uma história por trás do caderno, por trás do quarto trancado, por trás da varanda escancarada, por trás do pulo por cima do parapeito. Talvez exista uma história por trás da faca e da corda, da bicicleta e dos animais de estimação.

Existe uma história por trás da porta, mas não há mais ninguém que consiga abri-la. Porque a porta, e o quarto, são menores. São nada em comparação ao sonho. E, se não se pode sonhar mais, quando tudo dentro dele é descoberto, resolvido e catalogado, não existe mais motivo para se deixar a chave na porta, ou pra não se jogar da janela aberta. Em Yume Nikki não há sonhos mais, mas pensando em Yume Nikki, vivemos para sempre.

-Mariana Maciel

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