Maria Maria

Pedro Turambar
Notas da arquibancada
4 min readOct 5, 2016

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Texto originalmente publicado no site O Crepúsculo no dia 19/05/2013

Entender o quanto eu era preconceituoso foi parte muito importante para que eu mudasse a forma como eu via o mundo. Frases como “Não sou preconceituoso, tenho vários amigos (inclua sua minoria aqui)” são ditas com a naturalidade de quem ainda vê as sombras na caverna de Platão. E, como hoje mais cedo acabou o Campeonato Mineiro de 2013, resolvi usar o exemplo do futebol mineiro para tentar tirar sua visão de torcerdor, das sombras na parede.

Em diversos lugares do país — principalmente onde o estado é ‘dividido’ por dois grandes clubes de futebol –, existe sempre um time cujos torcedores têm a fama de serem pobres, sujos e ladrões, em contrapartida aos torcedores rivais, ricos, bonitos e efeminados. É uma cultura do futebol do brasileiro, enraizada e disseminada como doutrina. As mais evidentes e mais conhecidas são as torcidas de Corinthians x São Paulo e, claro, Atlético x Cruzeiro.

O exemplo mineiro ainda tem um agravante, já que o torcedor cruzeirense tem o apelido de ‘Maria’, o subjetivo-adjetivo, no caso, é empregado de forma pejorativa. Ou seja, ser Maria, ser mulher, é ser pior. É ser menor. Baixo. Maria, que, para nós, brasileiros, é a representação máxima da mulher. Representa mais que nossas mães, irmãs e esposas, representa uma luta. Uma luta pela igualdade, pelo fim da violência contra a mulher.

Maria JAMAIS deveria ser usado de forma pejorativa. Ninguém nunca deveria ser pior por ser ‘Maria’. Não somos nós, atleticanos, filhos, irmãos e companheiros de tantas?

Como estamos errados.

Você imagina a vergonha que eu sinto lembrando todas as vezes em que fiz coro junto com tantos outros. Tudo isso por causa da camisa amarela e dos longos cabelos do goleiro galã Raul.

O Cruzeiro perde aqui — para mim — uma oportunidade de marketing gigantesca. Não só de acabar de vez com essa história, como de ser um porta-voz da luta pela igualdade travada há tanto tempo pelas mulheres. Assim como o Boca assumiu para si o apelido de bostero e virou motivo de orgulho para eles, o Cruzeiro deveria assumir a Maria.

Maria é mãe, é mulher.

Que figura melhor representaria o espírito guerreiro de que os cruzeirenses se orgulham tanto?

Já cantava o genial cruzeirense Milton Nascimento:

Maria, Maria

É um dom, uma certa magia

Uma força que nos alerta

Uma mulher que merece

Viver e amar

Como outra qualquer

Do planeta

Maria, Maria

É o som, é a cor, é o suor

É a dose mais forte e lenta

De uma gente que ri

Quando deve chorar

E não vive, apenas aguenta

Mas é preciso ter força

É preciso ter raça

É preciso ter gana sempre

Quem traz no corpo a marca

Maria, Maria

Mistura a dor e a alegria

Podemos ser mais criativos e fazer graça com o torcedor rival sem disseminar a misoginia e a homofobia. ‘Maria’ é usado pela torcida do Atlético em relação aos cruzeirenses. Mas ‘xingar’ o torcedor rival de “gay”, “bicha” e outros tantos termos que não irei reproduzir aqui é comum a todas as torcidas.

O argumento anterior é o mesmo aqui. Citando — veja só — um ex-BBB, eu acho que consigo resumir bem o que penso hoje sobre isso. Quando saiu do programa, ao ser questionado sobre o que achava de ser chamado de gay pelas pessoas, Nasser respondeu assim “Por que eu deveria me irritar por me chamarem de algo que eu não considero ofensivo?”

Precisa falar mais?

Eu venho repetindo como louco que as pessoas ainda vão se horrorizar pelo fato como nos dirigimos aos homossexuais hoje em dia. É exatamente a mesma coisa que faziam há 200 anos com os negros. O tratamento é lamentavelmente parecido.

“Tenho vários amigos gays” é o novo “Tenho vários amigos negros”.

Temos que parar com isso. E, principalmente, parar de achar que isso é “só uma brincadeira”, “é só uma piada”, ou “é só no futebol”. Não. Não é. Se parar pra pensar um minuto, verá como isso é errado. Não racionalizamos em cima disso porque estamos condicionados a esse comportamento desde que nascemos. A nossa sociedade incute e dissemina essa ideia exatamente através de piadas, brincadeiras e estereótipos.

Um padrão de comportamento que leva a tirar vidas humanas e é abertamente aceito pela sociedade não pode ser considerado brincadeira.

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Este texto faz parte do meu livro Crônicas do Cotidiano, que você pode conhecer aqui.

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